sábado, 23 de dezembro de 2017

A praça do diamante - Mercè Rodoreda

(Porto Alegre: Ed.Planeta, 2017)

"E tudo seguia assim, com pequenas preocupações, até que veio a república, e o Quimet ficou todo entusiasmado e andava pelas ruas gritando e agitando uma bandeira que nunca consegui descobrir de onde surgira. Ainda recordo aquele ar fresco, um ar, sempre me lembro, que nunca mais consegui sentir." (p.79)

Olá leitores, tudo bom? Muita correria nesse fim de ano, como sempre! A resenha literária da vez é sobre o romance A praça do diamante (publicado em 1965), da autora catalã Mercè Rodoreda. Tive uma leitura tão gostosa, fluiu tão fácil, que não demorei nem 3 dias completos para terminar de ler rssss Realmente o estilo de Rodoreda é cativante: com uma escrita ágil, ela vai delineando os fatos da vida da narradora-personagem, Natalia, em uma época conturbada na Espanha (a Guerra Civil Espanhola, que ocorre no final da década de 1930). Tudo acontece especificamente em Barcelona, capital da região da Catalunha e onde o enredo se desenrola.

Natália é uma jovem que leva uma vida simples e rotineira: trabalha em uma confeitaria e mora com o pai e a madrasta. Uma noite vai ao baile na Praça do Diamante com sua amiga Julieta e conhece Quimet (apelido catalão pra Joaquim), um rapaz impulsivo e enérgico que logo lhe apelida de Colometa ("pombinha" em catalão). Em poucos meses estão casados.

Logo a vida real vai se descortinando ante os olhos ingênuos de Natália: agora tem a seu lado um marido controlador, ciumento, ultra conservador e religioso, que não se dá bem nem com a própria mãe. E que depois inventa de criar um pombal no pequeno apartamento em que moram, com a ideia de que vão ganhar muito dinheiro com isso. 

A rotina de cuidar do pombal, dos filhos e da casa e trabalhar como criada para uma família burguesa nos dá um belo retrato das tensões vividas pelos espanhóis que culminará na Revolução de 1936 -  a qual tirará do poder os reis e instaurará a República. Quimet e seus  amigos Cintet e Mateu, imbuídos desse espírito de renovação logo se alistam, e de uma hora pra outra Natália terá que redimensionar as coisas em seu pequeno mundo.

A narrativa da Colometa é muito sinestésica: toda a sua percepção dos fatos e de suas memórias está associada à cheiros, cores, sabores e sons característicos de Barcelona: o beijo de Quimet tem sabor de café com leite, o mercado tem cheiro de mar (a cidade fica à margens do Mar Mediterrâneo). A narradora compara o ar de antes e depois da Revolução: antes, o ar era fresco; depois, o ar tem cheiro de "folha tenra e de flor em botão." 

Toda a linguagem é muito poética, metaforizando o início e o fim de um ciclo. Sem ser piégas e sentimental, muitas vezes bem humorada em meio às tragédias, a fala de Natália nos toca pois nos mostra como se amadurece com o dia-a-dia e com a sucessão dos fatos dos quais não temos mesmo controle. Esse é um romance que nos mostra que a única alternativa que temos é seguir sempre adiante, apesar das "pequenas" ou "grandes" tragédias, pois a dimensão e a importância quem dá somos nós mesmos a tudo o que nos acontece. E é também um romance sobre o amor, como afirma a autora Mercè Rodoreda nos posfácio da obra, datado de 1982. Porém penso que não é só o amor entre homem e mulher; é o amor à vida e à tudo aquilo que vem nesse pacote imprevisível.

"O que você acha desse estado atual do mundo?" (p.138)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Persépolis - Marjane Satrapi

(São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2007)

Olá pessoal, tudo bom? Já estamos por aqui no clima gostoso e leve do Natal! Nestes últimos dias do ano traremos indicações de leituras infantis e juvenis, mas que a meu ver também servem para nós, adultos. Portanto, fiquem de olho também lá no Instagram (@naterciagarr), no Facebook (Natércia Garrido) e no nosso canal no YouTube (A Beletrista), porque postaremos dicas variadas nas redes sociais. 

Enquanto crítica literária, não acredito muito nessa segmentação criança / adolescentes / adultos - ahhhh, pensem comigo: literatura quando é boa não importa a faixa etária, não é mesmo? E além do mais, vamos olhar para os fatos: praticamente todos os autores que escreveram literatura de "adultos", já inseridos no cânone literário, também escreveram para crianças, a exemplo de Clarice Lispector, Julio Cortazar, Patrick Modiano, Moacyr Scliar etc. A gente poderia ficar horas aqui citando mais autores. O século XX veio para desbancar essa segmentação e propor novos paradigmas, inclusive fazendo com que a literatura infantil e juvenil abordasse temas "mais adultos". Vale lembrar, porém, que a intenção educativa, com veiculação de mensagens positivas e edificantes permanece como característica fundamental da literatura infantil e juvenil.

Não considero Persépolis um exemplo desta literatura, mas é bom que se diga que grande parte da obra, toda escrita no formato de história em quadrinhos, se passa entre a infância e a adolescência da personagem principal, que é a própria escritora Marjane Satrapi. Sim, é uma obra autobiográfica. Ela relata de forma leve e muitas vezes irônica, vários percalços pelos quais passou dos 10 até os 24 anos, tendo como pano de fundo as questões político-religiosas vividas no Irã. Creio que é uma ótima oportunidade para nós conhecermos um pouco da história recente deste país, mais precisamente aquela vivenciada por Satrapi a partir de 1979, quando ela tinha 10 anos: o início da Revolução Iraniana (mais uma no looooongo capítulo da história da Pérsia = Irã), que depõe o Xá (Rei) Rehza Pahlavi e coloca no poder Ruhollah Khomeini, clérigo xiita fundamentalista que institui a República. 

A menina Marji vai narrando tudo o que acontece a partir desta revolução, e os efeitos práticos em sua vida (volta a usar o véu) e de sua família: ela é filha única de um engenheiro e de uma dona de casa, ambos muito politizados, cultos e modernos. A educação que Marji recebe em casa, aliada à convivência com os amigos "rebeldes" dos pais faz com que ela tenha uma visão dos fatos bem peculiar e bem crítica - algo impensável para uma criança de 10 anos, imagine para uma garota!

Ela cresce conhecendo também a história de resistência política de sua família, que se confunde um pouco com a própria história do Irã: descobre que descende de um imperador e que o avô e o tio foram presos políticos por serem comunistas. Descobre que os países do Oriente Médio, dentre eles o Irã, são muito visados por sua riqueza de petróleo, e que as alianças políticas só duram no tempo em que o acordo for vantajoso para os países do Ocidente, dentre eles os EUA e a Inglaterra.

Marji também vivencia um país em guerra e todas as atrocidades que decorrem desta situação: após a Revolução Iraniana, o Irã declara guerra ao Iraque - inimigos de longa data - e o conflito se estende por 8 anos. Pressentindo que a educação que deram à filha não tornará a vida dela fácil no próprio país (por conta de suas ideias revolucionárias e porque não aceitavam as condições de submissão impostas às mulheres pelo regime xiita), os pais de Marji decidem enviá-la à Viena, na Áustria, aos 14 anos, para que ela conclua seus estudos lá e tenha uma outra oportunidade de vida - com mais liberdade e independência. Desta forma, novas aventuras e desafios esperam por Marji na Europa: novos amigos, a adaptação a uma nova língua e a um novo ambiente, a solidão, o primeiro amor, a rejeição de sua identidade e depois o resgate desta - o que a fortalece ainda mais.

