domingo, 18 de setembro de 2022

"A vida de um homem de bem", conto de José Nascimento Moraes.

(São Luís, MA: SIOGE, 1972; edição esgotada. O livro pertence ao acervo particular da família Nascimento Moraes, mas também pode ser encontrado em sebos pelo Brasil, bem como no acervo da Biblioteca Pública Estadual Benedito Leite em São Luís-MA)

A vida de um homem de bem

Eu conheci Manuel Sotero Coruja quando iniciei a minha vida de professor particular, nesta cidade de S. Luís. Entre os primeiros alunos que recebi em março de 1921 para o curso secundário, na minha residência, estava Manuel Sotero Coruja. Era um rapagão alto, forte, de fisionomia simpática, gestos largos, voz pastosa e dicção clara. Tipo moreno, cabelo e olhos castanhos. Havia no seu olhar uma expressão de ingenuidade e no seu sorriso o reflexo de uma alma boa e generosa.

O respeitável cavalheiro, coronel Antônio de Carvalho e Melo, alto funcionário federal, fizera a sua matrícula. Era padrinho de Manuel Coruja. Fora no sertão do Maranhão, de onde era filho, amigo de seu pai, um caráter a toda prova e uma infatigável solicitude: Antônio Brandão Coruja. Home pobre, mas de muita vergonha e dignidade. Sobretudo - valente! Fora seu amparo durante toda a vida, mas não escondia os grandes favores que lhe ficara a dever.

E o coronel Antônio de Carvalho e Melo, chegando sua cadeira para junto da minha, e consertando os óculos no nariz romboide de pimentão, consertando o barrigame adornado sobre a calça branca, e depois cofiando a barba branca e longa, em flocos, disse-me:

- O pai do seu futuro discípulo morreu no avarandado de nossa fazenda, defendendo a vida de meus pais, a minha vida e a de meus irmãos. O chefe político local mandou matar-nos, alta noite. Eram seis capangas bem armados e montados, dos mais terríveis que ele pode arranjar em Goiás. Meu pai não esperava o ataque. Nada havia que o justificasse. Uma questão se levantara entre ele e o chefe político, por motivo da propriedade de umas terras, e o juiz resolveu-a a favor de meu pai. Apenas isto, mas fique certo de que foi o quanto bastou. O chefão, atrabiliário e vingativo, resolveu acabar com meu pai e a família toda. Defendemo-nos como pudemos, a rifle e à faca. Caíram mortos três capangas e dois irmãos meus, meu pai e o velho Coruja, que de passagem para Carolina, pernoitara na nossa fazenda. Por tudo isto o senhor pode compreender o interesse que tenho por ele, que é o mais velho dos filhos do Coruja e que minha família tomou sob a sua responsabilidade, para o fim de lhe dar uma educação conveniente. Peço-lhe pois, que faça tudo que lhe for possível para o rapaz progredir. Não faço questão de preço. A sua educação é para mim uma dívida de honra.

O rapaz não ouviu essa conversa porque ficara noutra sala, folhear as páginas do último exemplar da "Revista da Semana". Manuel Coruja, inteligente, vontadoso, progrediu nos seus estudos. Ao fim do terceiro ano já sabia os rudimentos da língua vernácula, escrevia desembaraçadamente, exercitava-se com vantagem no conhecimento de outras disciplinas, das que são mais úteis à vida. O padrinho pensava em colocá-lo numa repartição federal por meio de um concurso.

Manuel Coruja, pelo seu espírito de cordialidade, pelos seus sentimentos altruísticos, pela correção de sua conduta, havia conquistado a estima de seus colegas e professores do quadro do meu colégio. O padrinho aparecia-me sempre ao fim de cada mês para me pagar a sua mensalidade. Nessa ocasião não se cansava de o elogiar.

Estava satisfeitíssimo com o seu procedimento. Admirava o seu grande amor aos livros e a sua sobriedade nos prazeres. Contava-me que, aos domingos, mandava-o passear e que, apesar disso, raramente se aproveitava dessa franquia. O coronel Carvalho e Melo tinha também a seu cargo duas sobrinhas, filhas de um irmão, o mais velho que morrera na defesa da fazenda.

As meninas gostavam de dançar, e o Coronel tinha dificuldade em conseguir que Manuel Coruja as acompanhasse aos bailes. Tudo isso enchia de ufania o velho Coronel, que não podia esconder o orgulho que sentia por tão elevada construção moral, que a seus olhos se patenteava, e para a qual não concorriam os seus esforços:
- Quem é bom já nasce feito - repetia-me, como se houvera descoberto uma novidade.

***

No domingo da festa de Santa Filomena, que se fazia na igreja de Nossa Senhora do Carmo, apareceu-me, pela manhã, Manuel Coruja. Estava pálido e sombrio. Alisava de vez em quando, com os dedos, os bastos cabelos castanhos. Percebi que alguma coisa de mais se estava passando na vida de Manuel Coruja. 

Nove horas, sol festivo, e era grande o movimento na rua da Paz, no flanco direito do prédio que era do meu colégio e de minha residência. Convidei-o a ver da janela o movimento.

- Professor, eu vinha falar-lhe... Se me pudesse dispensar alguns minutos de atenção...

Estávamos no meu gabinete de trabalho. Não havia ninguém que nos pudesse interromper. Meu pai na sala de jantar picava fumo para o cachimbo. Minha mãe estava na cozinha.

- Podemos conversar, disse-lhe.

E Manuel Coruja principiou:

- Estou diante de um caso difícil...
- Difícil?
- Muito difícil! D. Gertrudes, a esposa de meu padrinho, de certo tempo para cá, entendeu de me namorar.
- Homessa! Que idade tem d. Gertrudes?

Manuel Coruja refletiu um momento e depois:
- Penso que ela ande pelos quarenta ou quarenta e cinco anos! Mas é ainda uma mulher bonita e forte. Parece ter menos anos!
- Não vive bem com o Coronel?
- Vive... parece-me que vive...
- E então como se explica...
- Não sei... Não sei explicar!
- E como você tem se conduzido?
- Como devo. Já lhe tenho pedido de mãos postas para o céu que me deixe em paz, que respeite o meu padrinho, que não me ponha a perder... Mas tudo inútil. D. Gertrudes insiste!

Fiquei sem saber o que dizer. Manuel Coruja não tirava os olhos de mim.

- Por que você não comunica a sua situação a seu padrinho?
- Não acreditará. É cego por ela. Não se cansa de dizer-me que D. Gertrudes tem todas as virtudes. Que é uma santa! Que desde os seus tempos de menina nunca amou outro homem que não fosse ele!

Embaraçado diante do problema, disse ao meu discípulo que não se precipitasse...que esperasse. Eu ia pensar no caso e ao dia seguinte lhe diria alguma coisa. Mas que poderia eu aconselhar? À noite, contei o caso a meu pai, que me ouviu com toda a atenção, e depois me disse:

- Este rapaz vai ser sacrificado.
- É impossível!
- Vai ser sacrificado, repetiu.
- Por que?
- Porque o caminho da salvação ele não pode segui-lo e você não pode apontá-lo.
- Por que?
- Porque o caminho da salvação é escabroso...
- Qual é então?
- É acertar o namoro com d.Gertrudes. Ficaria ele numa situação invejável. Ela o elevaria muito mais no conceito do Coronel!
- Horrível!
- Sem dúvida é horrível, e por isso ele está no olho da rua. Vai perder a proteção do padrinho. Dentro de poucos dias o protetor lhe votará ódio de morte e o desconceituará em todas as rodas. E d. Gertrudes ficará num plano superior. Haverá quem diga que ela é a mulher mais honesta do Maranhão!

***

E foi o que se deu. Uma semana depois, o Coronel procurou-me para me dizer que o afilhado era um bandido! E contou-me uma história asquerosa em que o Manuel Coruja aparecia como um cínico sedutor de sua mãe de criação! O coronel Carvalho e Melo pagou-me os dias de aula que me devia e retirou a sua responsabilidade. Deixei-o no topo da escada e, quando voltava, profundamente aturdido com o que se passava, senti passos na escada. Parei. Era o Manuel Coruja.

- Tudo está consumado! O senhor não me quis aconselhar, ou melhor, demorou em me dar um conselho e eu fui vítima da maior miséria deste mundo!
- Já sei de tudo!
- Quem lhe contou?
- O coronel Carvalho e Melo, que saiu daqui agora mesmo!
- Estou na rua. Deixei a mala na casa de um barbeiro e vim comunicar-lhe o que se passou.
- Está bem. Não se deixe vencer pelo acabrunhamento. Traga a sua mala para cá.

