segunda-feira, 24 de maio de 2021

"A ilha de Arturo", romance de Elsa Morante

 


MORANTE, Elsa. A ilha de Arturo. São Paulo: Berlendis&Vertecchia, 2003.

"Depois, eu mesmo me instruí, lendo os livros que encontrava em casa. Meu pai nunca cuidou para que eu frequentasse a escola: eu estava sempre de férias e meus dias de vagabundo ignoravam normas e horários. Apenas a fome e o sono marcavam a hora de eu voltar para casa." (p.39)

Mais uma leitura sob indicação de dona Elena Ferrante, uma das mais famosas autoras italianas da contemporaneidade (aposto que você já ouviu falar dela e da tetralogia napolitana ;) Para quem não sabe, Ferrante soltou uma lista em novembro de 2020 com 40 indicações de obras escritas por mulheres contando histórias de mulheres (clica AQUI ) e uma delas é o romance A ilha de Arturo (1957), de sua conterrânea Elsa Morante (1912-1985), por quem se diz muito influenciada pela escrita. Confesso que fiquei curiosa pois já tinha escutado, em outros tempos, sobre Morante, muito mais sobre ser a escritora-esposa de outro escritor, quem sabe, mais famoso até para os leitores: Alberto Moravia (1907-1990).  Ao ler Morante deixei que sua narrativa lírica, fluida e que beira o mítico e a fantasia se apoderasse de mim como leitora. Livros que incomodam e que te deixam rastros de amor e ódio não são livros para serem esquecidos, isso é um fato.

Este é um romance de formação e quem narra suas memórias é Arturo Gerace, o qual sabemos, por um indício ou outro, que já está numa fase mais madura da vida e que recorda seus primeiros 16 anos vividos em solidão e liberdade na ilha de Procida ("uma ilha do mar napolitano"). É um estágio da vida, esse, narrado com tons mágicos e de altas idealizações sobre o mundo exterior, haja vista que o menino não tinha muito contato real com nada que existisse além dos limites daquela ilha. Morando em um palacete decadente, Arturo era órfão de mãe (que morreu ao lhe dar a luz) e abandonado pelo pai, que passava longos períodos ausente dali, sem dar notícias, e com o mesmo mistério que chegava, ia embora. Em suas lembranças, por exemplo, Arturo relembra como foi alimentado e cuidado na primeira infância por Silvestro e como sabia que era querido por ele mesmo após ter ido embora para ser soldado: todo ano, em seu aniversário, recebia um cartão do ex-cuidador. 

Uma coisa que chama a atenção é a história sobre como Wilhelm Gerace, pai de Arturo, herdou o palacete onde morava, apelidado de Casa dos Rapazes: fez amizade ainda jovem com Romeu, o velho misógino dono do local. Este se afeiçoou tanto ao rapaz alemão que, ao morrer, deixou-lhe a casa em testamento. A lenda que corria à boca pequena na ilha era que aquele era um lugar amaldiçoado para as mulheres, haja vista que Romeu odiava-as, proibindo sua presença ali, permitindo que a casa/palacete fosse frequentada apenas por homens. A lenda se fortalece com a morte prematura da mãe de Arturo, de modo que por muitos e muitos anos não houve ali uma presença feminina. Até Wilhelm casar-se novamente e trazer sua jovem esposa Nunziata, apenas dois anos mais velha que o filho. Alguns conflitos, como é de se esperar, tem início. 

A chegada de Nunziata coincide com a entrada de Arturo na puberdade e com todas as dores, questionamentos e descobertas sexuais e emocionais comuns à essa etapa da vida. É também a perda da inocência e da ingenuidade sobre um mundo tão lindamente construído por Arturo mas que na verdade só existe em sua mente.  As fichas cairão de forma cruel e desoladora para o menino que construiu para si um futuro de grandes aventuras, como ele achava que era a vida do pai. Há uma ambivalência de sentimentos em relação à jovem madrasta, e seu olhar perante uma mulher, que antes reproduzia a misoginia do pai, é desconstruído gradualmente, a partir da convivência diária.