Persépolis é uma obra que nos ensina, pelo olhar de uma menina, como é difícil fazer a transição para a vida adulta e mesmo assim permanecer fiel a seus valores. Pela vivência de Marji, percebemos que o que a sustenta e forma seu caráter é justamente a educação, o amor e o apoio incondicional recebidos de sua família, e no fim das contas, é isso o que somos: adultos formados pela criança que fomos um dia. 


















sábado, 11 de novembro de 2017

As alegrias da maternidade - Buchi Emecheta


(Ed. Dublinense: Porto Alegre, 2017)

"Sim, tenho muitos filhos, mas com quê vou alimentá-los? Com minha vida. Tenho que trabalhar até o osso para tomar conta deles, tenho que dar-lhes meu tudo. E se eu tiver a sorte de morrer em paz, tenho que dar-lhes a minha alma." (p.257)

Olá leitores, tudo bom? Acho que já falei pelo Instagram (segue lá em @naterciagarr ) que os meses de outubro e novembro estou passeando pela Literatura Africana de língua inglesa, mais especificamente pela escrita de autoras nigerianas. E não me arrependi de viajar por essas paragens, não. Tudo bem que, de novo, trago uma obra enviada pela TAG, mas olha: como eles fizeram uma edição bonita deste romance, viu?

Falar sobre As alegrias da maternidade (1979) de Buchi Emecheta (1944-2017) é propor a discussão sobre um assunto bem complexo: o lugar e a função da mulher na sociedade. A personagem principal, Nnu Ego, pertence à cultura nigeriana igbo (grupo étnico africano), vem de Ibuza - uma cidade do interior, cuja economia é voltada para a agropecuária de subsistência (cultivo de inhame e criação de cabras) e é filha de Agbadi, um poderoso líder local, também considerado um dos últimos "caçadores de elefantes". Na organização familiar poligâmica, Nnu Ego nem é filha do pai com uma de suas esposas, mas sim com uma amante, Ona - por acaso a mulher que Agbadi nunca conseguiu comprar. Por isso mesmo era louco de paixão por ela.

Quando chega a hora de casar, Nnu Ego segue a tradição: casa-se aos 16 anos com Amatokwu na condição de ser a primeira esposa, algo de grande status naquela sociedade poligâmica. Porém não consegue engravidar, e aí reside sua desgraça. Ao voltar para a casa do pai, que a recebe em sua grande generosidade, Agbadi devolve o dote da filha e procura um segundo marido para ela. Este segundo marido escolhido, Nnaife, porém há muito já se mudou de Ibuza para Lagos, cidade grande litorânea que cresce vertiginosamente, porque também é onde se concentra a maior parte dos colonizadores britânicos.

Ao se mudar para a cidade grande, Nnu Ego logo percebe o choque cultural que existe não só entre o colonizador e o africano, mas entre o ambiente rural e o ambiente urbano. Odeia seu marido mas, como começa logo a engravidar, entende que é para isso que ela existe no mundo: para ser mãe, pois foi criada assim. Como o enredo se desenvolve entre as décadas de 1930 e 1950, percebemos que os nigerianos vivem em um mundo conflituoso: viver segundo suas crenças e tradições ou viver adotando a ideologia do colonizador, que dentre suas muitas formas se manifesta no controle social por meio da religião cristã e da língua inglesa.

E as alegrias de ser mãe e esposa? Nnu Ego percebe que seu marido Nnaife não consegue lhe dar o suficiente para o sustento dos filhos e da casa, e a vida em Lagos é cara e precária, por isso logo ela aprende a "arrumar dinheiro extra" vendendo o que pode: cigarros, fósforos, lenha - é um trabalho extenuante, porém necessário se ela quiser minimizar a vida miserável que leva. Pois é aí que está a parte emocionante da história: o sacrifício de uma mulher por seus filhos, com todos os ônus e bônus. Mas questiono se realmente houve bônus para a vida que Nnu Ego foi impelida a ter. 

E mais: aqui se insere uma discussão pertinente sobre ter filhos homens e filhas mulheres, e como se dá a educação deles na sociedade nigeriana na época retratada. Era glorioso para uma mulher ter filhos homens, porém as filhas eram consideradas um fardo. Sua permanência na família servia apenas pra executar serviços domésticos, a grande maioria mal sabia ler e escrever e era aguardado ansiosamente o momento em que elas trariam o dinheiro do dote  - deveriam se casar bem cedo, com onze, doze anos. E assim elas reproduziriam o mesmo ciclo a que foram ensinadas a viver. 

Existe uma personagem neste romance que quebra esse paradigma: Adako. A jovem se torna a segunda esposa de Nnaife, herdada por este porque seu marido, irmão mais velho de Nnaife, morreu. Tida pelos parentes como mulher ambiciosa só porque quer uma vida melhor para suas filhas e porque se recusa a se resignar com a vida miserável e negligente que encontra em Lagos, vida esta proporcionada por seu marido, ela resolve ir embora enquanto Nnaife está lutando na II Guerra Mundial. Adako segue em busca de um modelo diferente daquilo que foi ensinada - e a atitude que ela escolhe é trabalhar e colocar suas filhas na escola. Esta mãe acredita que o mundo está mudando, os valores culturais rígidos serão rediscutidos e quer que suas filhas façam parte desta mudança.

Diante de tantas complexidades sobre ser mãe e mulher, Emecheta consegue desfiar um retrato sobre a classe trabalhadora nigeriana e também sobre as relações eternamente conflituosas entre homens e mulheres numa sociedade de organização poligâmica, algo que nós aqui no Brasil não conhecemos. Pelo menos não legalmente falando. Utilizando uma linguagem irônica desde o título da obra, a autora consegue nos mostrar um panorama rico e que nos desafia a entender e aceitar aquilo que não vivenciamos porque sequer imaginamos. 

Mas será isso mesmo? Será que as dores e as agruras pelas quais passa Nnu Ego, mesmo tão distante em tempo e espaço de nós, não serão compartilhadas com alguma mãe leitora por aí neste universo de meu Deus? Mãe é a primeira palavra que aprendemos a chamar quando estamos em apuros. Mãe é a palavra que existe em qualquer língua deste planeta, e que facilmente é identificada nos estudos filológicos. Não sou mãe, mas sou filha de uma mãe que teve três filhas e que nunca achou que um filho homem a deixaria mais completa. Talvez por isso ela nos criou para sermos mais corajosas num mundo desenhado pela perfeição dos homens. Quanto a mim, sigo tentando aprender com todas as figuras femininas que me são dadas o privilégio de conhecer, seja na vida real ou na ficção.

"Vivemos num mundo de homens. Mesmo assim, esposa mais velha, quando estas meninas crescerem vão ser de grande ajuda para cuidar dos meninos. E seus dotes de esposa também poderão ser usados para pagar a escola deles." (p.178)



domingo, 15 de outubro de 2017

"Ragtime" - E.L.Doctorow

(1975)

Olá queridos leitores, tudo bom? Já temos nosso canal no YouTube, com o mesmo nome do blog - A Beletrista! Fiz o vídeo-resenha deste romance, Ragtime, em setembro, mas está valendo! Prometo que no início de novembro teremos conteúdo novo lá no canal, assim como aqui também, certo? Cliquem aqui embaixo para assistir o vídeo, se inscrevam no canal, curtam e compartilhem! Até a próxima leitura!



quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Quase memória - Carlos Heitor Cony

(Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2014)

Não, não poder ser: o papel, o barbante, a tinta com a qual escrevera meu nome, tudo é recente, um embrulho feito em dois, três dias antes. (p.113)

Olá leitores, tudo bom com vocês? Hoje vamos comentar um pouco sobre a obra Quase memória do autor Carlos Heitor Cony. Ele compõe o rol de autores contemporâneos da Literatura Brasileira  - publicou romances, contos e crônicas, além de atuar como jornalista desde a década de 1950. Cony integra a Academia Brasileira de Letras desde 2000 e atualmente é colunista da Folha de São Paulo. Quase memória foi publicada em 1995 e levou pra casa um Prêmio Jabuti e o Prêmio Livro do Ano da Câmara Brasileira do Livro (ambos de 1996). Está bem recomendado, não é? Vamos à história.