Manuel Coruja, depois que passaram os efeitos da maior decepção da sua vida, continuou os seus estudos. Mas já não era o mesmo rapaz. Amortecera-lhe a injustiça o brilho do olhar e apagara-lhe na fisionomia aquele ar de ingenuidade que era um dos traços mais fortes de sua simpatia. Para o distrair, dava-lhe a ler romances de Eça de Queiroz, do Zola e Aluísio então muito procurados, pelos que experimentavam os primeiros vôos literários. E assim, pouco a pouco, Manuel Coruja foi voltando a si. E uma tarde, depois do jantar, ele me disse:

- Professor, há dias que venho pensando em arranjar um emprego. Não me fica bem continuar aqui em sua casa, sem dar um vintém para as minhas despesas. Além disto, também tenho as minhas necessidades que só podem ser medidas pelo meu critério.
- Pois já que você pensa assim, vamos tratar de conseguir um emprego que lhe convenha.
- Se o senhor quiser, poderei passar todas as minhas aulas para a noite. Não vou prestar exames... Estudarei devagar, como for possível...

Estava resolvido o problema. Não foi difícil encontrar um pequeno emprego para Manuel Coruja, num escritório que se abrira por aqueles dias, de um rapaz que se propunha a emprestar dinheiro a juros. Precisava de um auxiliar que trabalhasse em dois expedientes. O serviço era simples. Manuel Coruja, dentro de pouco tempo, aprendeu o serviço com o próprio patrão que ficou muito satisfeito com a sua fácil assimilação. Dentro de poucos meses, Manuel Coruja correspondia plenamente às necessidades do escritório. E o capitalista, no melhor dos mundos, por que deixou de trabalhar no seu negócio. Apenas assinava os papeis, ou pela manhã ou à tarde. No segundo ano, Manuel Coruja já era melhor do que o patrão.

Relacionara-se com as casas comerciais, com os patrões, com os diretores de bancos e de companhias, com quase todos os funcionários públicos. Sabia do "momento" de cada um. "Momento", no caso, é a oportunidade de fazer a cobrança do título. Ele sabia que o sr. Fulano devia ser cobrado na casa da amante, às tantas horas; que o sr. Sicrano pagava sem pestanejar na hora da cerveja, no botequim tal, que o sr. Beltrano só pagava à noite, no jogo, no clube. Sabia os que deviam ser cobrados na residência da família e os que nunca eram encontrados no lar, porque ou sistematicamente respondiam que ele não estava ali, estando, ou porque raras vezes iam à casa. Manuel Coruja era um tratado de psicologia individual. Sabia todas as manhãs, de todos os pulos de inúmeras criaturas bem feitas na vida, e as causas de muitas infelicidades domésticas, da ruína de muitas casas comerciais, das aflições ocultas de muitos homens de responsabilidade. Pelos negócios do escritório que, dentro de pouco tempo, se tornaram abundantes, lastimara muitos casamentos em que a sociedade via farta messe de felicidade. De uma feita (nunca deixou de morar comigo), disse-me à hora do jantar:

- Fiz hoje dois negócios de que nunca mais me esquecerão em toda minha vida. Imagine o senhor que, às 8 horas, apareceu-me um cavalheiro, com uma fiança de primeira, para fazer um empréstimo de dez contos. Esse cavalheiro fez a transação às escondidas. Entrou habilmente no escritório, ocupou a secretária do patrão, que está sempre desocupada, de modo que os que estavam do lado de fora não o viram. Embolsou o empréstimo e soube sair sem despertar a mais leve curiosidade da freguesia que se acotovelava no guichê. Mais tarde, duas horas depois a senhora desse cavalheiro chegou sobraçando objetos embrulhados num papel fino. Vi logo que eram joias. Mandei-a entrar para o reservado das senhoras e vi as joias custosas. Queria empenhá-las por 15 contos. Valiam mais, muito mais. Mas o patrão ensinou-me que devia oferecer sempre um terço do valor real aproximado, salvo em casos excepcionais. Ofereci-lhe 5 contos e só fazia por se tratar de uma senhora, pois o patrão já até me dera ordens para acabar com os penhores, que quase geram aborrecimento e complicações. É o velho estribilho...Já sei de cor.

"A senhora, derramando lágrimas, pediu-me que fizesse a penhora ao menos por 7 contos. Fingi que recalculava e fechei o negócio. Compreendi que o noivado da filha era a causa do penhor. O noivo da menina era um rapaz rico. Ia entrar pela primeira vez na casa e não lhe ficava bem mostrar-lhe o espetáculo desagradável de uma casa cheia de móveis velhos e sujos, alguns deles avariados. Contou-me o caso de uma senhora distinta de suas relações, cuja filha perdera o casamento, porque o noivo achara repugnante o aspecto de sua pobreza. Sentiu-se mal e não voltou nunca mais à casa da noiva."

- E o marido?, perguntei-lhe.
- Adivinhe!
- Impossível.
- Jogador inveterado devendo no pano verde 10 contos de réis, 6 ao clube e 4 a um companheiro. Não lhe convinha ficar devendo! "Os compromissos de uma mesa de jogo são sagrados", disse-me. "E eu, hoje mesmo, vou pagar tudo! Não tolero humilhações. Muitas vezes tenho batido às portas dos Bancos para pagar a dívida de jogo!" Que tal o casal? E um não sabe da transação do outro! Quanta coisa se aprende numa casa como esta em que estou!

***

Um dia, inesperadamente, o Manuel Coruja foi despedido do serviço. Pela manhã, o patrão apresentou-lhe o seu substituto. Às 9 horas o rapaz apareceu-me aturdido e contou-me o fato. Acalmei-o, dizendo-lhe que se arrumaria outro emprego. O escritório era clandestino e ele nem podia exigir do patrão um atestado de conduta. Procurei mais tarde, o meu amigo, na sua residência particular, para saber se o Manuel Coruja lhe havia dado algum prejuízo:

- Que prejuízo! O Manuel é honestidade em carne e osso! Inteligente, ativo e muito arguto para o serviço. Mas é muito sério, cheio de muitos princípios, e daí, não se prestar, meu amigo, para certos negócios de minha casa, que depende de um curso de malandragem. Arranjei agora um águia, que é muito sensível à bossa da safadeza. Trabalhou no escritório de um camarada e deu grandes resultados à casa.
- Já deve ter alguma coisa.
- Não. Não foram corretos  com ele. Não lhe souberam compensar o serviço. E eu resolvi aproveitá-lo aqui, onde há margem muito mais para se cavar a vida!

Passaram-se aproximadamente seis meses e eu consegui outra colocação para ele, a qual consistia em reduzir à escrita as transações de uma fábrica que tinha dois sócios, um que a dirigia e outro que passava quase meio ano ausente de São Luís. Nessa fábrica, as coisas se encrencaram com o Manuel Coruja, logo no fim do primeiro mês. O patrão não gostou de seu processo de escrituração.

- Por que você assentou aqui esses duzentos mil réis?
- Porque o senhor pediu no dia 16 do passado.
- Mas essa quantia devia ficar na minha conta particular.
- Mas o dinheiro é da fábrica. Saiu e eu tenho de debitar.
- Mas eu não me esquecia de que havia retirado essa importância. Vejo agora aqui um conto e quinhentos de entrada?!...
- Foi o senhor que recebeu no dia 18, na casa do comprador Z, ficando de lhe dar o recibo depois. Como o senhor não voltasse, ele apareceu aqui e mostrou o seu vale e exigiu o recibo. Passei-lhe o recibo e dei a entrada!
- Pois não está certo. O senhor não podia passar o recibo sem minha ordem.
- E o vale do senhor?
- Não importava o vale! Quem pediu o dinheiro não foi a casa. Fui eu, no meu nome individual.
- Mas no vale estava o nome da fábrica, com a letra do senhor. Disse-me ele que não tem contas particulares com o senhor. Mas eu posso, se o senhor quiser, ir buscar o recibo.
- Não. Já agora fica assim mesmo. Mas não faça outra.

No fim do segundo mês, nova encrenca.  Manuel Coruja debitou o patrão por vários objetos que havia comprado a dinheiro para a sua casa particular, sem escapar uma grelha de assar carne, um cabo de vassoura, seis vassouras e cinco caixa de fósforos. Manuel Coruja ouviu novas observações. O patrão zangou-se deveras porque Manuel Coruja abriu um título - CONTA PARTICULAR DO SR. AMARO DE SOUSA.

