domingo, 4 de dezembro de 2016

A filha perdida - Elena Ferrante

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(Rio de Janeiro, Ed.Intrínseca, 2016)

"O corpo de uma mulher faz mil coisas diferentes, dá duro, corre, estuda, fantasia, inventa, se esgota [...]" (p. 45)

A autora italiana Elena Ferrante, que não sabemos quem é, pois este nome é seu pseudônimo, nos presenteia com uma rara e emocionante visão sobre a maternidade neste romance curto e de linguagem envolvente, bem longe de ser piégas. Leda é uma bela mulher na faixa dos 40 anos, independente, professora universitária, cujas duas filhas adultas foram embora para morar com o pai no Canadá. Logo ela se vê estranhamente livre e desobrigada de suas funções de mãe, e resolve passar as férias em uma cidade italiana à beira da praia, a fim de descansar e preparar suas aulas para o próximo semestre.

Por frequentar a praia todos os dias, Leda começa a observar o relacionamento entre a jovem Nina e sua filha de dois anos Elena, percebendo também a dinâmica das relações familiares (conflituosas em silêncio) de Nina com a família de seu marido, um homem bem mais velho. Essa observação faz com que Leda relembre sua própria trajetória como mulher que foi mãe jovem, revelando sentimentos contraditórios na educação das filhas, procurando detalhes do passado que pudessem justificar suas ações. Em suas lembranças, Leda também "passa a limpo" a figura de sua mãe, mulher cujas atitudes insensíveis são criticadas por ela. O amor de mãe é questionado nesse romance, por ser o tema principal.

"Como adulta, sempre tentei me lembrar do sofrimento de não poder mexer nos cabelos, no rosto, no corpo de minha mãe.[...]"(p.57)

Ocorre um fato meio "dramático" um pouco antes da metade do romance e que definirá o resto do desenvolvimento da história: a menina Elena perde sua inseparável boneca no dia em que ela mesma se perde de sua mãe, na praia. Leda é quem encontra a menina, chorando, não porque se perdeu da mãe, mas porque perdeu sua boneca. Essa boneca também se torna metaforicamente um gatilho para as várias lembranças de Leda, principalmente as ações que definiram o rumo de sua vida e a tornaram a mulher que é no tempo presente.

"Às vezes, precisamos fugir para não morrer." (p.84)

A leitura de A filha perdida não serve apenas para refletirmos sobre as questões maternas, mas acima de tudo para pensarmos em como nós, mulheres, maduras ou jovens, mães ou não, nos relacionamos entre nós; o que é que nos falta para nos tratarmos com mais gentileza e com menos obrigações imputadas a nós pelas convenções sociais? O que é que falta a nós, mulheres, irmãs, mães, filhas e avós, para que nos enxerguemos com mais humanidade, para além dessas imagens instituídas pela sociedade? 

"As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender." (p.6)

domingo, 20 de novembro de 2016

O Orfanato da Srta.Peregrine para Crianças Peculiares - Ransom Riggs

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( São Paulo: Leya, 2015)

Na onda das adaptações de livros infanto-juvenis para o cinema, optei por comprar e ler, este mês, O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares do autor norte-americano Ramson Riggs. Ele é um autor jovem, blogueiro e formado em Cinema e com certeza sua escrita rápida e ágil reflete o conhecimento do seu público: ele sabe que somos leitores impacientes! Então, para quem gosta de ler e de aventuras fantásticas, O Orfanato não deixa o ânimo cair em nenhum momento. E se você é curioso, vai querer comprar os outros dois livros que completam a trilogia:   Cidade dos Etéreos e Biblioteca de Almas.

A história é a seguinte: Jacob, um garoto adolescente super introvertido, testemunha o assassinato de seu avô, com quem  tem uma ligação muito forte, por um ser estranho e de olhos reluzentes. Antes de morrer, no entanto, o avô diz para Jacob procurar a Ave, para que lhe explique toda a verdade, já que a partir daquele momento estará desprotegido. Sem saber no que acreditar, se na fantasia ou na realidade, os pais de Jacob o levam para sessões no psicólogo, pois acham que o garoto não aceita a perda do avô. Para tentar a cura total do trauma, o psicólogo incentiva os pais a deixarem Jacob ir à ilha de Cairholm, no País de Gales, para conhecer o lugar onde seu avô viveu a infância e adolescência: um orfanato.  

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Lá, Jacob descobre que existe uma fenda no tempo ao se deparar com Emma Bloom, uma jovem peculiar moradora do orfanato. Basicamente ela o leva para o dia 03/09/1940 - essa é a fenda que se repete e que permite a Jacob viajar entre passado e futuro e a descobrir todo o mistério que cercava a vida de seu avô: ele era uma criança peculiar, assim como todos que vivem ainda no orfanato dirigido e protegido pela Srta. Peregrine, que tem o dom de se transformar em uma ave: o falcão-peregrino. É ela que explica ao garoto tudo sobre a condição dela de ser uma ymbrine, que as crianças peculiares são dotadas de poderes especiais e que por isso não podem viver normalmente na sociedade, pois não são aceitas. Mas acima de tudo a Ave explica a Jacob, um pouco tardiamente, claro,  sobre a facção dissidente dos peculiares que geraram os monstros chamados de etéreos, controlados por semi-humanos, os acólitos.