Em um dia normal, o narrador-personagem, que é jornalista, recebe um pacote - embrulhado e escrito de um jeito muito particular por alguém bem conhecido: seu pai. A questão é que este pai está morto há 10 anos, o que logo suscita a dúvida em nós leitores: como pode estar morto se parece que o pacote foi embrulhado ontem? O narrador não tem coragem de abri-lo, colocando-o em cima de sua mesa na redação do jornal, e em seguida é tomado por lembranças e memórias deste pai - aquele que tantas vezes o fez "passar vergonha" mas que tinha um jeito todo seu de resolver os problemas que a vida lhe apresentava, sempre com muita criatividade e bom humor.

Apesar de ser meio ficção (não sabemos até que ponto os fatos lembrados são verdadeiros), meio memorialista ( o narrador passeia por sua infância, adolescência e início da vida adulta para contar as histórias sobre o pai), o romance não tem uma característica de ser saudosista ou melancólico - pelo contrário, e foi aí que o Cony me ganhou na leitura. Ao contar de forma bem engraçada sobre os acontecimentos da vida do pai que também era jornalista, o narrador nos leva ao Rio de Janeiro das décadas de 1920, 1930 até a década de 1960 - pois o pai dele trabalhou bastante durante esse período cobrindo os mais variados eventos políticos (a exemplo da ascensão de Getúlio Vargas ao poder por meio da Revolução de 30).

Destaco também que o retrato feito dos bastidores da imprensa é muito interessante. A abordagem sobre a ética profissional, perseguições políticas, coberturas de notícias, movimento nas redações dos jornais - tudo é mostrado de forma com que nós, leitores, percebamos que a imprensa é de fato o 4º poder, mas que ali não tem glamour nem luxo - tem é muito trabalho, sim senhor, e na maioria das vezes sem hora pra acabar! (e pensar que eu queria ser jornalista na época que prestei vestibular, oh céus! Mas tenho muito respeito por essa profissão.)

Em quase 300 páginas, fica cada vez mais claro para nós leitores que o que importa não é saber o que tem no pacote - o mais importante são as memórias que ele suscita. Celebrar os fatos vividos e revivê-los por meio das lembranças, sejam elas fidedignas ou não, nos fazem nos sentir vivos em qualquer época de nossas vidas. Rememorar é viver? Bom, creio que ao acessar o passado, consigo entender melhor como eu fui e como quero ser amanhã. O tempo não é meu inimigo - ele só ajuda, cada vez mais, a me entender como ser humano.

E já que a literatura namora sempre com minha outra paixão, o cinema, quero deixar a dica de dois filmes pra vocês assistirem nesse feriadão. Primeiro o filme produzido pelo meu ídolo Oswaldo Montenegro, O perfume da memória (2016). Você pode assistir no YouTube clicando aqui, e por favor, sem preconceitos! 


O outro é Para sempre Alice (2014), com uma de minhas atrizes favoritas: Julianne Moore:




Viver era mais importante para ele. E ele descobrira que as coisas boas (ou que ele considerava boas) podiam ser conseguidas com pouco ou com nenhum dinheiro. (p.77)

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Tabocas & versos: 5 poemas em resistência à ameaça de descaracterização do Morro do Alecrim.

Foto: David Sousa

Olá leitores do A Beletrista! Hoje cedemos nosso espaço aos queridos poetas caxienses Carvalho Jr., Edmilson Sanches, Isaac Sousa, Jorge Bastiani e Quincas Vilaneto. Os cinco bardos expressam sua resistência em forma de poesia contra a descaracterização do Morro do Alecrim, local histórico na cidade de Caxias (MA) onde aconteceram muitos conflitos da Balaiada. A ideia é bem simples: se não preservamos nosso passado, nossas ruínas, a fim de conhecê-las e transmiti-las à atual e futura geração, como nos reconheceremos ? Nossa identidade reside nos fatos e nas memórias. É assim que nos sentimos pertencedores da história do local onde nascemos. Sou caxiense de coração há 5 anos, por isso não consigo mais enxergar a cidade com olhos estrangeiros.... 

BALAIOS DE SOLUÇOS
///Carvalho Junior///

flecha de mágoas-vivas, corpo de tabocas órfãs,
sou carvão desprezado no alto da ladeira
(o)fendida pela lâmina de silêncios suicidas.

o sonho resiste ao fogo, ao cuspe tóxico dos
homens-cinza e à pedra não lapidada dos
autodidatas da futilidade.

tudo morre diante dos nossos olhos:
o morro, a história, a lucidez...
as borboletas sobreviventes marcham sobre os
balaios de soluços que explodem no jardim.

 A TERCEIRA “GUERRA” DO ALECRIM
///Edmilson Sanches///

“Ímpios sem crença, e precisando tê-la,
Assentastes um ídolo doirado
Em pedestal de movediça areia;
Uma estátua incensastes  [...]
Da política, sórdida manceba “

(Gonçalves Dias, “À Desordem de Caxias”, IV, 
in Poesia Completa e Prosa Escolhida, p. 551,
Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959)


E eis que lá no alto do Morro trava-se nova batalha
-- não é mais Alecrim, Duque, nem é contra Fidié:
é luta por causa histórica, onde a verdade assoalha
para o Morro não deixar de ser a Memória que é.

Esse Morro onde habita a História sem fim
e também onde o poeta sua musa canta
pode não mais ser nosso Morro do Alecrim
para ser  -- e muito mais --  “o morro da santa”.

Querem (im)por uma estátua no alto do Morro do Alecrim,
onde a escultura é desnecessária, quiçá conflituosa.
Há opções de valia   -- entre elas o Morro do Barata, sim,
onde, com Fé, renderemos graças à Maria Virtuosa.

Filhos da terra que dizem respeitar a História,
detentores transitivos do volátil Poder,
abusam da condição, desrespeitam a Memória,
louvam a si mesmos por trás da Santa enaltecer.

Estátua, substantivo sem vida nem rima.
Colocá-la bem no Alecrim é turbação.
À essa obra no alto do Morro, lá em cima,
a Santa pede e quer contrição, oração.

Pois é no interior de cada um que se constrói a devoção
e se a confirma na Fé, no Trabalho, no Amor, na luta contra o Mal,
com decência suprindo o povo carente não só de fé, mas de pão
acompanhado de boas doses de ética, fraternidade, moral.

O próprio Deus escolheu o íntimo do ser humano como templo
quando poderia, fácil, por outros meios fazer-se representar.
E certos humanos, incrédulos, desapegados desse exemplo,
o que fazem para a Deus  -- na verdade, a si mesmos, ímpios --  louvar?

Em sítio histórico de Caxias quer-se erguer estátua religiosa;
fazer estátua não só porque os feitores tenham fé, convicção ou crença:
quer-se fazer estátua porque estão, breves, no Poder – coisa perigosa –,
senão teriam construído com humildade, sem alarde ou desavença.