Ao fim do terceiro mês nada houve a reclamar, porém, ao terminar o quarto, apareceu uma confusão nos preços de vários artigos de um fornecimento avultado. Os preços discordavam dos preços anteriores e, como as compras haviam sido feitas pelo patrão, Manuel Coruja reclamou e os fornecedores aceitaram a sua reclamação.

- Mas eu já havia concordado com os preços.
- Certamente, porque o patrão não reparou nos preços dos mesmos artigos do último fornecimento. Os preços não foram alterados.
- Bem, de fato, eu não sabia dessa circunstância.

Quase ao fim do ano, Manuel Coruja foi despedido da fábrica. Quando me comunicou que voltava outra vez à ociosidade, já não me causou surpresa. Os fatos que se passavam entre ele e o patrão, conduziam-no. para a porta da rua. Contudo, por curiosidade, quis ouvir o dono da fábrica, que era um velho camarada.

- Por que você despediu o Coruja?
- Ótimo auxiliar, mas tem um defeito que apaga todas as boas qualidades que possui. É teimoso a mais não poder ser. Imagine que eu, sócio da casa, gerente da fábrica, responsável por todas as transações do estabelecimento, imagine que eu tinha que aturar as teimosias dele. Acredite que nunca encontrei na minha vida um sujeito mais escrupuloso que o Coruja. Chega a ser uma doença!... Quando se aproximava o fim do mês era eu quem corria dele por causa da prestação de contas. O homem que toma nota de quarenta réis, que se debita por cem réis!

***

Manuel Coruja cumprira o que prometera: estudar à noite. Pelo que continuou a progredir. Durante muito tempo guardei os exercícios desse singular discípulo, para estimular os estudantes profissionais. Passaram-se quatro meses. Certo dia, um dos meus discípulos que terminava o curso de bacharel em Recife, vindo passar as férias em São Luís, ofereceu a Manuel Coruja um lugar de promotor no interior do Estado. Manuel Coruja, a princípio, recalcitrou. Não tinha habilitações para o cargo, porém, o acadêmico, nosso amigo, insistiu, e tanto fez que o Coruja, animado por mim, aceitou. O pai do acadêmico era amigo do Chefe do Estado e responsável político por dois importantes municípios, onde eram grandes as suas forças eleitorais. Não demorou a nomeação. Manuel Coruja partiu para o interior, levando, além de malas, um caixote cheio de livros que o deviam amparar no exercício da nova profissão. 

O pai do acadêmico, coronel Júlio Horta, deu-lhe diversas cartas de recomendação para os compadres e afilhados de seus pagos. Nesse emprego passou Manuel Coruja dois anos, dispondo de muita saúde. fruindo confortadora paz de espírito. Escrevia-me longas cartas sobre a politicagem municipal, sobre a organização da vida social e política dos municípios. As autoridades municipais estavam satisfeitas com o promotor. O juiz elogiava-o e dava-lhe um lugar de destaque. De vez em quando era chamado para prestar serviço na secretaria da Câmara Municipal ou da Prefeitura.

Ia assim, Manuel Coruja, um mar de rosas, quando um fato veio lhe perturbar a confortadora paz. Um dos chefetes do município, morador no termo em que atuava como promotor, abusa de uma das filhas e acusa como autor um vaqueiro de sua fazenda. A politicagem cerrou fileiras ao redor do chefete que era homem abastado e um dos sustentáculos do partido no município. Debalde o vaqueiro jurou sua inocência no caso. O delito tomou proporções de um grande escândalo e a conduta da polícia provocou acres censuras.

Quando o processo chegou à Promotoria, todas as vistas se voltaram para o promotor. Os politiqueiros assediaram-no. Era preciso salvar o chefete, fosse como fosse. O Partido não podia ficar desmoralizado. O silêncio do promotor não agradava os politiqueiros. Ninguém sabia o que ele pensava a respeito do caso. Os mais chegados a ele resolveram interpelá-lo. Quando fizeram, já a promoção estava feita e o promotor não voltou atrás. Era uma peça veemente contra o pai deflorador. O criminoso não esperou mais nada. Dormiu no termo, mas não amanheceu...

A politicalha assanhou-se, o promotor foi demitido. E para não ser assassinado, desapareceu do termo, aproveitando-se das trevas de uma noite tempestuosa. 

***

O situacionismo marcou-o. Nessa conjuntura ele me disse uma noite, depois do café:
- Vou aventurar uma colocação no Rio. Arranje-me uma passagem de proa, em qualquer cargueiro. 

Consegui-lhe um lugar de primeira classe com o agente do Loide. Dei-lhe cartas para alguns amigos na Capital da República. Colocou-se facilmente, logo que chegou, graças a um dos meus amigos. Duas semanas depois de estar no Rio era admitido como auxiliar num tabelionato. Escreveu-me satisfeito. Ganhava quinhentos mil réis por mês, afora o que a margem permitia.  Resolveu fazer o curso secundário. As noções que levava de várias matérias animaram-no a tomar essa resolução. E dois anos depois já havia feito cinco preparatórios. Passando a ganhar oitocentos mil réis por mês, resolveu satisfazer uma velha aspiração - casar-se com uma menina pobre de quem se apaixonara aqui em São Luís, desde a sua chegada.

Não podendo vir realizar o casamento aqui, mandou buscá-la e mais uma irmã menor. Fui eu quem tratou desse embarque. Maria Quitéria chegou ao Rio a 12 de julho. Manuel Coruja levou-a nesse mesmo dia para um hotel barato. Uma semana depois se casava, com uma simplicidade evangélica. No dia 22 do mesmo mês era a companheira vítima de uma dor violenta que ele dizia ser nos pulmões. Quando chegou o médico, muito depois do ataque inesperado do mal, Maria Quitéria já estava morta.

Manuel Coruja só faltou morrer de dor. Sofreu muito ao lado de sua cunhada, uma formosa menina de dezenove anos, Aurora Celeste. Complicou-se assim, rapidamente a situação. Pensou, pensou...e uma noite, depois do jantar, falou à cunhada:

- Celeste, você vai voltar para São Luís?
- Eu não quero voltar. Eu não vinha com Maria Quitéria. Minha avó foi quem me mandou, dizendo que a vida estava muito difícil...
- Como será então, Celeste?
- Eu não sei. Como o senhor quiser. Mas voltar, eu não volto.
- Celeste...
- Sinhô...
- Celeste...
- Fale, homem!
- Para ficares comigo, só se te casares comigo.
- O senhor é quem sabe...
- E tu queres?
- Se tu quiseres...
- Eu já lhe disse!...

Uma semana depois Manuel Coruja casava com Aurora Celeste e ficava morando com ela no mesmo quarto.

***

Contando-me esse episódio de sua vida, numa longa missiva, Manuel Coruja, satisfeito com o golpe que dera na dificuldade, assim se expressou:

- O destino me castigou. Reagi o que pude contra ele. O senhor bem sabe dos tormentos que passei. Mas estava escrito: para se feliz tinha que cometer, primeiro, uma bandalheira. Maria Quitéria me perdoará...

FIM

OBS: TRANSCRIÇÃO DO CONTO FEITA POR NATÉRCIA MORAES GARRIDO, bisneta do autor.






 

domingo, 4 de setembro de 2022

"Pé de Conversa" (1957), de José Nascimento Morais Filho. PARTE 1.

(Publicado originalmente em 1957 e depois na década de 1980; ambas edições estão esgotadas)

(O Antologia Poética, publicado este ano - 2022 - possui trovas selecionadas de Pé de Conversa; para adquirir este exemplar, clique AQUI)

Pé de Conversa é a segunda obra do poeta maranhense José Nascimento Morais Filho (1922-2009) e foi publicada originalmente em 1957, dois anos após seu famoso Clamor da Hora Presente (1955) agitar o cenário intelectual com poemas que defendiam a liberdade, a luta e a revolução do povo contra a opressão. Com bastante influência da cultura popular - lendas, costumes, provérbios, orações, cantorias, conversas com os caboclos do interior do Maranhão - o autor compôs quase 200 trovas de temas variados como superstições, relacionamento entre homem e mulher e relação do homem com a natureza, mas como reza a tradição, as quadras revelam versos principalmente de cunho lírico-amoroso.