"A aventura, a guerra e a glória eram privilégios masculinos. As mulheres, ao contrário, eram o amor" (p.76) 

Um romance de formação espera que o leitor acompanhe e sinta, na medida em que se é empático, as dores e os amadurecimentos do protagonista. Na ideia de que aprendemos mesmo é pela dor, e que a passagem para a vida adulta nunca se dá de forma gratuita, nos revelando ensinamentos que só entenderemos mais tarde, é que nos relacionamos, muitas vezes de forma angustiada, com os desesperos e descobertas de Arturo. Não posso deixar de comentar aqui que a ambientação extensamente descritiva da ilha de Procida, a qual em seu topo abrigava um castelo medieval murado que servia de prisão, me deixou ainda mais encantada com a escrita de Morante. Todos os recantos dessa ilha já haviam sido apossados por Arturo, que os conhecia como ninguém. As passagens mais lindas do romance e as que consigo me transportar de imediato são os mergulhos no mar sem fim e a vista infinita do horizonte, como se a ilha fosse o reino de Arturo. "Como se" não; ele era o rei. Talvez por isso o confronto com a realidade da vida é tão terrível para esse menino, que no fundo de seus desejos mais simplórios, apenas ansiava viajar ao lado do pai.

Solidão e liberdade nunca estiveram tão bem descritos e personificados nas páginas de um romance; daí advém meu incômodo, também ambíguo, com essa narrativa: creio que meus sentimentos se unem a Arturo na urgência de descobrir incessantemente o mundo e saber que não há barreiras para isso. Mas sou mulher e aí lembro que a liberdade pregada e vivida amplamente nessa história coube quase que exclusivamente aos homens (digo "quase" pois uma personagem feminina quebra um pouco desse ciclo de subserviência, que é Assunta). A misoginia e os insultos dirigidos às mulheres também me incomodaram demais ao longo da leitura, mas isso não tira, nem de longe, a potência da narrativa de Morante. Aqui aplica-se a lei do "como se escreve": é assim que se seduz um leitor, para além de qualquer temática incômoda.

"Eu, concluí orgulhosamente, sempre fui sozinho, durante toda a minha vida." (p.137)




quinta-feira, 13 de maio de 2021

"Desmoronamento", conto de José Nascimento Moraes.

(Foto de José Nascimento Moraes. Arquivo pessoal)


(Foto de arquivo pessoal)

Num daqueles sobradões que se erguem no último quarteirão da rua Cândido Mendes (hoje da Estrela), morava, há setenta anos, o coronel Francisco Bernardo de Sousa Coutinho, um dos mais abastados lavradores do Estado e figura de alta representação assim na cidade de S. Luís, como em empresas e companhias que coletavam grandes lucros em suas transações em toda a província.

Não era grande a família do Coronel Coutinho, que se casara aos trinta anos de idade com a filha mais velha do coronel Arelino Maia, alto funcionário da Recebedoria. Chamava-se Amélia Maria Coutinho a sua esposa e era de sua idade.

Casamento feliz e louvado. Conforme o conceito daquele tempo, viviam em harmonia porque facilmente se compreendiam. Ao fim de 20 anos de matrimônio, contavam dois filhos: o Américo, um rapagão forte que havia tantos anos de idade quanto os pais de casados; e Vitorinha, de dezoito anos.

O Américo não dera para nada. Aos 20 anos era apenas um gozador. Só falava em festas e pagodeiras. A Vitorinha era de outra pipa. Aos 17 anos já era uma moça prendada. Estudava no recolhimento com as freiras. Falava bem o francês, o inglês e o italiano. Escrevia bem e com elegância o português. Tocava, com admiração de todos, o piano. Estudava canto com a esposa do poeta Cláudio Tigreiro, educada em Paris. Três vezes por semana, lá se ia Vitorinha, para a aula, acompanhada de uma escrava, lá no Campo do Ourique, num dos vastos prédios que tem a frente para o poente.