Se têm contas a prestar com a Santa,
se co’ ela têm promessas a pagar,
por que, humildes, como quem ora e canta,
não fazem a estátua em outro lugar?

Digam: Por que foram mexer logo com a Virgem Santa?
Por que assumiu a obra e depois sumiu o Público Poder?
Porque quem tem fé sabe que à Fé incomoda e espanta
o fazer questão de anunciar ao mundo o seu fazer.

Receberam uma dádiva  --  dinheiro, poder, vitória, eleição --
e, cumpridores, querem agradecer com uma o que a outra mão pediu?
Então, munam-se, assim, de reserva, recato, humildade, contrição,
e não se preocupem se todo mundo no mundo todo vê, ou viu.

Pague-se sua promessa sem excessos, ou soberbia, com discrição,
--- pois santo que é santo não precisa de alto-falante para sê-lo.
A Santa, sobretudo porque virginal, materna, estenderá a mão
e grata ficará pela prudência, contenção, amor, fé e zelo.

Basta de revolverem-se as pedras do Morro e sua memória;
cada uma delas é um patrimônio que é nosso, que é seu.
Diz o Poeta: “Cada pedra que i* jaz encerra a história”,
história valente, corajosa, “dum bravo que morreu”.**

Nessas pedras há sangue, há dor, há ideal e há liberdade,
e essa luta, só o Morro do Alecrim deve ser o lugar dela.
Assim, porque soterrar mais ainda a História, quando, de verdade,
há outros lugares para a santa escultura e o que vier com ela?

O caxiense Teixeira Mendes, a partir do Rio de Janeiro,
iniciou uma luta, fez a lei e finalmente conseguiu
separar Igreja de estado  --  pois a Fé, valor verdadeiro,
não deve ser obrigação constitucional no Brasil.

Mas o que um caxiense faz para todo o País outros desfazem em casa.
De modo exposto ou escondido, verbo e verba em variados expedientes,
interesses pessoais são mantidos, decisões e descaso ganham asa
...e História e Patrimônio caxienses  -- sim, ruindo --  cada vez mais doentes.

Depois de portugueses e balaios,
que “mato” e “morro” não tornem a verbos
nesta terceira “guerra” do Alecrim;
que sejam o que são: só Natureza
e História, ambas com seu espaço e beleza,
cumprindo em Caxias seu elevado fim.
Sine ira et studio.
(*) O mesmo que .
(**) “Cada pedra que i jaz encerra a história” e “dum bravo que morreu” são respectivamente o terceiro e o quarto versos da segunda estrofe da primeira parte do poema “Morro do Alecrim”, de Gonçalves Dias (in Poesia Completa e Prosa Escolhida, p. 527, Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959).

[MORRO DE SAUDADES DO ALECRIM]
///Isaac Sousa///

Morro de saudades do alecrim.
Morro e teu perfume jaz em mim.
Como um velho feiticeiro
Que invoca pássaros de fumaça.

Morro sete vezes sem perdão
Nas encruzilhadas da canção,
Onde o velho feiticeiro vem
modelar morcegos enevoados.

Nas ruínas gemem ossos litium
Dos tabocais plantados no infinito.
E o poeta em seu cigarro escreve
Suítes de metal e de fantasmas.


EM GUARDA
///Jorge Bastiani///

Sei que nunca é chegada a hora de dizer
adeus.
Também não há hora para se despedir.
Nasci ouvindo histórias,
Até mesmo de assombros
Sobre sombras que
Pernoitamos essas paragens do Morro.
Agora ouço passos, de novo,
Acordando tudo – de novo! –
Para mais uma
Nova batalha.

SÃO RUÍNAS NOSSAS
///Quincas Vilaneto///

Não preciso consultar a bússola
nem tampouco o gandula da fé,
todo o meu chão pode ser visto
à medida que se rabisca nele
e a memória permanece de pé.
Não preciso de uma outra história
criando uma estética às avessas,
as coisas que realmente nos interessam,
devem ser mais do que borras de hóstias.
Não tenho nada contra a religiosidade
nem me interessa o conteúdo da promessa,
só não creio que seja modermo
juntar-se pios com os céticos
e destruir todo um passado impresso.


domingo, 10 de setembro de 2017

Vá, coloque um vigia - Harper Lee

Resultado de imagem para vá coloque um vigia
(Ed. José Olympio, 2015)

Hoje vou ler o capítulo 21, versículo 6, do Livro de Isaías: "Porque assim me disse o Senhor: vá, coloque um vigia, que anuncie o que vir." (p.90)

Olá pessoal, tudo bom? Um feriadão e mais uma dica de leitura, né? Resgato hoje a Literatura Norte - Americana porque essa indicação é bem merecida: Vá, coloque um vigia, segundo romance da autora Harper Lee. Ela nunca escreveu outra obra além do famoso O sol é para todos (1961, ganhador do Prêmio Pulitzer) e de repente, antes de morrer em 2016, seus parentes encontraram e publicaram o manuscrito deste livro que vamos resenhar agora.

Vá, coloque um vigia é ambientado na pequena cidade de Maycomb, no estado sulista do Alabama, durante a década de 1950. Maycomb é a cidade natal da personagem Jean Louise Finch, que retorna de Nova York, onde mora, para passar quinze dias de férias e rever sua família  - o pai Atticus, a tia Alexandra e o tio Jack, além do namorado Hank. Imbuída de sentimentos nostálgicos da infância e adolescência, ao mesmo tempo em que é pressionada para voltar definitivamente à cidade e se casar, Jean Louise percebe ao seu redor que algo está errado - existe uma grande tensão social "gritando" na atmosfera da conservadora Maycomb.

A tensão é reflexo das crescentes lutas por igualdade de direitos civis para os negros bem como para por fim à segregação racial, há tantas décadas respaldada pelas leis sulistas. Contextualizando melhor: a sociedade civil branca sente-se ameaçada pelos avanços conquistados pela Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor e pelo resultado positivo do caso Brown v. Board of Education , que garantiu, em 1954, que pessoas negras frequentassem as mesmas escolas públicas junto com pessoas brancas. 

O que Jean Louise presencia é a visão de seu pai, o advogado Atticus, e de seu amigo de infância / namorado Hank - que ela acreditava que fossem justos e bondosos - participando de reuniões junto com os homens "respeitáveis" da cidade. Seu mundo "cor de rosa" de menina sulista cai por terra ao escutar um discurso de defesa da raça branca disfarçado de proteção das famílias e bens, revelado num recinto que remonta às velhas reuniões da temida Ku Klux Klan.

O conflito que se segue em sua mente é de que ela nunca de fato conheceu o mundo em que viveu a maior parte de seus 26 anos, até aquele momento de tensão social. Jean Louise terá que amadurecer como mulher e como cidadã. Ela defenderá seu ponto de vista progressista, mesmo que tenha que "cortar na própria carne"ou sucumbirá às antigas tradições de sua gente?

Após ler o romance, uma boa pedida é assistir o filme Histórias Cruzadas (2011), cuja história se assemelha muito ao enredo de Vá, coloque um vigia. Se quiserem, tem resenha do filme aqui no blog! É só pesquisar e clicar pra ler!