A 1a edição de Pé de Conversa contém uma segunda parte, a qual agrega um material bastante extenso com muitas notas formuladas por Nascimento Morais Filho que explicam a origem das influências para cada uma das 193 trovas compostas. Essas notas funcionam como verdadeiros tratados antropológicos, sociológicos, históricos e linguísticos, constituindo um tesouro para nós, pesquisadores, já que resultam das próprias pesquisas do autor, fascinado pela cultura popular. Temos como exemplo a seguinte trova, logo no início:

"MORO NO BECO DO COUTO,
VAI QUEM QUER*, 56
DESCE COM JEITO A LADEIRA
QUE SENÃO, VAIS DE UMA VEZ!"
(MORAIS FILHO, 1957, p.6)

Nascimento Morais Filho explica na segunda parte a expressão VAI QUEM QUER*, relacionando-a ainda, à uma experiência sua: 

"Expressão com que, em muitos municípios da nossa terra o povo designa um lugar distante do centro urbano, às vezes de difícil acesso, sem interesse, sem movimento, aonde somente se vai por necessidade. Às vezes, também, o "vai quem quer" é no perímetro urbano como a despeito desse apelido que lhe pus, a rua em que moro; como em Turiaçu, onde além de ficar no coração da cidade, estão localizados, por estranha coincidência, a Coletoria Estadual e a Cadeia!" (MORAIS FILHO, 1957, p.76)

Em tempo: Nascimento Morais Filho era funcionário público estadual - Fiscal de Rendas do Estado do Maranhão, popularmente chamado de Coletor de Impostos. Foi pelo exercício da profissão, da qual só se aposentou na década de 1980, que ele viajou muito pelo interior, e em uma dessas ocasiões passou pela cidade de Turiaçu, onde conheceu sua esposa Maria da Conceição, em 1951. 

Em outro momento, encontramos a seguinte trova:

"COM CAFÉ* CRU DE MIL BEIJOS
MEU CORAÇÃO DEFUMEI,
ATÉ QUE VEIO A FORTUNA:
- QUANDO, MEU ANJO, TE AMEI..." 
(MORAIS FILHO, 1957, p.9)

A inspiração dessa trova é novamente explicada pelo autor na segunda parte da obra:

"Das duzentas e muitas orações que até o presente colhi, é a única em que figura o café como elemento mágico. Penso que não se deve a sua presença no nosso folclore por causa de seu valor sócio-econômico, mas como uma das muitas práticas de magia que sobrevivem na nossa sociedade." (MORAIS FILHO, 1957, p.76-77)

A 1a edição de Pé de Conversa contém ainda algumas raridades: 12 ilustrações a bico de pena do grande artista maranhense Newton Pavão. Tais ilustrações chegaram pela primeira vez aos olhos do leitor maranhense pois constituem representações de temas bem caros a nós, como a figura da quebradeira de coco, os diversos empregos da palmeira de babaçu e o tambor de crioula:


Outra raridade encontrada em Pé de Conversa é o resgate de 3 letras de música com reprodução de suas partituras, compostas pelo famoso José Ribamar dos Passos, apelidado Mestre Chaminé. São elas: Hino Nacional da Cachaça, Coquinho vem cá coquinho e Quebradeira de Coco de Babaçu:

HINO NACIONAL DA CACHAÇA

"SALVE CACHAÇA BENDITA!
BENDITA SEJAS, CACHAÇA!
- SUOR DO NOSSO PROGRESSO,
SANGUE AZUL DA NOSSA RAÇA!

CACHAÇA QUANDO FAZ FRIO,
SE CALOR, TAMBÉM CACHAÇA;
CACHAÇA NAS ALEGRIAS,
NAS DORES, TAMBÉM CACHAÇA!

COMPANHEIRO, MAIS DOIS DEDOS,
PORQUE ME QUERO AZUMBRAR*,
AINDA QUE EU VÁ NA TALHA*,
MAS QUERO TUDO VIRAR!"

*AZUMBRAR: no Maranhão significa "estar bêbado".
* IR NA TALHA: expressão muito usada pela irmandade de S. Martinho para designar que a pessoa está tão excessivamente bêbada que precisa ser carregada pelos outros; a "talha" é uma expressão metafórica originada do aparelho de mesmo nome, usado para levantar objetos pesados.

Quanto à obra em si, Pé de Conversa, foi a 1a vez na literatura maranhense que se publicou um trabalho com uma visão geral do nosso folclore, reproduzindo na escrita dos versos a sintaxe e a pronúncia popular. Sob o ponto de vista da crítica literária, considero que essa obra foi bastante revolucionária no sentido de colocar em pauta a oralidade, esta que é uma característica da expressão poética modernista. Ainda mais no Maranhão, que embora já apresentasse vários autores comprometidos com esta estética - era afinal a década de 1950, a década de ouro da literatura modernista maranhense, época em que explodiram muitas publicações em poesia e prosa - grande parte de nossos estudiosos não consideravam a literatura oral / popular algo que valesse a pena se dedicar ou divulgar. Claramente não era o que pensava Nascimento Morais Filho, haja vista que ele também lutou contra esse preconceito. 

Faremos uma série, ainda ao longo desse ano, trazendo mais curiosidades sobre Pé de Conversa, agregando a escrita das trovas às explicações sobre suas origens / inspirações formuladas e pesquisadas pelo autor. Esse post foi uma sugestão do querido amigo e pesquisador Dr. Dino Cavalcante (UFMA), no intuito de continuarmos a divulgar a boa literatura maranhense, se não para os brasileiros, mas ao menos e principalmente aos nossos conterrâneos. Até o próximo Pé de Conversa!

Natércia Moraes Garrido
Dona do Blog, Canal do YouTube e Instagram A Beletrista; professora, escritora, crítica literária e pesquisadora em Literatura Brasileira e Maranhense, em especial, das obras do meu avô, José Nascimento Morais Filho.


















 

domingo, 5 de junho de 2022

"Três contos", de Gustave Flaubert

São Paulo: Ed.34, 2019.

Enfim, ele chegou - e esplêndido, aprumado sobre um galho de árvore que se atarraxava a um pedestal de mogno, com uma pata no ar, a cabeça oblíqua e mordendo uma noz, que o empalhador havia dourado, por amor ao grandioso. (p.47)

Vocês, caros leitores, já compraram um livro pela capa? Pois eu sim, várias vezes, e esta edição que traz contos do clássico autor francês Gustave Flaubert (1821-1880) me pegou de jeito ao resgatar, nessa capa linda, um desenho de Jean-Charles Werner (1798-1856), a qual foi retirada da obra Histoire naturelle des perroquets (1837-1838), de Alexandre Saint-Hillaire.* Sim, é o desenho de um papagaio brasileiro; por sinal, lindo né? Com as cores emblemáticas e fortes de nossa rica fauna. Sou dessas leitoras facilmente seduzidas por um belo projeto gráfico, e neste caso a Editora 34 não me decepcionou. Então comprei o livro em 2019 e só agora me dispus a lê-lo.

Não tenho medo de Flaubert pela linguagem realista que conheci ao ler e reler o grandioso Madame Bovary (1857), romance que didaticamente inicia a estética realista na Literatura. Mas certamente, enquanto professora atuante no Ensino Médio não a recomendaria a meus alunos, pelo menos não a priori. Há muitos pensamentos que devem ser amadurecidos quanto à personagem Emma Bovary, que para além de um mero escrutínio público, deve ser entendida como a mulher que se angustia diante da óbvia contradição de mundos: aquele real, onde vivemos e somos cumpridores de regras e convenções sociais, e aquele dos sonhos, romântico, para o qual escapamos tantas vezes por não aguentarmos simplesmente o peso e as obrigações do primeiro. 

Ler Flaubert enquanto escritor de prosa curta - não considero contos as narrativas de Três Contos (1877) e sim, novelas literárias, por sua densidade e desdobramentos mais complexos e longos - foi uma descoberta feliz, principalmente na escolha dos temas que conectam as três histórias: religiosidade, trato com animais e ficcionalização de personagens históricas, temas que ando gostando bastante de perscrutar em textos literários.

A primeira novela, Um coração simples, narra o transcorrer da vida de Felicité, uma mulher comum e trabalhadora, cujo ápice de sua existência é ganhar de presente um animal exótico: um papagaio de nome Lulu, cuja procedência é das Américas, mais precisamente do Brasil. Ela se afeiçoa tanto à ave que desenvolve uma relação obsessiva e mítica com ele. Após a morte do animal, a dona decide empalhá-lo, transformando-o em ícone religioso e cultuando-o da mesma forma como a Jesus Cristo na cruz em frente à sua cama. 