Os dois irmãos não pareciam em coisa alguma. O rapaz dava tudo pelo luxo. Vitorinha era de uma simplicidade encantadora. O rapaz era um temperamento ardente, impulsivo; Vitorinha era meiga, delicada e de uma afabilidade atraente. Diziam então que o Américo saía ao pai e que a Vitorinha era a cópia da mãe.

Mas apesar dos erros do Américo e de suas grandes despesas, o casal não se sentia mal; porque o Coronel Coutinho, no íntimo, gostava do filho. Os seus arrebatamentos, os seus declives para o prazer, eram atestados eloquentes de sua paternidade.

Quando se declarou o namoro entre Vitorinha e o Manuel Arruda, caixeirinho da Praia Grande e estudante de escrituração num curso comercial, o coronel Coutinho e D. Amélia ficaram desapontados. Não demorou que o desapontamento crescesse e se transformasse numa atitude enérgica que abateu profundamente o ânimo de Vitorinha.

Travou-se então, uma luta terrível: de um lado, o coronel Coutinho, D. Amélia, a parentela e os amigos do casal. Todos achavam que o Arruda, um pobretão, um João Ninguém sem eira nem beira, sem um nome ilustre ou acatado, não podia aspirar tão grande honra como fosse casar com a Vitorinha, moça rica, de uma família respeitada, brilhante figura da sociedade de São Luís. O Coronel Coutinho sentia-se humilhado. Aquele namoro ridicularizava a sua família.

Pobreza não é defeito, disse-lhe certa vez a Vitorinha. E disse-lhe mais: "Dinheiro não é grandeza. Nome de avós nem sempre é um título honroso. Meu pai está muito errado em suas convicções." Mas o coronel Coutinho não podia aceitar esse modo de ver da filha. Ouvindo-a, ficou escandalizado. Teve a impressão de que ouvia uma louca.

Em São Luís a sociedade estava dividida em castas, bem caracterizadas, pelos recursos, pelo traje, pela habitação e pelos bairros. Os indivíduos dessas castas eram plenamente convencidos de sua condição. O operário estava conformado com a sua pobreza e não procurava sair dela. O que ganhava dava para suas despesas. Era feliz por isso. Os filhos frequentavam uma escola primária e depois, aprendiam um ofício qualquer, e por vezes o próprio ofício do pai. Só envergava um paletó e calçava sapatos ou botinas aos domingos, dias santos ou feriados. E assim mesmo esses eram os mais graduados. Os mais eram descalços e em mangas de camisa. Traziam chinelos de couro cru nos mesmos dias em que vestiam o paletó.

Os funcionários também viviam modestamente. Esses não tinham outra ambição que não fosse esperar que o mais graduado morresse ou se aposentasse. Pela sua pouquidade de recursos materiais, viviam encostados, numa atitude de inferioridade aos ricaços da Praia Grande, padrinhos de seus filhos, e que por isso lhes dispensavam alguma consideração e lhes faziam pequenas dádivas, ou abastados lavradores ou criadores, chefes de partidos políticos ou figuras altamente representativas da administração pública da Província.

Havia os "camisas fora da calça", os "camisas curtas", ambos descalços, que não eram operários propriamente ditos mas artesãos, trabalhadores de serviços pesados, carregadores de móveis e bagagens que não tinham direito a coisa alguma e moravam em mansardas, embaixo de sobrados, em casebres dos bairros mais inóspitos.

Os pobres não podiam levantar a cabeça diante dos ricos. Os ricos olhavam com desprezo para a pobreza.  Os simples levantavam-se à passagem de um rico. Um da arraia miúda ao passar diante de um potentado, cumprimentava-o. Conhecia-se mulher escrava porque em lugar do casado, usava o cabeção. 

