sexta-feira, 20 de março de 2020

"O xará", romance de Jhumpa Lahiri

(São Paulo: Biblioteca Azul, 2017)

"O nome que ele detestava tanto, ali escondido e preservado - essa tinha sido a primeira coisa que o pai lhe dera." (p.334)

Olá beletristas! Em tempos de pandemia, uma das melhores formas de aguentar uma quarentena é ler um bom livro, né? E principalmente um livro que nos faça pensar em nossa cultura, nossas origens. Saber de onde viemos é importante para saber para onde vamos e para reforçar nossos princípios e convicções. E quem sabe também, aprender com o outro, pois um dos grandes desafios dessa globalização pós - moderna é refutar a individualidade e exercitar a solidariedade.

A autora inglesa de ascendência indiana/bengali Jhumpa Lahiri nos traz muitas reflexões com seu romance O xará, publicado em 2003. A história gira em torno da vida de Gógol Ganguli, nascido norte-americano porém filho de um casal de imigrantes bengali, Ashoke e Ashima, que tentam a todo custo manter suas tradições e raízes vivas para os filhos, apesar de eles estarem o tempo todo fugindo dessa cultura que não se acham pertencentes. Para complicar toda a situação existencial de Gógol, existe a tradição de se nomear um filho na cultura bengali que é bem peculiar - pode-se levar anos até que se decida o nome correto para a criança, sendo que o normal é que ele tenha dois nomes: um familiar e outro "oficial", que reafirma sua existência para o mundo exterior.

Gógol teve o nome escolhido por seu pai por causa de uma história trágica que aqui não falaremos para não dar spoiler; desde já adianto que no início do romance levamos um soco no estômago. Mas à medida que cresce, Gógol percebe o quanto seu nome lhe parece esdrúxulo demais: primeiro porque ele não é russo, segundo porque não gosta de literatura russa nem sente afinidade com seu xará, o famoso autor russo Nikolai Gógol. Terceiro, seu nome nem é prenome, é um sobrenome. Está feita aí a confusão que acompanhará o jovem rapaz ao longo de sua vida, levando-o a considerar de fato a mudança de nome na maioridade, algo super comum nos EUA.

Mas o que a narradora no fundo quer nos fazer enxergar por meio da história de Gógol são questões muito mais profundas e que retomam a temática do deslocamento físico e emocional vivenciado por imigrantes e filhos de imigrantes, no caso aqui os da cultura bengali. O nome de Gógol é a ponta do iceberg para puxar reflexões sobre pertencimento cultural mais complexas: os pais de Gógol vivem num círculo fechado de amigos bengali, estando sempre num "limbo" intercultural (americana x bengali) ; os filhos desses pais imigrantes, representados por Gógol e sua irmã Sonali e depois pela noiva de Gógol, Moushumi,  são aqueles que vivem a cultura americana e fogem da cultura de seus pais, e sendo assim, permanecem deslocados, buscando seu lugar no mundo. 

A escrita de Lahiri consegue nos fazer visualizar, como um filme, a vida de Gógol Ganguli até o início dos 30 anos, que é quando ele começa a perceber o que o une e o que o distancia de sua cultura. Claro que essa percepção se dá devido a algumas reviravoltas em sua vida, como acontece de praxe na vida de todo ser humano. O certo é que ao lermos sobre as lutas internas, percalços e memórias de Gógol, descobrimos que, no fundo, somos o resultado daqueles que nos geraram e/ou nos conduziram pela vida. Em suma, não importa muito o que fazemos nem para onde vamos, o quão longe seja: estamos sempre impregnados daqueles que vieram antes de nós, nossos ancestrais. Não há como escapar.