A segunda novela, A legenda de São Julião Hospitaleiro, é narrada ao modo das hagiografias medievais (histórias das vidas de santos), só que, claro, seguindo a estética realista com o acréscimo de boas doses do gênero fantástico. Conhecemos a história que precede a santidade de Julião e nos horrorizamos com seu espírito sanguinário dedicado à caça e ao mórbido prazer de matar animais indiscriminadamente.  Sua ânsia só é aplacada quando, após matar um cervo negro, escuta deste a profecia de que um dia o jovem matará seus pais. Daí em diante, Julião vai embora de seu castelo abraçando para si o destino de soldado mercenário, poupando apenas as vidas dos mais frágeis: crianças, velhos e mulheres. Mesmo assim, a vida lhe prega peças e a mundanidade de seus atos o levará a uma outra tragédia, da qual só restará o caminho da penitência e do autoflagelo.

Julião caçou assim a garça-real, o milhafre, a gralha, o abutre. Gostava de soar a trompa e seguir seus cães, que corriam pela encosta das colinas, saltavam os riachos, voltavam ao bosque; quando o cervo começava a gemer sob as mordidas, ele o abatia prontamente e então se deleitava com a fúria dos mastins que o devoravam, cortado em pedaços sobre a pele ainda fumegante. (p.63)

A terceira e última novela, Herodíade, narra ficcionalmente a última noite de João Batista, antes deste ser assassinado por Herodes Antipas e ter sua cabeça ofertada em bandeja a Salomé. Herodes claramente se deixa seduzir pela filha da esposa e sua dança na noite da festa de seu aniversário. A história bíblica já conhecida ganha contornos de suspense constantes pois Herodes teme matar o pregador, a quem se refere como Iokanaan, pois já foi advertido por um essênio de que se cometesse tal ato, a desgraça recairia sobre si e seu reino. O essênio tenta dissuadir o rei narrando que já viu as boas obras e milagres de outro judeu: Jesus. Mas Herodes, tomado de orgulho e para demonstrar à comitiva romana que acaba de chegar que possui controle sobre as insurgências de seu reino, opta por levar a cabo sua decisão. Um ponto de observação aqui é a forma como os animais são retratados: ora como elementos místicos, ora como vítimas, tanto da ira quanto da gula humana, ambos pecados capitais. E claro, a importância de Herodíade, esposa de Herodes, que sabe agir astutamente nos bastidores para preservar seus interesses, pois ela também tem sede de poder.

O estilo de Flaubert, ao contar essas três histórias com maestria e toques de fantasia e infortúnios, segue a influência do Realismo, descrevendo as cenas com detalhes, em especial aquelas concernentes às situações mais dramáticas. O autor nos brinda também, em vários momentos, com um narrador onisciente pleno de ironia e de linguagem crítica na medida certa. Por fim, é bom lembrarmos que uma narrativa realista se concentra em explorar o lado psicológico das personagens, mostrando toda sua complexidade humana. E isso encontramos nos três contos por excelência: ao nos depararmos com a  santidade de Felicité, Julião e Iokanaan percebemos que eles, acima de tudo, são humanos, cheios de falhas e incertezas, assim como nós. 

Havia quarenta anos que exercia a função de carrasco [...] e não ousava matar Iokanaan! Seus dentes estalavam, todo o seu corpo tremia. (p.121)


*Informações da própria editora 34 nesta edição.

 

domingo, 29 de maio de 2022

"Vencidos e Degenerados" (1915), trecho do romance de José Nascimento Moraes, autor maranhense.


Reprodução de trecho do romance VENCIDOS E DEGENERADOS (p.132 a 135). Para informações sobre como adquiri-lo, envie um Direct Messenger para o Instagram da Profa. Natércia Moraes Garrido, @a_beletrista. 
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"E quem era Armênia? Descendente de uma rica família, a do coronel Magalhães, o senhor de João.

No tempo do Império uma potência, uma estrela de primeira grandeza, ela foi, num plano inclinado, decaindo de sua opulência, dos respeitos com que a cercavam, da fama que granjeara, com a sólida fortuna que possuíra, e com as importantes posições políticas a que subiram seus membros. Fatos inúmeros contribuíram para sua queda do apogeu que desfrutava...Fora seu chefe o tenente-coronel Joaquim Marcos Ribeiro de Magalhães, Comendador da Rosa. Tivera quatro filhos e uma filha que era Armênia Ribeiro de Magalhães.

O tenente-coronel Magalhães era um velho de índole caprichosa, que ia até a malvadez e à perversidade. Era marchante¹. De uma feita, porque um escravo contrariasse nas suas ordens, ele em pleno mercado o esbofeteara. Alfredo, chamava-se o negro. Recebendo a desfeita, que lhe injetou os olhos de sangue, nada lhe disse. Continuou a trabalhar até as cinco da tarde, nas diversas ocupações que lhe eram diariamente dadas. O coronel Magalhães tinha por hábito conversar à tarde, na porta de uma taverna, na Rua de Santana, onde se reuniam alguns ricaços, em amistosa palestra sobre ganhos e perdas, a arrotar o jantar. Foi nessa ocasião que Alfredo que Alfredo se lhe aproxima e pede-lhe que lhe dê uma palavra. O negro estava calmo, limpo e não inspirava receios, nem o "sinhô" se lembrava mais da bofetada que lhe dera. Levantou-se o tenente-coronel Magalhães para atender ao chamado de Alfredo que se afastava para a esquina da Rua de São João.

- É o meu braço direito, meu homem de confiança - disse ele aos mais, ao dar o primeiro passo. Todos se voltaram para o negro, que era ainda moço, alto, musculoso, de uma fisionomia severa e carrancuda.

A distância de dois passos, Alfredo saltou na gola do paletó do tenente-coronel Magalhães, repuxando-o para debaixo do peito. Foi rápida a cena: uma lâmina lucilou no ar, brandida pelo pulso do escravo, rápida desceu, uma, duas, três vezes, e um corpo baqueou na rua, sem um gemido.

Os da roda, abandonando as cadeiras, correram desorientados, uns para dentro do estabelecimento, outros pela rua abaixo. Transeuntes agruparam-se em torno do corpo, a vizinhança acudiu às portas e janelas, transida² de terror. Era um caso novo, por todas as circunstâncias que o acompanharam.

- Um escravo matou o sinhô! - tal foi o grito de alarma e surpresa que, com a rapidez do relâmpago, se propagou de boca em boca pela cidade toda. As razões foram muitas, e cada qual mais disparada. Só mais tarde se soube da verdadeira causa do fato. 

Contaram então que, perpetrado o crime, guiou dali Alfredo para a residência do sinhô, que era um sobradinho na Rua da Palma. Lá chegando, bateu palmas em meio da escada. Apresentou-se-lhe, em vez de uma mulata escrava que fazia de criada, a própria esposa de Magalhães, uma senhora bondosa, afável que a todos os servidores bem tratava, livrando-os, não raro, das vinganças bestiais do marido. A pobre senhora apareceu pálida, o olhar assustado, como que pressentindo a notícia desagradável do assassínio do tenente-coronel Magalhães.

- Dona Amélia - falou-lhe Alfredo - acabei de matar seu marido. Vosmecê sabe melhor do que eu que eu era o único escravo que o estimava. D. Amélia, acredite: eu tinha até satisfação em ser escravo. Não era para seu marido (as lágrimas desciam-lhe pelo rosto) fazer o que me fez hoje. Minha senhora, me desculpe. Mande juntar o corpo de seu marido lá na Rua de Santana. Até nunca mais!

E desceu com passo firme e vagaroso a escada, deixando D. Amélia imóvel, pregada no topo da escada, pela perplexidade do que acabara de ouvir, contado pelo servidor mais fiel e leal da casa, um dos poucos com que ela podia contar no caso de uma rebelião. 

Os filhos de Magalhães tomaram conta da bonita fortuna. Ignorantes, sem prática de negócios, sem trato social, que eles viviam abandonados de qualquer educação, por mais rudimentar que fosse, escorraçados do seio da família, pela desobediência a que se acostumaram desde muito cedo, não podiam continuar no giro dos negócios do pai, pois inteiramente o desconheciam, nem com acerto gerir a fortuna de cuja construção não entendiam. Assim, enquanto corria o processo de Alfredo, que foi enforcado no lugar em que cometeu o crime, os irmãos de Magalhães tratavam de enganar a viúva, que sucumbiu anos depois ralada de desgostos. 

O 13 de Maio já encontrou  os filhos de Magalhães nessa casa na Rua de São Pantaleão, vivendo à sombra de alguns bens que lhes deixaram os usurpadores. Dois viviam nas salinas, e mais pareciam caboclos da ilha que moços da cidade; dos dois outros, um era jogador de profissão, e vivia nos botequins; o outro era apalermado e não saía de casa. Era o mais moço. Armênia e duas tias do lado materno completavam o número de domiciliados.