Mas você precisa se decidir, Jean Louise. Vai ver mudanças, vai ver Maycomb mudar completamente durante a nossa vida. (p.72)

domingo, 20 de agosto de 2017

O colar de coral - Antonio Callado

(Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2010)

Eu quero apenas fundar uma cidade. Uma cidade anarquista. Começará com duas pessoas, naturalmente, três. Aquilo é zona muito acossada pela seca. [...] (p.221)

Olá meus queridos, como vão? Todos já estão "engatilhados" nos afazeres acadêmicos do segundo semestre? Ainda estou meio "lenta", inclusive com as leituras; creio que é porque este semestre está mais cheio que aquele que passou, mas faz parte da vida de ser professora, né...

Nossa indicação de leitura é todo o livro Teatro Completo do Antonio Callado. Aqui estão 9 peças teatrais que ele escreveu e publicou na década de 1950 e início de 1960. Primeiramente quero dizer que acho impressionante o Callado ser um autor tão pouco mencionado nas aulas de literatura brasileira nas universidades...Um cara que: foi jornalista correspondente de guerra de O Globo - cobriu a 2ª Guerra Mundial e até a Guerra do Vietnã; trabalhou na BBC de Londres, escreveu uma obra emblemática e considerada maldita pelo regime militar (Quarup, 1967), pertenceu à ABL, enfim! Um autor com uma vida dedicada à arte de escrever e de informar e de ter compromisso com a justiça e a igualdade social não poderia desaparecer de nosso cenário cultural.

Dito isto, vamos a O Colar de Coral: a peça foi publicada em 1957 e está dividida em 3 atos. Narra a história de ódio entre 2 famílias, os Monteiros e os Macedos da cidade de Icó no Ceará, que no tempo da peça, ou seja, na atualidade, ambas famílias estão falidas, tendo migrado para a cidade do Rio de Janeiro. Uma noite, Cláudio Macedo adentra a casa dos Monteiro para conhecer Manuela e pedir-lhe um favor; assim como ele, a moça ouve desde criança sobre as tristes histórias de ódio que permeiam as famílias há 200 anos.

Cláudio pergunta se Manuela sabe onde está um cofre que o pai dele carregava no dia em que desapareceu - o cofre continha o colar de coral de Matilde, tia de Manuela, e as esporas de prata de Radagásio, tio de Cláudio. No passado eles se apaixonaram e morreram por esse amor, porém esses pertences haviam ficado com Jovino, pai de Cláudio.

Diante desse pedido e da declaração insistente de Cláudio, de que a única coisa que lhe importa é resgatar o pouco de terra que ainda resta de sua família para fundar uma comunidade anarquista, Manuela se vê em conflito: ela deve acreditar nas supostas palavras sinceras de um Macedo ou deve perpetuar o ódio alimentado por sua avó?

É interessante notar toda a crítica social contida no texto e a coragem de falar sobre anarquismo em plena época de intolerância e Guerra Fria; ao mesmo tempo que faz isso, Callado nos presenteia com falas líricas sobre amor, ódio e família: o que nos une no fim das contas?

Porque isto de ódio é um hábito. Aí é que o amor é diferente. Ódio e amor são feitos de fogo. A diferença está nos materiais consumidos. [...] (p.261)



domingo, 30 de julho de 2017

Orlando - Virginia Woolf

Resultado de imagem para orlando virginia woolf
(São Paulo: Ed. Landamark, 2013)

A mudança de sexo, embora alterasse seu futuro, nada fez para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os relatos, praticamente o mesmo. (p.67)

Olá meus leitores! Como foram de férias? Recheadas de leituras e aventuras, eu espero né ;) ? Já fazia um tempo que eu estava com vontade de ler Orlando (Orlando: A Biography - 1928), da autora inglesa Virginia Woolf, e nesse mês consegui. Não por ser, eu acho, a única obra que ainda não tinha lido dela, mas porque procurava uma edição que valesse a pena. E essa aqui, da editora Landmark, é bilíngue, então pude ler o texto em português e inglês.

Os críticos em geral dizem que Orlando é a obra que colocou Woolf no patamar de importância literária na Inglaterra, muito mais do que Mrs. Dalloway (meu preferido e publicado em 1925). E entende-se a razão. Orlando é um nobre aristocrata, bem rico, que vive plenamente o período elisabetano, período este caracterizado por ter a rainha Elizabeth I no poder. É o Renascimento inglês, considerado a época de ouro das artes e da economia inglesa (época de Shakespeare e da descoberta do "Novo Mundo"). Pois bem. Orlando possui todas as benesses de um jovem de seu tempo - favores reais, mulheres a seus pés e beleza. Por acreditar que possui tudo, inclusive o amor de todos, ele crê que sua paixão por Sacha, uma nobre russa, tornará sua vida completa. Só não estava contando que a moça só queria se divertir com ele, afinal de contas, para ela era apenas diversão.

A desilusão no amor leva ao descrédito nas pessoas dali em diante, e por isso Orlando resolve se trancar para sempre em sua mansão no campo. Resolve também terminar de escrever seu poema "O Carvalho", pois como um bom aristocrata Orlando amava a poesia e queria também ser reconhecido por sua inteligência e louvor às artes. Ele pede que o poeta Nicholas Greene, considerado "o gênio", leia seu manuscrito, porém este escreve uma sátira ridicularizando a figura de Orlando e banalizando a pretensão do jovem de ser reconhecido como um bom poeta. Então, totalmente arrasado, Orlando aceita ser embaixador em Constantinopla, e é lá que se opera a coisa mais fantástica da história: ele dorme por sete dias, como se entrasse em um estado de coma, e após acordar descobre que seu sexo mudou - Orlando era agora uma mulher!

Como seria sua vida dali pra frente? Mudaria sua essência, seu modo de pensar, já que seu sexo mudou? Orlando, o romance, é filho do século XX pois coloca em discussão a importância da mulher na sociedade, questionando essa figura tão subestimada. Mas não somente isto. A narrativa de Woolf é irônica, obriga o leitor a participar do discurso, e o narrador da história se apresenta como biógrafo da vida de Orlando dizendo que sabe tudo mas ao mesmo tempo fica se explicando por não conhecer detalhes ou razões para as atitudes do rapaz. É um biógrafo fajuto, que ao invés de afirmar, duvida. 

E muito mais o romance Orlando nos ensina, principalmente aos profissionais da área de Letras: o tempo todo o narrador paga um lindo tributo à importância da arte e da poesia no mundo; muitas vezes o narrador dá uma lição de história de literatura inglesa e de crítica literária também, o que torna o romance quase que uma metaficção.

Imagino as dúvidas que devem ter dilacerado a mente brilhante da autora ao decidir abordar, sendo mulher, temas tão difíceis para as primeiras décadas do século XX. E olha que ela era até bem aceita nos círculos intelectuais londrinos - e tinha total apoio do marido, Leonard Woolf, para se entregar à escrita. Ele era seu editor e ela confiava completamente nele. É por isso que adoro tanto os romances e os pensamentos de Virginia Woolf: eles revelam  a mulher que só agora, em pleno século XXI, estamos conseguindo enxergar - como um ser humano.

Sobre a natureza da poesia em si, Orlando só descobriu que era mais difícil de vender que a prosa, e embora os versos fossem mais curtos, levavam mais tempo para serem escritos. (p. 44)


domingo, 9 de julho de 2017

Cazuza - Viriato Correa. Resenha crítica de *Caio Carvalho.