Não havia promiscuidade. Em qualquer parte, homens e mulheres eram conhecidas pelos seus trajes. Os pobres não moravam nos bairros dos ricos. Nos préstitos religiosos ou cívicos, agrupavam-se as castas. Cada indivíduo procurava o seu lugar. Adulador era o pobre que frequentava a casa do rico. Indigno e baixo era o rico que se punha em contato com os pobres. Os pequenos não podiam comentar fatos que se passavam nas casas dos ricos.

Ora, o coronel Coutinho e D. Amélia não podiam ver com bons olhos o casamento de Vitorinha com o Arruda.  A família do coronel Coutinho perderia todo o seu prestígio se a Vitorinha casasse com o Arruda.

O coronel Coutinho pôs então, em prática, uma politicazinha de bastidores, para a qual vantajosamente concorreu D. Amélia. Mandaram que todas as famílias amigas habilmente procurassem Vitorinha e lhe fizessem sentir a sua degradação. Porque aquele namoro com o Arruda era, sem mais nem menos, uma degradação!

Vitorinha passou a ser visitada pelas amigas. E passou a receber das mesmas amigas, amiúde, convites para passeios, festas. Era preciso arrancar a Vitória da influência moral do caixeirinho. E para fazê-la, urgia distraí-la e aproximá-la dos rapazes elegantes e ricos que frequentavam a alta sociedade.

Vitorinha não frequentava a alta sociedade. Passara muitos anos a estudar no recolhimento. As obrigações escolares não lhe haviam permitido recrear-se. Às primeiras horas da noite passava a fazer exercícios de redação, traduções e leituras. Durante três anos esteve internada por causa dos estudos de piano e canto. Quando terminara o curso, havia adquirido hábitos que não se ajustavam às exigências da vida social. À noite, não podia passar sem ler um livro bom, instrutivo. E para se aperfeiçoar no piano, pedira ao pai para falar ao pianista francês Churè, de grande nomeada em São Luís, para lecionar em casa. O pianista aquiescera e Vitorinha, com o advento da novidade, entregou-se a novos estudos de piano. 

O namoro lhe prejudicava os estudos. À hora do almoço, Vitorinha via passar o seu namorado de quem recebia com um sorriso e uma grande promessa no olhar o cumprimento, o olhar e o sorriso. Aos domingos e dias santos encontravam-se pela manhã na igreja da Conceição. Cumprimentavam-se de longe. Esqueciam a missa para trocar olhares que diziam um ao outro o que a palavra não podia dizer. O encanto desse namoro, que era o tipo normal dos namoros naqueles tempos, estava nas cartas que trocavam amiúde, por intermédio de uma pretinha, Isidora, cria do coronel Coutinho e muito dedicada a Vitorinha.

As cartas de Arruda eram o encanto espiritual de Vitorinha, que vivia pela delicadeza dos sentimentos daquele rapaz pobre que se rendera cativo de sua beleza, de sua educação e de seus sentimentos. Essas cartas, escondia-as ela no baú de Isidora, onde ninguém mexia.

A politicazinha deu resultado. Um rapaz rico, educado na Europa onde passara catorze anos, apaixonou-se pela Vitorinha, ou melhor, pelas prendas da Vitorinha. Porque a verdade era que a filha do coronel Coutinho não era uma beleza que impressionasse à primeira vista, a quem quer que seja. A beleza de Vitorinha só podia ser revelada ao olhar penetrante do homem inteligente e sentimental, a quem fosse dado a oportunidade de a ver muitas vezes de perto, de a ouvir e receber o influxo poderoso de sua voz admirável, cheia de tonalidades sedutoras a serviço de suas ideias e de seus pensamentos.