"Você acha inteligente discutir o futuro com crianças do passado?" (p.195)

Ao conhecer e travar amizade com as crianças peculiares, Jacob também descobre que precisa ajudá-las e que não está ali por acaso - porém precisa decidir entre viver essas aventuras ou voltar à vida normal com os pais na Flórida. Se você assistiu o filme dirigido por Tim Burton, esse que estreou este mês, deve ter se encantado com a produção e a fotografia: logo eu sou suspeita pra dizer, sou megafã dos filmes de Burton, desde Edward Mãos de Tesoura! Porém, da metade do livro em diante já não corresponde mais ao que é contado no filme, óbvio: a linguagem cinematográfica tem outro propósito rsss E o melhor é que, longe da indecisão, posso dizer que gostei muito dos dois, livro e filme! Por isso recomendo: podem se jogar neles nas férias, pessoal!

Ah! E não esqueçam de apreciar no livro as fotos das crianças peculiares...as imagens conseguem falar por si só...será?

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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO, de Ursula K.Le Guin

( São Paulo: Ed. Aleph, 2014) 

"O inesperado é o que torna a vida possível" 
(p.122)

Este é um clássico do gênero de ficção científica, mas para aqueles que acham que essa escrita só possui autores homens que vão desde H.G.Wells, passando por Isaac Azimov, J.R.R.Tolkien e Philip K. Dick (que também são autores que amo), é porque ainda não leram as narrativas da norte - americana Ursula K. Le Guin. A obra me chegou às mãos pela primeira vez quando eu tinha 15 anos, mas o que é que eu entendia, nessa época, em plena década de 1990, de feminismo, igualdade de gêneros, solidariedade humana, globalização? É...eu era uma adolescentezinha bem egoísta, com certeza. Hoje, ler novamente A Mão Esquerda da Escuridão me traz à tona todos os conceitos filosóficos e sociais que tanto tenho lido ao longo dos anos (sou uma mulher de minha época), e são justamente esses pensamentos que tornam a leitura da obra tão significativa pra mim, 20 anos depois.

Primeiramente os dados técnicos: Ursula ainda está viva e A Mão faz parte de um ciclo de 5 romances chamado de Ciclo de Hainish ou Ecumênio, e saber disso faz todo o sentido, pois você poderá começar a leitura por qualquer um deles, já que irá se deparar com a essência da narrativa em todos esses romances: um representante do Ekumen é enviado a um planeta para estabelecer e oferecer uma aliança de paz que propõe compartilhar os mais diversos saberes, promovendo o desenvolvimento das nações com tolerância às diferentes características de cada planeta:

"Há oitenta e três planetas habitáveis no espaço Ekumênico e, nesses, cerca de três mil nações ou grupos antrotípicos.[...] Ekumen é nossa palavra terráquea; na língua comum, é chamado de Família" (p.43; p.136)

A história de A Mão Esquerda da Escuridão é a seguinte: Genly Ai é o enviado do Ekumen ao planeta Gethen, um planeta extremamente distante que ele mesmo chama de Inverno, pois a temperatura raramente está acima de 0º graus Celsius. Mas o que mais chama a atença de Ai são os habitantes do planeta: andróginos, sem uma aparência de gênero definida. A pergunta imediata que ele se faz é: como lidam com o sexo? Como se reproduzem? Como se constituem em sociedade?  Ao mesmo tempo que tenta entender esse choque cultural primordial - Genly Ai está diante de uma sociedade plenamente igualitária, já que não faz distinção dos gêneros masculino e feminino - ele tem que mostrar-se confiável ao rei de Karhide a fim de cumprir sua missão. Karhide, assim como Orgoreyn, é um dos poucos países existentes em Gethen, já que o planeta possui apenas uma pequena faixa de terra habitável. O restante dele é só geleira, precipícios e mares congelados.


Alternando a narração da própria história com mitos e lendas de Gethen, o leitor tem a experiência de realmente estar neste planeta, e acompanha as angústias e superações físicas, psicológicas e culturais de Genly Ai, até porque para alcançar o sucesso de sua missão, que é trazer Gethen para a liga do Ekumen, ele precisa não só confiar em uma pessoa que não conhece - o enigmático burocrata Therem Harth Estraven - mas também conviver e aceitar as diferenças deste povo que Ai não consegue entender.

"Sozinho, não posso mudar seu planeta. Mas posso ser mudado por ele. Sozinho, tenho que escutar, além de falar. Sozinho, os relacionamentos que eu finalmente tiver, se tiver, não serão impessoais e nem somente políticos: serão individuais, pessoais, serão mais e menos que políticos. Não Nós e Eles; não Eu e Ele; mas Eu e Tu."(p.248)

Por isso é que A Mão Esquerda da Escuridão não é apenas um romance de ficção científica qualquer: exige do leitor alguns conhecimentos sobre religiões (em especial o taoísmo), Psicologia, Sociologia e a questão mais atual de todas: a sexualidade e a diversidade de gêneros. Uma mão cheia pra você que busca uma leitura mais aprofundada sobre esses assuntos. Tudo isso regado ao clima getheniano: com bastante gelo, neve, nevasca e um belo cobertor de peles para aquecer.

"É bom ter um objetivo nas jornadas que empreendemos; mas no fim das contas, o que importa é a jornada em si." (p.214)