Download Cazuza  - Viriato Correa    em ePUB mobi e pdf

- Pergunta você o que é o Brasil? É tudo que temos feito em prol do progresso, da moral, da cultura, da liberdade e da fraternidade. O Brasil não é o solo, o mar, o céu que tanto cantamos. É a história de que não fazemos caso nenhum.(p.185)

Neste texto, objetivamos levantar uma análise crítica a respeito da clássica obra Cazuza (1938) do aclamado escritor maranhense Viriato Correa. A trama nos traz a história do garoto que dá nome ao livro. Em um tom memorialístico ele nos conta a sua infância em uma narrativa dividida em três partes, nas quais são alterados os personagens, o espaço e até a temática expressa. Seguindo uma ordem cronológica, a infância do menino é situada no livro, agregando a isso sua perspectiva diante do que ele presencia.

Ao ler Cazuza, é impossível caracterizá-lo como um livro homogêneo referente à sua temática, pois a diversidade de traços que compõe o estilo do autor, atrelado ao imaginário da época é gritante. Dessa forma, pontuamos na obra uma reflexão específica: o patriotismo. O narrador nos traz, especialmente na parte 3, um relato do desejo que ele tem de que o brasileiro assuma sua verdadeira identidade, fazendo uma crítica aos que cantam a brasilidade de uma forma equivocada e contida, ao passo que defende que ela é muito mais que isso.

A culpa não é de vocês, é de quem lhes ensina noções falsas. Para muita gente, patriotismo é elogiar as nossas coisas mesmo quando elas não merecem elogios. É um erro. O verdadeiro patriotismo é aquele que reconhece as coisas ruins do seu país e trabalha para melhorá-las. (p.209)

A Literatura é um dos mecanismos de maior influência quando se quer valorizar a pátria. Na tese Literatura como Missão (1981), de Nicolau Sevcenko, o autor coloca a Literatura como uma forte arma que ajuda o leitor a refletir sobre os eixos sociais que compõem o contexto em que o indivíduo está inserido. Para Sevcenko, o texto literário é um documento de ação político-social, que denuncia as mazelas vividas e sugere possíveis correções.

Viriato Correa usa e abusa desse cunho social que a Literatura possui pois nos faz refletir sobre a forma com que o brasileiro percebia sua pátria e como esse brasileiro ensinava suas crianças.  O forte tom crítico do protagonista faz o leitor enxergar o patriotismo menos da perspectiva natural e mais do cunho identitário que os próprios brasileiros lutaram para que seu país possuísse.

Para além da questão patriótica, o livro retrata fielmente a cultura maranhense, além de nos fazer refletir a respeito do ensino formal nas escolas da época, do preconceito e desvalorização com a gente pobre - questões altamente sociais. Com uma linguagem concisa e diálogos rápidos, o leitor consegue devorar as 229 pág. bem rápido! Lembremos que acima de tudo, a leitura de Cazuza demonstra que Literatura não é apenas deleite; Literatura também é denúncia.

*Caio Carvalho é aluno do curso de Letras/Português da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, Campus Timon (MA).

domingo, 2 de julho de 2017

Wicked - Gregory Maguire

Resultado de imagem para wicked
(São Paulo: Ed.Leya, 2016)

A feitiçaria [...] não rasga, ela remenda. É síntese, em vez de análise. Gera o novo em vez de revelar o antigo. Nas mãos de alguém verdadeiramente qualificado [...] é Arte." (p.182)

Olá meus leitores, tudo bom? Depois de um mês festivo como junho (pelo menos pra nós aqui do Nordeste é assim!), ufa! chegamos em julho, mês de férias! E isso significa colocar o lazer em primeiro lugar, isto é, a leitura, né? Bom, vamos à uma gostosa indicação que serve pra todas as idades, especialmente os adolescentes!

Wicked (malvada/o em inglês) narra a história da vida cheia de preconceitos e dificuldades de Elfaba, antes de se tornar a famosa Bruxa Má do Oeste da terra encantada de Oz. Desde criança a moça tem que lidar com olhares desconfiados por conta de sua aparência meio sinistra: cor da pele esverdeada e uma magreza extrema contrastando com belos olhos e cabelos negros e sedosos. Seu pai, Frex, um pastor que prega o monoteísmo, gosta de exibi-la a seus fiéis seguidores como prova da misericórdia de Deus, já que em nenhum momento Elfaba demonstra ter má índole. Sua mãe, Melena, rejeita-a constantemente. 

Crescendo no ambiente pobre, rural e pantanoso da província de Quadling, sendo negligenciada por seus pais e seus dois irmãos, Nessarose e Casco, Elfaba se volta para a leitura - seu único prazer é adquirir mais e mais conhecimento. Assim ela chega à universidade e o destino faz com que divida o mesmo quarto com a burguesa Glinda, que mais tarde se tornará a Bruxa Boa do Norte. Apesar das diferenças profundas as duas se tornam amigas: Elfaba segue acreditando que sua essência é má, sempre questionando qual sua verdadeira missão. Já Glinda segue afirmando que a feitiçaria pode ajudar a trazer o bem a Oz, salvando o país das tiranias comandadas pelo famoso mágico.

Mas muitas coisas acontecem não só a Elfaba como a seus amigos, após os anos da universidade: eles aprendem que os atos tem consequências. Cada um tem seus ideais de vida colocados à prova, para testar se suas essências são de fato más ou boas. À medida que Elfaba, Glinda, Boq, Fiyero e Nessa assumem responsabilidades e dão um direcionamento a seus destinos, suas personalidades também se delineiam. E suas identidades se formatam em figuras de bruxas e homens da elite de Oz.

A temática principal da obra gira em torno dos conceitos de bem e mal, principalmente deste último, assim como as suas respectivas personificações. Wicked demonstra de forma crua como algumas facetas do mal se apresentam na sociedade: na escravização de mentes, na imposição de ideologias tirânicas, na hipocrisia e no silêncio condescendente que apóia o governo ilegítimo do mágico de Oz.

É lógico que eu sugiro que você leia logo em seguida (ou antes mesmo) o clássico da literatura infantil e juvenil O maravilhoso mágico de Oz (1900) do norte-americano L.Frank Baum: todos os elementos que estão nesta obra reaparecem em Wicked, como a menina Dorothy, seu cachorrinho Totó e os amigos que ela faz em Oz: o homem de lata, o espantalho e o leão covarde. Ah! E vocês entenderão finalmente, assim como eu, a razão de os famosos sapatos prateados serem encantados! Garanto que a leitura será de fato maravilhosa!

"[...] Ou o mundo simplesmente se descortina aos seus olhos, repetidas vezes, assim que você está pronto para vê-lo de maneira diferente?" (p.255)



domingo, 18 de junho de 2017

No alto da ladeira de pedra - Carvalho Jr.

Resultado de imagem para no alto da ladeira de pedra
(São Paulo: Patuá, 2017)

"cadeira, óculos, agulha...

no alto da ladeira de pedra,
vô Quirola remenda
as redes de pesca. [...]" (p.51)

Olá leitores! Hoje é dia de poesia, meu assunto preferido...Chegou-me às mãos ainda em maio deste ano a obra poética do jovem autor caxiense Francisco de Assis Carvalho da Silva Jr - ou simplesmente Carvalho Jr., cidadão de Caxias - MA. O poeta é bastante conhecido por aqui e já possui um reconhecimento merecido para além da região dos Cocais, o que não me surpreende, uma vez que seus versos tem qualidade. E ter qualidade na arte poética não é apenas escrever poemas que falem ao coração. É ter riqueza de linguagem. É ter coragem de expressão. É saber ser significativo hoje e sempre. E Carvalho Jr. pode se gabar de reunir esses adereços.

O livro em si, enquanto objeto-poético, é bem convidativo: o layout e a disposição interna dos poemas, bem como a escolha das epígrafes na abertura de cada uma das partes do livro salta aos olhos. É gostoso de ver, e depois a leitura torna-se mais prazerosa ainda.