Vitorinha não encontrava no Armando Saraiva predicados que lhe sujeitassem o coração. O Saraiva era um rapaz elegante, acostumado às rodas sociais. Falava várias línguas sem correção e contava com muita graça o que fora sua vida nas grandes capitais europeias. Fazia descrições interessantes de coisas que por lá vira, delineava aspectos curiosos de praças, de monumentos, de palacetes, de ruas, e fazia silhuetas de tipos característicos de várias civilizações e de índoles diversíssimas.

Foi esta a ponte alegre porque Armando passou a se aproximar de Vitorinha, sempre insinuada pela roda de suas amiguinhas adestradas em convencê-la de que o Armando era um excelente casamento. O coronel Coutinho e D. Amélia estavam satisfeitíssimos com o caso. Quando o Arruda soube do que estava se passando, recebeu um choque tremendo. Passada, porém, a primeira impressão, tomou uma resolução inabalável. Reagiu, heroicamente, contra a fraqueza e contra o desespero que o assaltaram ao mesmo tempo. Escreveu uma longa e comovedora carta à Vitorinha e dois dias depois embarcava para Belém do Pará.

A educação de Armando, à europeia, era em São Luís um simulacro de educação. Armando bebia todas as bebidas alcoólicas. Passava as noites em orgias nas casas das horizontais mais afamadas de S. Luís. Depois das reuniões familiares a que comparecia, Armando entregava-se em companhia de mulheres vadias a excessos que, por vezes, avultavam como escândalos. Ao dia seguinte, a meia voz, toda a cidade sabia do caso, com todos os pormenores. Citavam-se os nomes das "horizontais" que haviam tomado parte da farra! Era inútil negar ou procurar estabelecer a balbúrdia, em torno do que se passara. Aliás, Armando não escondia suas diabruras. Acostumara-se nos grandes centros de civilização a fazer tudo às claras. Mulheres, prazeres, vinhos, que havia demais?

Quando chegava à casa depois das duas horas da madrugada a Vitória perguntava-lhe por onde andara, guiando a turma. Com a língua perra, desmanchado nos gestos, dessasseiado nas palavras, fazia um relatório de indecências e obscenidades. Passavam diante dos olhos de Vitorinha páginas cruas de um mundanismo imoralíssimo. E, quando o Armando lhe citava os nomes dos companheiros, que eram os de pessoas de elevada posição social, que lhe haviam sido apresentadas pelo coronel Coutinho como pessoas respeitáveis, exemplos de honra, dignidade e brio, Vitorinha ficava estarrecida! Cuidava, a princípio, que seu marido mentia para se justificar, apesar de embriagado, mas depois, como aqueles nomes apareciam sempre no rol de seus companheiros, convenceu-se de que o marido exarava a verdade em chegando de suas pagodeiras.

Vitorinha, a princípio aturdida, depois curiosa, chegou por fim à fase da indignação e de revolta. Passou a receber o marido com admoestações, numa linguagem quase cordial. E o marido ria de seus conceitos:

- És uma mulher adorável! O coronel Coutinho muito se esforçou, coitado, para te dar uma esmerada educação. Reconheço o seu esforço. Mas afinal, que poderia ele arranjar aqui na Província? Ficaste provinciana, convencida porém, de que és uma mulher superiormente educada, és! E queres agora meter na minha cabeça essa bagaceira que a bom dinheiro tivestes no recolhimento, como se meu cérebro fosse um estômago. Deixa-te de bobagens! E acredito que sou um marido exemplar porque não te engano, não te minto e sempre te falo com a franqueza que caracteriza um homem bem educado. Precisas, minha filha, de dar um passeio pela Europa.

***

Anos depois, quem por acaso visitasse o Portinho estranhava de encontrar ali entre as rameiras uma mulher que, pelo aprumo, pela conversação, bem mostrava que rolara dos salões opulentos de uma sociedade de gente rica. Era Vitorinha, que já muito alcançada pelos anos, vivia em companhia de um vendedor de frutas, o caboclo Coriolano, um quarentão insolente e amante da pinga.

