segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Dote - Artur Azevedo (*resenha crítica de Mônica F. Abreu)

(São Paulo: Martin Claret, 2009)

Tu conheces as minhas ideias a respeito do casamento. Marido e mulher só podem ser absolutamente felizes quando se identificam um com o outro a ponto de se confundirem numa só individualidade. (p.123)


Artur Azevedo (1855-1908) foi um jornalista e teatrólogo maranhense que contribuiu muito para o cenário da dramaturgia brasileira entre o fim do século XIX e começo do século XX. Nascido na capital São Luís (MA), Azevedo sempre se destacou por seu discurso irônico e crítico contra a elite de seu estado. O autor alcança mais reconhecimento com suas peças após se mudar para o Rio de Janeiro, sendo um grande defensor da construção do Teatro Municipal desta cidade, o qual ele não chega a ver pois morre meses antes de sua inauguração. 

A peça teatral O Dote é uma comédia em um ato, escrita em 1875 e apresentada pela primeira vez em 1877. A história se inicia com Ângelo recebendo várias contas de sua esposa Henriqueta para pagar e ele acha que ela está gastando demais, porém não tem coragem de lhe chamar a atenção. Em uma conversa com seu melhor amigo Rodrigo, Ângelo desabafa sobre sua situação conjugal, admitindo estar à beira do endividamento por causa das compras sem fim de Henriqueta.

Muito prático, Rodrigo lhe sugere o divórcio, justificando que a esposa do amigo é perdulária e está dissipando o patrimônio. Só há um empecilho para que este ato se concretize: o casal em questão é muito apaixonado um pelo outro. Estabelecido este conflito, percebemos um pouco o papel do homem nesta sociedade. Azevedo cria um personagem que vivencia um impasse entre o ser e o dever ser, pois espera-se que Ângelo tenha pulso firme com sua esposa, o que não acontece, pois ele se submete a seus caprichos. 

Ao colocar em pauta a questão do divórcio como solução para as incompatibilidades conjugais, Azevedo se adianta na discussão desse tema bastante incômodo para a sociedade. Considero a inclusão desse tema na peça como algo avant garde. 

Por fim, O Dote nos leva a refletir sobre o que é mais importante em um casamento / relacionamento: os padrões e regras sociais, o dinheiro ou o amor?

Só sei que vocês gastaram em um ano e meio de casados mais de duzentos contos de réis. Estão - como direi - arruinados. (p.157)

* Mônica França Abreu é beletrista e aluna do 2º período do curso de Letras/ Inglês da Universidade Estadual do Maranhão (Campus Coelho Neto).

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O Gigante Enterrado - Kazuo Ishiguro

(São Paulo: Companhia das Letras, 2015)

"Não lembramos das nossas brigas mais difíceis nem dos pequenos momentos que foram deliciosos e preciosos para nós. Não lembramos do nosso filho nem porque ele está longe de nós." (p.59)

Mais uma indicação de peso aqui no blog, não é meus queridos? Trouxemos o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2017, o escritor naturalizado inglês Kazuo Ishiguro e seu último romance, O Gigante Enterrado ("The buried giant"). Essa também foi a obra mais recente que meu clube de leitura discutiu, agora no final de janeiro. 

Ishiguro ganhou pontos comigo ao me transportar para a Inglaterra medieval de meados do século V / VI: a "paz" entre bretões e saxões está prestes a acabar, com a morte do Rei Arthur. Uma névoa insistente permeia as vilas inglesas, fazendo com que as pessoas esqueçam de coisas de seu passado antigo e recente. Criaturas fantásticas povoam e convivem com aldeões e cavaleiros, a exemplo de ogros, bruxas e fadas. E no meio de tudo isso um casal de idosos, Axl e Beatrice, resolvem finalmente fazer uma jornada: visitar o filho que não veem há décadas.

Ao longo da penosa viagem, o que nos comove o tempo todo é a forma com que Axl trata Beatrice - chama-a de "princesa" e nunca sai do seu lado, afirmando sempre que "está bem ali". A cumplicidade e o carinho desse casal parece inabalável diante do propósito de ver seu filho. Porém eles não farão essa viagem sozinhos: se juntarão o guerreiro saxão Winstan; o menino Edwin; e ocasionalmente, o ex -guerreiro da Távola Redonda, Gawain.

Fica muito claro para nós leitores que o grande lance aqui nunca é chegar ao destino final dessa viagem, até porque surge a necessidade de se entender a razão das pessoas estarem esquecendo das coisas de seu passado e a razão de ninguém ainda ter matado a dragoa Querig - a fumaça que ela exala é que origina a névoa que induz ao esquecimento coletivo. E nessa história que se revela metade novela de cavalaria medieval, metade romance fantástico, Ishiguro nos mostra, na verdade, a construção de uma alegoria ou fábula: a da memória coletiva e individual.

A memória coletiva representada em O Gigante Enterrado se dirige às grandes catástrofes cometidas contra a humanidade, e a forma com que nós superamos esses fatos trágicos. A memória individual se dirige ao próprio casal Axl e Beatrice: eles possuem uma história, com lembranças boas e ruins. O questionamento proposto pelo romance é igual para ambos: é necessário esquecer para seguir em frente ou podemos olhar para os fatos, analisá-los e nunca esquecê-los, para não cometermos os mesmos erros?

A metáfora da névoa, que representa o esquecimento, nos coloca esse dilema: o ato de esquecer é melhor que o ato de lembrar? E perdoar o outro por seus atos extremistas, que um dia ocasionaram mágoa - será possível perdoar quem um dia nos magoou tanto?

Ishiguro definitivamente fala neste romance de tempos insanos e incertos; de tempos em que não podemos nos eximir de enfrentar nossas próprias batalhas, a tempo de curar as feridas da alma. Só assim, rememorando o passado, é que podemos construir um novo futuro. 

"[...] quando já não há mais tempo para salvar, ainda há bastante tempo para se vingar." (p.301)