Armênia recebera uma educação esmerada. Mimo de sua mãe, seu conforto e alegria, desde muito moça entregue aos cuidados de professores que a lecionavam no lar. Aprendera o português, o francês, o inglês e o latim, de que fizera até um sensacional exame num afamado colégio da capital. Versada nos autores clássicos e literatura contemporânea, seu espírito tinha cintilações belíssimas. Frequentava a sociedade, onde superiormente brilhava pela formosura e pela inteligência, mas nunca pudera dar expansão ao seu gênio irrequieto, à sua sensibilidade acessível e tocante. O respeito à D. Amélia era um dique que se lhe opunha às largas dos seus desejos contidos. Sempre se mantivera, até ali, em compostura honesta e digna.

Com o desaparecimento de D. Amélia, foi que ela se desatou das peias que a sacrificavam... As tias curvaram-se aos seus caprichos, os irmãos transviados não tinham por ela interesse nenhum; antes, a odiavam: havia mesmo entre eles uma barreira intransponível que eram as maneiras dela e o rude trato com que eles se apresentavam."

Glossário útil:

1. Marchante: negociante de gado. Do francês marchand = comerciante.
2. Transida: apavorada, assustada.

 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

"Pulp Maranhense", de Mauro Cézar Vieira

São Luís (MA): Edição do autor, 2021. 200 pág.

Para refutar a ideia de que o Maranhão é eminentemente uma terra de poetas, venho indicar para vocês, com muito gosto, a leitura deste exemplar de prosa contemporânea: o Pulp Maranhense, do jovem autor Mauro Cézar Vieira. É na verdade uma coletânea de 3 novelas literárias, todas ambientadas em nossa capital, São Luís.

Eu já fui seduzida pelo título e creio que foi uma escolha das mais felizes: primeiro porque resgata o termo "pulp", talvez desconhecido da maioria dos leitores da geração atual; segundo porque se mostra coerente com o gênero das histórias - o terror. Referenciando o estudioso Oscar Nestarez¹, as revistas pulp fizeram muito sucesso entre os leitores norte-americanos na primeira metade do século XX, sendo que uma das mais famosas delas foi a Weird Tales. De produção barata - o termo pulp significa "polpa de madeira barata" - as revistas pulp fiction deram espaço às narrativas "que pareciam um verdadeiro baú de esquisitices, um repositório de desvarios e pesadelos". Ou seja: a característica - mor dessas histórias era o terror sobrenatural, contendo elementos dificilmente explicáveis pela nossa simples noção de realidade.

Baseada nessas informações prévias e sendo eu uma amante de histórias de terror, posso dizer que minhas expectativas de leitora foram bem atendidas. A primeira narrativa, Sinta-se em família, expõe o segredo de Nina, que chegando à idade adulta, deve por em prova uma herança maldita de família e assim, garantir sua descendência. O que ela não contava era se apaixonar por Roberto, o escolhido para cumprir seu destino. Já Olhos na escuridão, a mais extensa das 3 narrativas, ressignifica a famosa lenda maranhense da serpente: criado por sua tia Marta em Fortaleza, Eduardo resolve voltar a São Luís em busca de suas origens e acaba se deparando com verdades incômodas sobre sua mãe. No decorrer da empreitada, o rapaz conhece um velho professor de História de seus pais, o qual lhe explica que a tal lenda, na verdade, esconde uma seita macabra cujos rituais são conservados pela família de Eduardo há várias gerações. Sendo assim, ele precisará tomar algumas atitudes no intuito de impedir que isto se perpetue. 

Por fim temos Arrastando-se, a mais curta de todas as histórias: o casal de policiais Lúcio e Angélica investigam uma série de assassinatos inexplicáveis que seguem um mesmo padrão - a vítima invariavelmente tem seu braço decepado e comido. Seria o criminoso realmente humano? Com contornos de ficção científica, essa foi a que mais me agradou. Apenas por um gosto pessoal, mesmo, porque todas as narrativas são muito bem construídas. 

De uma forma geral, as histórias se unem pelo fio do sobrenatural e das relações familiares com dinâmicas estranhas a olhos externos, tornando-as, como Tzvetan Todorov² (2008, p.160-161) um dia teorizou, narrativas pertencentes ao gênero fantástico, mais precisamente a um fantástico-maravilhoso, pois os acontecimentos "não podem ser explicados pelas leis da natureza tais quais são reconhecidos". Nesse sentido, a função do sobrenatural é "subtrair o texto à ação da lei e, por este meio, transgredi-la." A premissa, por exemplo, encontrada em Olhos na escuridão, transgride todo o nosso entendimento da lenda da serpente e acabamos aceitando a coerência interna do texto. Assim, o discurso repassado por séculos é questionado pelo leitor, uma vez destruído pelo narrador.

Aliás, quero destacar que escrever uma história de terror demanda do autor algumas atenções técnicas, e nisto o Mauro Cézar Vieira não deixa a desejar. Um elemento importante é a ambientação: a descrição dos ambientes contribui para arquitetar todo o clima de suspense e garantir os sustos que o leitor tanto espera. Cada término de capítulo das novelas de Pulp Maranhense traz uma informação nova e o entrelaçamento dos enredos se faz de forma inteligente, sem deixar "pontas soltas", e o melhor: surpreende ao final.

Outra questão que eu gostaria de evidenciar é o brilhante conhecimento demonstrado pelo autor sobre espaço geográfico - que é o Centro de São Luís, em especial com relação à parte histórica. Eu me senti em casa e de fato é muito prazeroso perceber, na leitura, as personagens dessas novelas literárias se deslocando por lugares que eu mesma frequento - exceto pelas galerias subterrâneas da Igreja de Santo Antônio e da Fonte do Ribeirão ;) 

Ao final da leitura, fiquei com muita vontade de ver essas histórias adaptadas para o cinema, e é uma ideia super possível, já que o estilo de escrita do autor é ágil e nos remete aos thrillers da sétima arte. E aí? Alguém se habilita a escrever um roteiro adaptado e produzir esse longa? Vamos torcer que SIM!

REFERÊNCIA:

¹ NESTAREZ, Oscar. Weird Tales: a fantástica fábrica pulp de horrores cósmicos. In: terratreva.com 26 de nov. 2019.
 ² TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2008. 

domingo, 27 de fevereiro de 2022

"Uma lição proveitosa", conto de José Nascimento Moraes (autor maranhense)

 UMA LIÇÃO PROVEITOSA

Conto de Nascimento Moraes*


Era D. Vitória Mendes Fragoso, esposa do Dr. Alceu de Sousa Fragoso, por demais ciumenta. Pertencia, segundo ela mesma declarava às pessoas de sua intimidade, ao número das mulheres que se casam por amor. Vivia para o seu marido e não podia admitir que ele a enganasse com outras mulheres. Havia dez anos que estava casada e felizmente ainda não lhe dera nenhum desgosto.  Sabia de sua lealdade e sinceridade para com ela. Se, porém, algum dia, lhe chegasse ao conhecimento de que o Dr. Alceu a enganava com outra mulher, transformar-se-ia num monstro, porque seria capaz de tudo, até de cometer crimes.

D. Manuela Fernandes, sua vizinha e amiga, casada com um português que não era nenhum santinho e que de vez em quando aparecia no cartaz do escândalo ao lado de uma mulata que ele retirara da casa dos pais, ouvindo de D. Vitória expressões tão veementes, disse-lhe, com a serenidade das almas resignadas à sua condição:

- Já eu não penso assim. Acho que a mulher casada deve colocar-se num plano superior, sempre que o marido se revelar mal conduzido. Sei de todas as patifarias de meu marido, mas até hoje nunca lhe disse palavra. É como se não acontecesse nada! A mania dele é andar com as mulatas! Pois que ande com suas mulatas! Desceria de minha dignidade se lhe desse a entender que sei das suas deslealdades. Respeitando-me dentro do nosso lar, é quanto me basta!

- Pois eu lhe digo com toda franqueza que não tolerarei de meu marido uma deslealdade! Sentir-me-ei humilhada no dia em que souber que ele prefere outra mulher a mim! Pense bem, D. Manuela, no caso! Porque o homem casado que procura outra mulher, humilha a sua mulher! É o mesmo que lhe dar carta de mulher inferior, sem qualidades que o seduzam, que o prendam a seu lado! Pense bem, D. Manuela! A mulher casada que é vítima de tal deslealdade, deve sentir-se mal perante as outras mulheres e até perante os homens! Veja bem! É um traste inútil!