Não a conheciam bem os moradores do Portinho. Vitorinha rolava devagar depois da morte do pai, que se acabara numa meia morada à rua da Misericórdia, depois que o Armando, já sem um vintém da herança paterna, também o arruinara. 

Extinguira-se o esplendor daquela sociedade. Os ricos de ontem haviam ficado pobres e os seus descendentes, sem letras e sem cargos para trabalhar, estavam vegetando na vala comum. O Armando vivia no Beco do Prego, junto ao Zé do Coxo, com uma cocheira muito ordinária. Alugava burros e cavalos e nas horas vagas, ébrio, cantarolava uma canção inglesa ou francesa, reminiscência dos anos ditosos que passara na Europa. O Américo perdera jeito de gente e era um autêntico caboclo do Pindaré, onde cultivava umas terras que houvera de seu pai.

***

Aquele Arruda caixeirinho viera de passeio a S. Luís em companhia da esposa. Era chefe de importante casa comercial em Belém do Pará. Casara-se com uma paraense rica. Estava no seu destino, a riqueza. Meteu-se no Hotel Central, num espaçoso apartamento no flanco direito. Uma tarde, quando lia A Pacotilha, o criado anunciou a vendedora de frutas e afastou-se da frente da porta. Entra a vendedora, com umas atas bonitas, numa bandeja. O Arruda levantou a cabeça e deu de cara com a Vitorinha.

FIM

GLOSSÁRIO:

1. RECEBEDORIA: repartição pública que recolhe impostos ou taxas.
2. CAMPO DO OURIQUE: local atual da Praça Deodoro (no Centro de São Luís-MA).
3. CAIXEIRO: balconista de loja.
4. RECOLHIMENTO: convento de freiras.
5. EM MANGAS DE CAMISA: mal vestido ou só vestido com a camisa, sem paletó.
6. MANSARDAS: morada miserável; o desvão desse tipo de telhado é provido de janelas e transformado em último andar habitável da casa; água-furtada.

OBS: Valério Santiago era um dos pseudônimos utilizados por Nascimento Moraes, meu bisavô, para publicar seus contos, os quais, na verdade, constituem verdadeiras crônicas sobre a sociedade maranhense e em especial, a ludovicense. Os contos foram escritos e publicados na Revista Athenas (década de 1940), um suplemento de variedades (inclusive literárias) vinculado ao jornal O Imparcial. 

OBS 2: Referência do conto:

MORAES, Nascimento. Vencidos e degenerados & Contos de Valério Santiago. São Luís: SECMA; SIOGE, 1982. 332 p.(edição da biblioteca particular da família Nascimento Moraes).

OBS 3: Referência das fotos publicadas aqui:

MORAES, Nascimento. Contos de Valério Santiago. São Luís: SIOGE, 1972. (edição da biblioteca particular da família Nascimento Moraes).

OBS 4: Sobre Nascimento Moraes, um dia escreveu sobre ele o autor Josué Montello:

...Minhas dívidas de escritor para com a pessoa e a obra literária de Nascimento Moraes não são pequenas. Tive-o entre os meus mestres do Liceu Maranhense. Tive-o entre os guias de algumas de minhas leituras essenciais. E contei-o sempre entre os meus amigos. Pude sentir, assim, numa convivência, demorada, a grandeza de sua inteligência e de sua cultura. E posso avaliar o que ele teria sido, se houvesse se deslocado dos horizontes da província o cenário de suas ilusões. Haveria de perder algumas, como todos nós. Mas pelo menos o benefício de uma irradiação maior de seu nome ele teria tido. Porque essa irradiação Nascimento Moraes a merecia pelas virtudes de seu talento e de seu saber.

(Da coluna de crônicas Areia do Tempo, escrita por Josué Montello para o Jornal do Brasil)