Quanto à temática, eu dividiria esta obra em dois momentos: primeiro temos poemas que nos ligam à infância, ao corpo-erótico, à solidão. Porque se conhecer e (re)conhecer sua essência é necessário; o medo e o silêncio são latentes, mas a coragem de viver é maior:

"teu nome é uma tejubina - libélula - borboleta
que dança os meus arco-íris da infância
nas armadilhas e incêndios de uma bolha de sabão." (p.30)

Em um segundo momento, o "índio fantasma da tribo Quirola" (que é como se define o eu poético) nos mostra um espaço muito bem traçado, com elementos que se voltam para a memória da cidade, com a denúncia recorrente de sua decadência e o descaso de seus habitantes; temos também o rio que perpassa tudo e todos e que, juntamente com o povo, tenta resistir às violências do cotidiano. É sempre interessante ler poetas que nunca se esquecem de sua função social. Porque a palavra bem dita tem força; ela se espalha e não se perde: 

"passa o rio como um cachorro magro...
tudo que bebe são assobios de socós
e a seca indiferença dos bocós." (p.39)

Finalizo por aqui, me permitindo dizer o que eu mais gosto nos poemas de Carvalho Jr.: é o uso da explosão de cores e de neologismos com que ele burila a palavra; sua concisão e ironia me agradam muito. Abusar da linguagem assim é um exercício que requer prática para não parecer óbvio. Porque, na verdade, como disse o poeta francês moderno Paul Valéry, o poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras, muito embora não saibamos o efeito da ação dessa máquina a longo prazo em nossos espíritos. O efeito dessa "máquina" em mim hoje é de êxtase e de contemplação. Só posso me emocionar com o que é verdadeiro para meus olhos:

"pare,
olhe,
escute:
nem o trem
nem a fome 
do mundo
passaram 
ainda."(p.27)


sexta-feira, 2 de junho de 2017

Ainda estou aqui - Marcelo Rubens Paiva

Resultado de imagem para Ainda estou aqui
(Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2015)

Tentava, a todo custo, ser tratada não como uma doente, uma demente, mas como um ser igual a todo mundo, que, com a idade, é traído pela memória, fica velho, fica esquecido, fica esclerosado, velhinha.(p.27)

Olá meus leitores da vida, tudo bom? Vamos a mais uma resenha de uma ótima leitura! Ainda estou aqui (2015), romance do Marcelo Rubens Paiva, vocês podem adquirir sem medo aqui.

Por meio de um relato bem memorialista porém marcado pela objetividade de fatos verídicos, em que ficção e compromisso com a verdade se entrelaçam fortemente, o narrador tem como ponto de partida a descoberta de que sua mãe possui mal de Alzheimer. Por iniciativa própria, ele aceita ser seu tutor e, consequentemente, questiona como uma mulher como Eunice Paiva em breve não se lembrará mais de sua vida. 

E que vida, hein? Poucas pessoas podem se gabar de terem chegado aos 77 anos de forma tão ativa quanto Eunice, que teve que se reinventar aos 41 anos, com 5 filhos pra criar, no auge da década de 1970 e do regime militar; que teve que aceitar que o suposto desaparecimento do marido Rubens Paiva, engenheiro e ex-deputado federal, na verdade, foi um assassinato perpetrado por torturadores do DOI.

 A revolta transmutou-se em uma luta na persistência de existir: a moça de ascendência italiana e que adorava ler, formada em Letras, resolveu fazer faculdade de Direito e refazer a vida, triste por dentro mas alegre por fora. Terminou de criar os filhos, driblou as questões burocráticas legais por não conseguir provar sua viuvez - já que o corpo de Rubens nunca foi encontrado, abraçou a causa do Direito Indígena nos anos 1980...ufa! Tem mais, muito mais.

Histórias como a de Eunice devem ser lidas para que nos lembremos que uma vida inteira ainda é pouco pra quem quer realizar tanto. Histórias que tem como pano de fundo o período negro do regime militar no Brasil devem ser resgatadas e discutidas sempre que possível, já que somos, em grande parte, um país sem memória, tanto para fatos longínquos quanto para os fatos recentes. Também pudera. Quem nos educou de fato nos ensinou a pensar, a lutar? Quem nos educou nos deu o conhecimento das verdades não-oficiais? Um pessoa sem memória a gente aceita, pois a doença é algo involuntário. O que não se aceita mesmo é um país sem memória; sem olhos para o passado.

Assim era o Brasil da ditadura: o órgão que deveria defender os índios defendia os fazendeiros que invadiam as terras indígenas; a polícia federal, que deveria defender o direito do cidadão, defendia o Estado e o poder, que se sentia ameaçado pelo cidadão. (p.205)

sábado, 20 de maio de 2017

3 obras literárias que viraram ótimas adaptações cinematográficas

Olá meus amores-leitores da vida!!! Tudo bom com vocês neste mês de maio? Espero que sim!!! Na última segunda-feira (15/05/2017) saiu nossa participação no canal Cinetê, do querido youtuber Renan Ferreira - fizemos lá um gostoso bate-papo sobre literatura e a sétima arte. Indicamos 3 obras literárias que tiveram ótimas adaptações cinematográficas, vocês sabem que amo cinema né?


O filme "O vestido" tem a história baseada no poema "Caso do vestido" de Carlos Drummond de Andrade. Uma esposa é totalmente apaixonada pelo marido e acredita firme e forte no poder do amor e do casamento...até a chegada de uma "mulher do demo" que vem de fora e enfeitiça o marido da outra, usando um belo vestido. O que acontece no final? Leia o poema e depois assista o filme ;) 





O filme "Moça com brinco de pérola" é baseado no romance homônimo da autora norte-americana Tracy Chevalier. Olha o trailer aqui:




Por último mas não menos importante o meu preferido da vida! O filme "As horas" é baseado no enredo do romance também homônimo do autor norte-americano Michael Cunningham, que inclusive ganhou o maior prêmio literário dos EUA por essa obra em 1999, o prêmio Pulitzer. Olha o trailer do filme aqui:



Com exceção do Drummond, claro, os outros 2 autores ainda estão na ativa ;) Já assistiu ou já leu essas obras que indiquei? Comenta aqui no blog! P.S: meus ex alunos de Literatura de Língua Inglesa com certeza já fizeram um dos dois rsss....

quarta-feira, 26 de abril de 2017

"Você gosta de poesia?" - Sobre a Poesia Marginal ou a Geração Mimeógrafo



Resultado de imagem para poesia marginal


Você gosta de poesia? Se sim, deixe de lado seus pré conceitos sobre poesia, principalmente sobre poesia marginal. Não, ela não foi produzida por um bando de loucos sem rumo, sem eira nem beira, que só queriam bagunçar o cenário intelectual arrumadinho nos idos das décadas de 1960,1970 e começo de 1980. Não, eles não eram alienados. Eles queriam bagunçar, mas também queriam espaço e voz que não eram dados a quem queria uma terceira opção de expressão.

Em um contexto social complexamente bipolar, bipartidário, unilateral e pouco plural, dominado por frases de efeito como “ordem e progresso”, “ame-o ou deixe-o”, em que ou você era conservador e a favor do país e da família ou era comunista e guerrilheiro, contra a moral, os poetas marginais propunham novas experiências literárias; novas vivências; um novo caminho de existência, talvez, um caminho do meio no meio de poucas opções de ser.


