sexta-feira, 17 de abril de 2020

A ingênua libertina, romance de Colette

(Rio de Janeiro: Ed.Nova Fronteira, 2019)

"Eu realizo muito bem a ideia que se faz de uma mulher da sociedade" (p.100)

Olá beletristas, tudo pom? Espero que todos vocês estejam conseguindo lidar com o isolamento / distanciamento social nestes tempos muito loucos, e que tenham encontrado um caminho do meio para equilibrar a mente, pois é necessário. Por aqui seguimos bem e fortes, de vez em quando surtando - o que é normal também, porque ninguém é de ferro. A indicação de leitura da vez é o romance da autora francesa Colette, A ingênua libertina, publicado originalmente em 1909.

Eu sempre tive vontade de ler algo de Colette (1873-1954), sabe. Ela é uma das escritoras mais celebradas da primeira metade do século XX na França, muito por causa dos temas que aborda em suas obras e que se direcionam à questão da liberdade feminina e à conquista do amor e do prazer. E são esses temas que encontramos e que norteiam a história de A ingênua libertina. O romance é dividido em 2 partes e protagonizado por Minne, uma jovem da pequena burguesia parisiense extremamente entediada e possuidora de uma mente imaginativa...bastante ilusória.

A primeira parte nos mostra Minne com 15 anos sonhando em ser raptada pelo bandido Cabelo de Anjo, de quem ela acompanha as histórias de fugas espetaculares pelos folhetins. Fortemente vigiada pela mãe viúva e tutelada à distância pelo tio Paul (irmão da mãe), Minne quer se libertar daquela rotina sem graça que vive. No auge de sua distorção da realidade, ela foge de casa de madrugada pois acredita que viu Cabelo de Anjo passando embaixo de sua janela. Ela segue-o até os guetos afastados de Paris, repletos de prostitutas, bêbados e outras espécies de criminosos. Percebendo o erro grave que cometeu, Minne volta aos trancos e barrancos pra casa; é encontrada desmaiada e suja na porta por sua mãe, que acredita que ela foi raptada e violentada. Solução para este fato? Casar Minne com o primo Antoine, apaixonado eternamente por ela e que acredita em sua ingenuidade.

Na segunda parte do romance encontramos Minne casada e levando uma vida...novamente entediada! 

"Esta é minha sorte, a minha vida, até que eu me canse!..." (p.76)

Aos olhos de todos ela é uma mulher recatada, mas por trás já contabiliza alguns amantes, que não a satisfazem. Minne os humilha, certificando-os de que eles não representam nada pois não sente nada por eles. Uma das falas mais lacradoras desta "ingênua libertina" é quando ela joga na cara do jovem Barão Couderc que não o ama (após uma tarde de sexo), muito embora ele ameace até se matar por esse amor não correspondido:

"Eu não o amo bastante para voltar. Ontem eu não tinha certeza. Anteontem não sabia nada. Você ontem não sabia que me amava. Nós dois fizemos descobertas." (p.98)

Bum! Uma mulher humilha o amante na alcova hahahaha. Taí o porquê de Colette ser tão celebrada e amada por suas leitoras da época - e creio que as de hoje também. A Minne casada e respeitada busca não só o amor, mas também o direito de satisfação sexual. Essa abordagem feita ainda no início do século XX por certo escandalizou muito a sociedade parisiense. Não darei spoiler sobre os caminhos que Minne percorrerá até encontrar o que procura, mas de todo modo gostei do final da história. 

A escrita de Colette ainda é muito marcada por influências das estéticas Realista e Naturalista dos grandes autores franceses; não é de se estranhar por causa da época, claro (primeira década de 1900), em que A ingênua libertina foi publicado. Lembrei-me muito dos romances Madame Bovary (1856, de Gustave Flaubert) e Therèse Raquin (1867, de Èmile Zola) - fica a dica de leitura desses clássicos, caso não tenha lido ainda ;) Mas principalmente enxergo várias características do Naturalismo presentes nesse texto de Colette. Por exemplo, a descrição de cenas picantes e com um certo erotismo, como nesse trecho em que Minnie não goza e ela odeia o amante por não saber lhe proporcionar esse prazer. :

"Enquanto fala, ele a despe. [...] detesta ferozmente o êxtase dessa criança fogosa, o desmaio que ele não sabe lhe dar. Esse prazer ele o rouba de mim!" (p.96-97)

As analogias de atitudes humanas com animais (a tal da zoomorfização):

"É principalmente alguma coisa indefinível, um ar agressivo e desolado, esse cinismo e esse relaxamento de animal que vive, alimenta-se, coça-se  e se satisfaz ao ar livre..." (p.57)

 E a descrição de cenas de bairros pobres de Paris bem como as pessoas que lá habitam (os excluídos da sociedade: prostitutas, bêbados, homossexuais, bandidos etc.):

"Minne, ofendida, humilha o aborto com um olhar majestoso" (p.58) 

O termo "aborto" é utilizado para se referir a um homossexual; nada mais naturalista, no sentido de que as pessoas possuem vícios sexuais, pois nessa época pensava-se e julgava-se assim. 

De vanguarda mesmo só a temática que falei anteriormente: a busca da liberdade feminina, pelo amor e prazer, até porque Minnie o faz sem nenhum remorso ou medo das consequências. 
Ao fim da leitura cabe refletir sobre as atitudes de Minne antes de julgá-la tão duramente: será ela uma vilãzinha egoísta e mentirosa ou ela apenas tem coragem suficiente para ir atrás de sua felicidade e satisfação enquanto mulher, recusando-se a se conformar com tão pouco?