domingo, 5 de junho de 2022

"Três contos", de Gustave Flaubert

São Paulo: Ed.34, 2019.

Enfim, ele chegou - e esplêndido, aprumado sobre um galho de árvore que se atarraxava a um pedestal de mogno, com uma pata no ar, a cabeça oblíqua e mordendo uma noz, que o empalhador havia dourado, por amor ao grandioso. (p.47)

Vocês, caros leitores, já compraram um livro pela capa? Pois eu sim, várias vezes, e esta edição que traz contos do clássico autor francês Gustave Flaubert (1821-1880) me pegou de jeito ao resgatar, nessa capa linda, um desenho de Jean-Charles Werner (1798-1856), a qual foi retirada da obra Histoire naturelle des perroquets (1837-1838), de Alexandre Saint-Hillaire.* Sim, é o desenho de um papagaio brasileiro; por sinal, lindo né? Com as cores emblemáticas e fortes de nossa rica fauna. Sou dessas leitoras facilmente seduzidas por um belo projeto gráfico, e neste caso a Editora 34 não me decepcionou. Então comprei o livro em 2019 e só agora me dispus a lê-lo.

Não tenho medo de Flaubert pela linguagem realista que conheci ao ler e reler o grandioso Madame Bovary (1857), romance que didaticamente inicia a estética realista na Literatura. Mas certamente, enquanto professora atuante no Ensino Médio não a recomendaria a meus alunos, pelo menos não a priori. Há muitos pensamentos que devem ser amadurecidos quanto à personagem Emma Bovary, que para além de um mero escrutínio público, deve ser entendida como a mulher que se angustia diante da óbvia contradição de mundos: aquele real, onde vivemos e somos cumpridores de regras e convenções sociais, e aquele dos sonhos, romântico, para o qual escapamos tantas vezes por não aguentarmos simplesmente o peso e as obrigações do primeiro. 

Ler Flaubert enquanto escritor de prosa curta - não considero contos as narrativas de Três Contos (1877) e sim, novelas literárias, por sua densidade e desdobramentos mais complexos e longos - foi uma descoberta feliz, principalmente na escolha dos temas que conectam as três histórias: religiosidade, trato com animais e ficcionalização de personagens históricas, temas que ando gostando bastante de perscrutar em textos literários.

A primeira novela, Um coração simples, narra o transcorrer da vida de Felicité, uma mulher comum e trabalhadora, cujo ápice de sua existência é ganhar de presente um animal exótico: um papagaio de nome Lulu, cuja procedência é das Américas, mais precisamente do Brasil. Ela se afeiçoa tanto à ave que desenvolve uma relação obsessiva e mítica com ele. Após a morte do animal, a dona decide empalhá-lo, transformando-o em ícone religioso e cultuando-o da mesma forma como a Jesus Cristo na cruz em frente à sua cama. 

A segunda novela, A legenda de São Julião Hospitaleiro, é narrada ao modo das hagiografias medievais (histórias das vidas de santos), só que, claro, seguindo a estética realista com o acréscimo de boas doses do gênero fantástico. Conhecemos a história que precede a santidade de Julião e nos horrorizamos com seu espírito sanguinário dedicado à caça e ao mórbido prazer de matar animais indiscriminadamente.  Sua ânsia só é aplacada quando, após matar um cervo negro, escuta deste a profecia de que um dia o jovem matará seus pais. Daí em diante, Julião vai embora de seu castelo abraçando para si o destino de soldado mercenário, poupando apenas as vidas dos mais frágeis: crianças, velhos e mulheres. Mesmo assim, a vida lhe prega peças e a mundanidade de seus atos o levará a uma outra tragédia, da qual só restará o caminho da penitência e do autoflagelo.

Julião caçou assim a garça-real, o milhafre, a gralha, o abutre. Gostava de soar a trompa e seguir seus cães, que corriam pela encosta das colinas, saltavam os riachos, voltavam ao bosque; quando o cervo começava a gemer sob as mordidas, ele o abatia prontamente e então se deleitava com a fúria dos mastins que o devoravam, cortado em pedaços sobre a pele ainda fumegante. (p.63)

A terceira e última novela, Herodíade, narra ficcionalmente a última noite de João Batista, antes deste ser assassinado por Herodes Antipas e ter sua cabeça ofertada em bandeja a Salomé. Herodes claramente se deixa seduzir pela filha da esposa e sua dança na noite da festa de seu aniversário. A história bíblica já conhecida ganha contornos de suspense constantes pois Herodes teme matar o pregador, a quem se refere como Iokanaan, pois já foi advertido por um essênio de que se cometesse tal ato, a desgraça recairia sobre si e seu reino. O essênio tenta dissuadir o rei narrando que já viu as boas obras e milagres de outro judeu: Jesus. Mas Herodes, tomado de orgulho e para demonstrar à comitiva romana que acaba de chegar que possui controle sobre as insurgências de seu reino, opta por levar a cabo sua decisão. Um ponto de observação aqui é a forma como os animais são retratados: ora como elementos místicos, ora como vítimas, tanto da ira quanto da gula humana, ambos pecados capitais. E claro, a importância de Herodíade, esposa de Herodes, que sabe agir astutamente nos bastidores para preservar seus interesses, pois ela também tem sede de poder.

O estilo de Flaubert, ao contar essas três histórias com maestria e toques de fantasia e infortúnios, segue a influência do Realismo, descrevendo as cenas com detalhes, em especial aquelas concernentes às situações mais dramáticas. O autor nos brinda também, em vários momentos, com um narrador onisciente pleno de ironia e de linguagem crítica na medida certa. Por fim, é bom lembrarmos que uma narrativa realista se concentra em explorar o lado psicológico das personagens, mostrando toda sua complexidade humana. E isso encontramos nos três contos por excelência: ao nos depararmos com a  santidade de Felicité, Julião e Iokanaan percebemos que eles, acima de tudo, são humanos, cheios de falhas e incertezas, assim como nós. 

Havia quarenta anos que exercia a função de carrasco [...] e não ousava matar Iokanaan! Seus dentes estalavam, todo o seu corpo tremia. (p.121)


*Informações da própria editora 34 nesta edição.