O ser humano precisa de mais do que isso pra viver. A poesia é de todos, para todos. É um momento de comunhão de emoções, de doação de sentimentos variados, que não se limita a um pedaço de papel ou a um reconhecimento acadêmico. A poesia transborda do papel para virar música – pois um dia era lira e aqui volta a seu estado original; a poesia transborda em gestos e olhares com o público, pois qual o motivo de poetar sem ter alguém pra dialogar? Serei eu um poeta? Qualquer um pode ser poeta, produzir poesia, a palavra é minha, por que não? Por isso a pergunta é tão simples e ao mesmo tempo tão urgente: você gosta de poesia?

Apresento-lhes então Torquato Neto, Waly Salomão, Ana Cristina César, Cacaso, Chacal, Charles, Afonso Henriques Neto, Francisco Alvim, Paulo Leminsky. Marginais porque plurais; marginais porque espontâneos; marginais porque a literatura, na verdade, precisa de aventura e de loucura. Marginais porque a poesia não precisa de aprovação de um grupo seleto pra acontecer. O povo é onde minha poesia acontece. Ser poeta é ter atitude. O mundo é grande e minha poesia não se limita ao céu.

DEVENIR, DEVIR (WALY SALOMÃO)

Término de leitura
de um livro de poemas
não pode ser o ponto final.

Também não pode ser
a pacatez burguesa do
ponto seguimento.

Meta desejável:
alcançar o
ponto de ebulição.

Morro e transformo-me.

Leitor, eu te reproponho
a legenda de Goethe:
Morre e devém

Morre e transforma-te.   


Temos um grupo de performance em que fazemos intervenção poética: ler poemas para causar espanto e reflexão. Porque poesia é isso. É o nosso instante. E é o bastante.





domingo, 26 de março de 2017

A câmara sangrenta e outras histórias, de Angela Carter

Resultado de imagem para a camara sangrenta angela carter
(Porto Alegre: Ed. Dublinense, 2017)

Casado três vezes no decurso da minha própria breve vida com três graças diferentes, ele agora me convidara, como se para demonstrar o ecletismo de seu gosto, para integrar essa galeria de mulheres bonitas - eu, a filha da viúva pobre [...] (p.20)

Olá de novo meus amores leitores! Mais uma resenha literária maravilhosa que hoje trago para vocês: um conto da não menos maravilhosa autora inglesa Angela Carter e sua atualização dos clássicos contos de fadas. Atualização sim, pois Carter (re) conta algumas destas clássicas histórias populares valorizando a figura da mulher, promovendo assim um pensamento mais empoderado e forte sobre a figura feminina na sociedade.

Essa obra chegou pra mim neste mês de março pois sou assinante da Tag Experiências Literárias; já contei aqui em outro post que tenho gostado muito da seleção de livros que chegam mensalmente. Quem fez a indicação de A câmara sangrenta e outras histórias para nós, assinantes da TAG, foi a não menos maravilhosa escritora Marina Colasanti. Como o mês de março é "considerado" o mês da mulher, a proposta de leitura / discussão da obra segue essa linha mesmo: refletir sobre a força feminina na sociedade e perceber como nós, mulheres, podemos ser e somos agentes transformadores do nosso próprio destino.

Publicado em 1979, A câmara sangrenta e outras histórias "explora o tema do feminismo ao contrastar elementos tradicionais da ficção fantástica -que habitualmente descreve personagens femininas como frágeis e desamparadas - com protagonistas fortes e impositivas." (Revista da TAG, p.13)

Não conhecem Angela Carter? Indico essa obra aqui embaixo, ó, para começarem a ver um pouco do trabalho de pesquisa e seleção de contos populares que ela realizou, e como suas reflexões sobre o universo feminino foram e são importantes para a literatura:


Resultado de imagem para a menina do capuz vermelho e outras histórias
(São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011)

Carter é uma mulher de seu tempo: vivenciou as lutas e conquistas femininas a partir da década de 1960 e ela não se omitiu - deu voz bem alta a muitas personagens em suas narrativas, ao mesmo tempo em que se aprofundava no estudo, coleta e análise de contos populares ("contos de fadas") das mais diversas culturas. Segundo ela, o resgate dessas histórias nos revela que "o passado foi duro, cruel e especialmente hostil para as mulheres, por mais desesperados que tenham sido os estratagemas que usamos para fazer as coisas um pouco à nossa maneira." (2011, p.23).

Mas vamos à história de A câmara sangrenta? Aqui só falaremos deste conto, para que vocês fiquem com gostinho de quero mais e leiam os outros contos da obra de Carter. Ele é uma "repaginação" moderna do famoso conto de fadas Barba Azul, popularizado séculos antes por Charles Perrault. Carter traz a história narrada pela própria personagem, a mocinha virgem e pobre que aceita se casar com um homem rico e beeeem mais velho - ela é sua quarta esposa. Não há indícios de amor, mas de um grande desejo de posse, por parte do marido, e de curiosidade, por parte da jovem. Ela se atrai por esse mundo luxuoso e pela aparência viril e forte que aquele homem tem a lhe oferecer: por isso aceita casar-se.

Ele me beijou e colocou a mão imperativamente sobre o meu seio, por baixo da bainha de renda antiga [...] (p.31)

Ele a leva para seu castelo à beira do mar, na região francesa da Normandia, "isolado do continente pela maré durante metade do dia." (2017, p.25) Sim, era um castelo cujo acesso  para o continente se dava apenas quando a maré baixava; quando estava alta, o castelo ficava mesmo isolado. Após uma breve lua de mel e apresentação do imenso lugar à sua esposa, o marido lhe dá todas as chaves de todas as portas do castelo, fazendo porém a ressalva sobre uma delas em específico: "prometa-me que vai usar todas as chaves no anel exceto essa última que lhe mostrei." (p.38) E em seguida ele lhe diz que precisa fazer uma viagem de negócios de última hora.

Consumida pela curiosidade, a jovem, é claro, decide não só explorar o castelo como também entrar na câmara proibida: lá, descobre que é uma câmara de tortura mantida pelo marido, responsável pelas mortes de suas ex-esposas. E agora? Como ela fará para se desvencilhar deste casamento fadado à tragédia?

No famoso conto de fadas, Barba Azul é um homem rico e poderoso que propõe casamento a uma jovem pobre. Com isso, ela vê uma oportunidade dupla: sair do lar e ter compensação financeira. Mesmo impactada pelo aspecto feio da barba e sinistro mesmo de seu pretendente, ela se casa. Ele também lhe diz que ela pode desfrutar de tudo o que existe no castelo, com exceção de um quarto secreto. Mesmo assim, ela cede à curiosidade e adentra o recinto proibido, dando de cara com as atrocidades cometidas pelo marido contra suas esposas anteriores, que permaneciam degoladas e penduradas, tal qual um açougue.

Não vou contar o final das duas histórias - a clássica e a "repaginada" por Angela Carter, porque vale muito a pena a leitura de ambas. Mas devo dizer que fiquei muito feliz em ler o final de A câmara sangrenta: demonstra que realmente nós, mulheres, devemos sim ser solidárias umas com as outras. Somente um senso forte de irmandade e cumplicidade entre mulheres nos salvará de um mundo em que ainda se aceita toda e qualquer forma de violência masculina. Temos esperança de que um dia homens e mulheres se respeitem de tal forma que não precisem mais se enxergar com tantas diferenças.

Lancei um último olhar desesperado da janela e, como num milagre, vi um cavalo e seu cavaleiro galopando a uma velocidade vertiginosa ao longo da passagem [...] (p.64)