- À primeira vista parece que a senhora tem razão, mas examine calmamente o caso. Por que não se dizer que o homem é que não tem atributos para conhecer e estimar as qualidades da mulher que possui? Quantos homens há por aí grosseiros, estúpidos, mal educados, sem sentimentos refinados e que maltratam, dão má vida às esposas porque não estão à altura de avaliar o seu merecimento, porque não podem apreciar a delicadeza de seus gestos? Temos na sociedade muitos exemplos que confirmam o meu modo de ver. A Severinha, que a senhora bem conhece, é abandonada do marido. Não é uma mulher bonita. Eu, pelo menos, não lhe acho graça. É hoje, porém, uma mulher feliz. Encontrou, um ano depois de desprezada, um amante que é louco por ela, o Dr. Pinto Madeira. Comprou-lhe aquele prédio em que ela mora por 50 contos, mobiliou-o ricamente, e trata-a com todo esmero e faz-lhe todas as vontades! E o marido amigou-se com uma rapariga de má vida, que o trata de resto e com quem ele gasta uma fortuna! São tantos os exemplos!

Mas D. Vitória não se convenceu nunca das razões de D. Manuela. Aliás, na sua família havia um caso que lhe podia dar margem a profundas reflexões. Era o de seu irmão Francisco José Mendes, que depois de dar escândalos com diversas mulheres da vida pública, vivendo abertamente com elas, voltara a ser bom marido, arrependido de seus erros e dos desgostos que dera à sua santa mulher.

D. Manuela sabia desse fato, e de uma feita argumentou com ele, dizendo-lhe:

- Se D. Alfredinha, sua cunhada, não fosse um espírito superior, teria rolado pela sarjeta. Soube, porém, colocar-se numa atitude digna, de modo que, depois de tantos anos, saiu vitoriosa!

D.Vitória era, enfim, uma mulher que vivia a imaginar coisas sombrias. Preocupava-se com o que não havia acontecido. De si para si estava convencida de que o marido era o homem mais bonito de S. Luís, e por quem todas as mulheres viviam apaixonadas. Impressionava-se com a elegância, com as maneiras, com a simpatia do marido, e não podia admitir que as outras mulheres fossem indiferentes ao seu Adônis!

O Dr. Alceu compreendia a tortura de sua mulher e procurava arrancar-lhe do espírito essa impressão, que já era motivo de pequenas desavenças no lar. Se, porventura, chegava à casa um quarto depois do almoço ou do jantar, D. Vitória explodia em lamentações. Se saía à noite, por motivo de sua profissão, D.Vitória ficava em pranto! À medida que os anos se passavam e que o Dr. Alceu envelhecia com ela, o ciúme aumentava. Para ela, o marido era sempre um homem capaz de apaixonar as mulheres. Parece que não via que o marido, com os cabelos grisalhos, não era mais o mesmo de ontem.

- Infelizmente não temos filhos, dizia-lhe o Dr. Alceu. Se os tivéssemos, não terias ficado assim. Nem viverias a lembrar-te de mim, a todo momento! Mas não te esqueças de que em nossa idade esses ciúmes já nos tornam ridículos!

Mas D. Vitória não se conformava...

- A velhice não é mais uma carta de seguro, dizia ao marido. Vejo velhas que se trajam como meninas e sei de velhos que namoram mais do que os moços! Os tempos estão mudados. Há poucos dias lá no gabinete do nosso dentista uma moça dizia a uma amiga: "Hoje os casados dão mais sorte do que os solteiros, e os velhos mais do que os moços. Os casados e os velhos são mais afeiçoados às mulheres e tudo fazem em seu benefício. Os solteiros são os pestes! Ninguém pode confiar neles!"

E o Dr. Alceu ria a mais não poder!

E D. Vitória ficava ainda mais irritada com o seu riso!

É possível que por causa desse estado permanente de irritação, alguém se lembrasse de escrever a D. Vitória uma carta, dizendo que seu castíssimo marido frequentava a casa de uma mulher pública à rua das Barrocas. O anônimo pormenorizava o caso. A mulher chamava-se Andrelina. Era um mulataço! O Dr. Alceu dava-lhe tudo! Na despensa da mulata não faltava nada! Os jarros da sala, de porcelana, eram um primor. O Dr. Alceu mandara-os buscar na Bélgica!

D. Vitória ficou a ponto de perder a cabeça. Até que chegara a seu conhecimento uma deslealdade do marido. Mandou chamar D. Manuela e contou-lhe tudo. E ao mesmo tempo que explodia de cólera, estava satisfeita:

- Eu não dizia à senhora? Tinha ou não tinha razão de ser ciumenta? Eu não sabia de nada, mas uma voz dentro de mim me dizia: todo advogado é fingido! Assim como eles enganam a justiça e provam que os criminosos são homens de bem, assim enganam em casa as esposas!

- Seja prudente, disse-lhe D.Manuela. Aqui no Maranhão se fala de tudo e contra todos. Eu também sei de muita coisa de meu marido, mas fico certa que nem sempre o que dizem dele é verdadeiro! Seja prudente. Procure tirar a limpo. Pode ser intriga de um inimigo ou graçola de algum amigo.

D.Vitória aceitou o alvitre da amiga e resolveu nada falar ao marido para não o espantar.  Ia pegá-lo com a boca na botija!

E no dia seguinte, depois que o marido saiu para o escritório, D. Vitória preparou-se e saiu. Estava contristada e era grande o seu sofrimento. O seu desespero era um mar revolto. Ela morava num sobrado à rua Afonso Pena, e por isso dentro de poucos minutos estava à porta da mulata Andrelina, que vindo do interior da casa, encontrou-se com ela no corredor.

- Quero falar-lhe.

- É já, minha senhora.

A mulata voltou sobre os passos e momentos depois lhe abria a porta da sala.

- Pode entrar.

Andrelina era uma mulata estampada. Alta, mais gorda do que magra, simpática, olhos grandes, cabelos crespos, rosto oval, lábios grossos.

Não sabia com quem tratava, mas inteligente, compreendeu que se tratava de uma senhora.

D. Vitória era também uma mulher bonita, alta, elegante. Os anos não lhe haviam estragado a pele, nem lhe haviam apagado o brilho do olhar. Estava pálida de cólera. Trêmula. Entrou e, cansada, ofegante, sentou-se. Relanceou o olhar pela sala e não viu os jarros bonitos comprados na Bélgica.

- A senhora está sentindo alguma coisa?

- Não.

- Quer um copo d'água?

- Obrigada.

Andrelina, de pé, olhava-a admirada. E depois:

- Estou às suas ordens.

- Diga-me uma coisa...

- Se eu souber...

- Meu marido frequenta a sua casa? Seja franca comigo.

- A usar de franqueza, minha senhora, não sei.

- Como não sabe?!

- Se eu não sei quem é o marido da senhora!

- É o Dr. Alceu, um advogado muito conhecido.

- Advogado? Não sei o que é...

D.Vitória passou a dar os traços do marido...

- Conheço muitos homens assim...

- Mas não vem à sua casa um homem que se chama Dr. Alceu de Sousa Fragoso?

- Minha senhora, não sei, porque da maioria dos homens que frequentam a minha casa, eu são sei o nome...

- Não sabe?!

- Não senhora. Não me serve de nada saber o nome deles... Não os procuro. Não vou à casa deles, não falo com eles na rua... lá um ou outro me diz como se chama... e eu, às vezes me esqueço. São tantos nomes! E muito embrulhados!...

- E como recebe um homem em sua casa sem saber quem é?

Andrelina riu e passando as mãos pelos cabelos crespos:

- O que me interessa é saber se eles tem dinheiro. E pelos modos eu vejo logo. Qual é a rapariga que não conhece a cara dos prontos?

E Andrelina soltou uma risada argentina.

E depois:

- Disseram à senhora que seu marido frequenta a minha casa?

- Disseram.

- É possível... só eu perguntando. Como é o nome dele?

- Dr. Alceu.

- Dr. Alceu... Se eu não me esquecer pode ser que eu venha a saber... Se a senhora voltar outro dia aqui... talvez lhe possa informar...

E D. Vitória encolerizada e decepcionada:

- Informará mesmo? E se for apaixonada por ele?

- Ah, minha senhora, rapariga não tem paixão. Deus me livre de me apaixonar por um homem! E quando desconfio que algum está com jeitinho de querer ficar, desengano logo. Eu vou perder os meus interesses por causa de um homem? E logo quem? Homem casado! Olhe: quem se apaixona por homem casado é mulher casada!

D. Vitória deixou a casa de Andrelina como ninguém pode descrever! Uma hora depois estava em casa. Atirou-se numa cadeira de braço, como se tivesse acabado de apanhar uma surra de corda. Doía-lhe o corpo. A cabeça girava. Ouvia ainda as palavras da mulata! Não conhecia o seu marido! Nem sabia o seu nome! Do tipo do seu marido conhecia tantos homens! Como aquela mulher falava! Que descaramento! Os homens para ela não valiam nada! O que valia era o dinheiro. E como escarnecia da paixão dos homens! Olho da rua com os apaixonados! Os seus interesses estavam em primeiro lugar!...

E foi por isto que D.Vitória Mendes Fragoso se tornou, inesperadamente, um belo exemplar de mulher casada. Nunca mais perturbou a serenidade de seu lar com os seus ciúmes infernais.

FIM

* Referência: MORAES, Nascimento. Contos de Valério Santiago. 1a ed. São Luís, MA: SIOGE, 1972.


UM ADENDO: celebrando 64 anos da morte de Nascimento Moraes

Por Natércia Moraes Garrido**

I

O livro Contos de Valério Santiago foi editado e publicado originalmente em 1972 de maneira póstuma, já que Nascimento Moraes havia falecido em 1958. Foi um projeto organizado primordialmente por um de seus 7 filhos, o também escritor e pesquisador José Nascimento Morais Filho, que sempre teve a preocupação de reunir a obra do pai, espalhada até hoje em muitos jornais ludovicenses e aguardando por mais olhos pacientes e perscrutadores. Nesta primeira edição, há muito já esgotada e pertencente à biblioteca particular da família Nascimento Moraes bem como à Biblioteca Pública Estadual Benedito Leite (São Luís-MA), contamos com uma reunião de apreciações críticas e memorialistas sobre a vida e obra do autor, tais como este trecho escrito pelo grande Humberto de Campos em suas Memórias Inacabadas (1935), em que relembra as propostas literárias de dois periódicos editados pelos jovens intelectuais que pertenceram à geração chamada de Os Novos Atenienses, surgida no Maranhão em 1899:

Intitulava-se um "Os Novos" e era órgão da "Oficina dos Novos", associação constituída pela geração moça, orientada por Antônio Lobo e Fran Pacheco. "Renascença", denominava-se o outro, e reunia uma dissidência combativa e heróica, sob a chefia de Nascimento Moraes. O primeiro era sereno, ponderado, mergulhado em sonho e meditação. O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Moraes, professor de português, criticava a língua dos Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do grupo.

Em outro momento de apreciação crítica, temos a exaltação da escrita ferrenha de Moraes pelo ilustre autor Domingos Vieira Filho em sua Breve História das Ruas e Praças de São Luís (1971):

Na cátedra ou no jornalismo era o combativo de sempre, esgrimindo, em prosa amena, a argumentação cerrada e fulminante que surpreendia o adversário. Octogenário quase, ainda era o mesmo escritor da mocidade, fluente, impressivo, claro, como as coisas boas e simples da vida.

Impossível não relembrar aqui as palavras de Josué Montello, outro ilustre escritor maranhense, na crônica dedicada a seu mestre do Liceu por ocasião de seu falecimento em 1958:

Minhas dívidas de escritor para com a pessoa e a obra literária de Nascimento Moraes não são pequenas. Tive-o entre os meus mestres do Liceu Maranhense. Tive-o entre os guias de algumas de minhas leituras essenciais. E contei-o sempre entre meus amigos. Pude sentir, assim, numa convivência demorada, a grandeza de sua inteligência e de sua cultura. E posso avaliar o que ele teria feito, se houvesse deslocado dos horizontes da província o cenário de suas ilusões. Haveria de perder algumas, como todos nós. Mas pelo menos o benefício de uma irradiação maior de seu nome, ele teria tido. Porque essa irradiação Nascimento Moraes a merecia, pelas virtudes de seu talento e de seu saber.

Valério Santiago é apenas um dos vários pseudônimos que Nascimento Morais utilizava, haja vista que em muitos períodos de sua vida teve que driblar as perseguições políticas e imposições ideológicas dos muitos jornais para os quais escrevia, sendo também editor de alguns deles. O salário de Professor de Geografia no tradicional Liceu Maranhense não cobria as despesas de casa, fazendo com que Moraes dedicasse grande parte de seu tempo ao jornalismo. Suas crônicas e editoriais são tão famosos quanto seus contos, pois não poupam críticas à sociedade maranhense, às inúmeras situações políticas pelas quais passou o Maranhão e à condição dos negros, sendo ele próprio um sobrevivente de ataques racistas constantes. No entanto, Moraes venceu pelo valor de sua pena na província e foi respeitado por seu legado, sendo bastante reconhecido por seus contemporâneos, quer eles fossem amigos ou inimigos. 

Os Contos de Valério Santiago foram publicados entre os anos de 1940 e 1941, quando Moraes escrevia para a Revista Atenas (do qual também era editor), um suplemento literário do jornal O Imparcial, cujo fundador foi o jornalista João Pires Ferreira, seu amigo próximo. Consta também nesta edição uma belíssima introdução escrita por seu filho, o jornalista político Paulo Nascimento Moraes, o qual resgata o contexto de vida e de atuação do pai em um texto brilhante, ressaltando as dificuldades enfrentadas por um homem negro que teve como única arma sua inteligência e sua escrita:

Em todos [os contos] sente-se a sua preocupação constante em mostrar a decadência de uma época social que ele, menino, estudante, ao lado da mãe preta, defrontou-se para depois nela sentir o aparecimento de seus primeiros cabelos brancos. Em cada conto há uma mensagem, há uma lição de sociologia, há uma paisagem filosófica. Causticante até. São estes contos que, aqui, enfeixados neste livro, nós apresentamos uma oferta de ontem e de amanhã. Uma prestação de contas com o Passado que fica sempre, que se debruça sempre para alumiar os caminhos do Presente e do Futuro.

II

Breve clichê biográfico

1. José Nascimento Moraes nasceu e faleceu em São Luís (MA): 19/03/1882 - 21/02/1958;

2. Por natureza e formação foi poeta, prosador, professor, jornalista, crítico literário e polígrafo;

3. De seu casamento com d. Ana Augusta Mendes Moraes (em 1908) teve 4 filhos: Ápio Cláudio, Paulo, Nadir e João José. De seu relacionamento com d. Francisca Bogéa (o qual durou alguns anos da década de 1920) teve 3 filhos: José Nascimento Moraes Filho, Thalita e Raimundo;

4. Em 1914 é aprovado no concurso do Liceu Maranhense para a cátedra de Geografia e Corografia do Brasil; em anos anteriores ensinara Aritmética na Escola Normal e Português, Latim e Francês em sua própria escola, o Instituto Nascimento Moraes e em residências particulares. Ao longo de sua vida acumularia o cargo de professor em consonância ao de jornalista, lecionando, além das escolas já citadas, no colégio Ateneu Teixeira Mendes e na escola Rosa Castro;

5. Como jornalista escreveu durante toda sua vida. Foi editor, redator-chefe e colunista em vários jornais de São Luís, a exemplo de A Pacotilha, O Diário de São Luís, Correio da Tarde, O Globo, O Dia e O Imparcial. Nascimento Moraes foi um dos fundadores e colaboradores constantes da Associação de Imprensa do Maranhão;

6. Dentre seus vários pseudônimos estão, além de Valério Santiago: Junius Victor, Brás Cubas, João Ninguém, João sem Terra, Sussuarama, Zé Maranhense, Berredo, João Ventura e Braz Sereno;

7. Nascimento Moraes pertenceu ao grupo literário Oficina dos Novos (1899) para depois sair e fundar o seu Renascença Literária (1901); ele integra o grupo de intelectuais que buscava a renovação das letras maranhenses no início de século XX, época em que o Maranhão enfrentava uma grande decadência econômica e cultural. Foi um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras (1908) porém só obteve uma cadeira lá em 1934 (ocupou a cadeira de n.11), sendo recebido em 1938 por seu amigo Armando Vieira da Silva. Também foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (1925), donde é patrono da cadeira de n.53.

Bibliografia

1. Puxos e Repuxos (1910, polêmicas literárias);

2. Vencidos e Degenerados (1915, romance);

3. Neurose do Medo (1923, ensaio de psicologia política);

4. Contos de Valério Santiago (1972, contos)

**Natércia Moraes Garrido é professora, escritora e crítica literária; é Doutoranda em Literatura e Crítica Literária na PUC-SP; é pesquisadora da obra do poeta Nascimento Morais Filho há 12 anos; é bisneta de Nascimento Moraes e neta de Nascimento Morais Filho; divide com sua mãe, tios, tias e primas a preservação do espólio literário da família Nascimento Moraes.