quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Esboço, romance de Rachel Cusk.

(São Paulo: Todavia, 2019) 192 pág. Publicado originalmente em 2014.

"E dessas duas formas de vida - viver no presente e viver fora dele - qual era a mais real?" (p.60)

A escritora canadense Rachel Cusk (1967-  ) não é novidade no cenário literário há décadas, tendo inclusive ganhado alguns prêmios como o britânico Somerset Maugham. Mas aqui no Brasil talvez, ela agora esteja sendo mais conhecida por conta da tradução do romance Esboço, primeiro livro de uma trilogia que já foi toda publicada lá fora alcançando sucesso de vendas e empatia de leitores. Em 2020 saiu a tradução do segundo livro, Trânsito, aqui no Brasil, mas por ora, vamos falar do início de tudo: cheguei à leitura e ao conhecimento da autora por meio da booktuber, bookstagrammmer e poeta Aline Aimée, com a proposta de ser lida em seu clube Chave de Leitura, que por sua vez "acatou" alguns livros da lista de indicações da escritora italiana Elena Ferrante. Essa lista que Ferrante publicou em novembro de 2020 causou um bom rebuliço, e uma das razões é que Clarice Lispector estava lá com o romance A paixão segundo G.H. É uma lista sim, bastante interessante, em que a autora indica seus livros preferidos escritos por mulheres. Para conhecer a lista, clique AQUI

Aparentemente - e digo isso porque em literatura contemporânea a gente não deve se ater mais a nenhum rótulo literário, pois tudo se caracteriza de forma difusa e maleável - a linha do enredo se define em torno de Faye, uma escritora inglesa convidada a ministrar algumas aulas de um curso de Escrita Criativa em Atenas, Grécia. Sabemos muito pouco sobre essa narradora/escritora/observadora, e o pouco que "pescamos" sobre sua personalidade, pensamentos e lugar no mundo se dá por meio de conversas ou melhor, de escutas sobre histórias alheias à ela. É isso mesmo: da hora que sai da Inglaterra até o instante final de sua estadia em Atenas, Faye escuta as mais diversas histórias de seus interlocutores, pessoas que ela já conhecia anteriormente ou não. São pessoas que deliberadamente (ou não) expressam seus pontos de vista, vivências, experiências de forma honesta (ou não) à Faye, que por sua vez elabora também seus julgamentos. É o que parece a nós, leitores.

Dessas muitas histórias narradas de forma intencional (ou não), podemos destacar as do vizinho de avião grego de Faye (ele não tem nome), que tenta explicar, dentre outras razões, os fracassos de seus três casamentos; ou do professor irlandês Ryan, que mostra em seu relato como alcançou sucesso na vida; ou da recente celebridade literária Angeliki, que discorre sobre maternidade, insatisfação conjugal e a percepção da mulher contemporânea. Mas há muitas outras histórias de muitas outras pessoas que também inserem em suas narrativas histórias de terceiros, implicando que nossas vivências são constantemente construídas e elaboradas a partir dos outros. Faye mais escuta do que outra coisa. O que nos leva à discussão de um tema que eu acredito, esteja plantado no âmago desse romance: o ofício de ser escritor.

Não é à toa que a imagem da capa do livro seja uma grande concha. É uma metáfora do exercício da escuta. Faye exercita constantemente esse sentido porque talvez ali repouse o que se precisa para narrar uma boa história, entendendo que todas as histórias contadas possuem vários lados e interpretações, e todas elaboram uma verdade parcial: a verdade de quem conta. Faye também sabe enxergar os detalhes que a rodeia, descrevendo ambientes, sentidos e percepções, e demonstra estar atenta ao que lhe é contado, expressando seus julgamentos:

"Pude ver que ele mentia mal, e era difícil, falei, não sentir empatia pela sua mulher, a mãe dos seus filhos, embora é claro essa não fosse a reação que ele desejava à sua história." (p.133)

E já que é um romance escrito por mulher, difícil fugir a outros temas contemporâneos, como a maternidade e os relacionamentos amorosos. A amiga de Faye, Elena, narra como se sentiu após ouvir (sem querer?) que o namorado não pretendia ter mais filhos:

"Yanna estava perguntando sobre os filhos de Konstantin, que eram dois, de um casamento anterior, e então, de modo bem casual, com Elena escutando, Yanna lhe perguntou se ele gostaria de ter outros filhos. Não, respondeu ele, enquanto Elena, que escutava, sentia facas serem cravadas nela por todos os lados; não, ele não achava que quisesse ter outros filhos, era feliz com as coisas do jeito que estavam." (p.148)

E ainda temos dois capítulos dedicados, em momentos diferentes, aos alunos do curso de Escrita Criativa, de faixa etária bem variada, que precisam cumprir alguns exercícios de percepção para depois narrar o que viram, o que sentem e como elaborar essas histórias, torná-las interessantes a quem escuta pois nem toda história vale a pena ser contada? (será?). Ao fim da leitura percebemos a razão do título Esboço: tudo e todos ali estão em fase de construção (ou desconstrução) em suas próprias narrativas de vida. E não estamos todos nós, afinal?







 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Tempomar, poema de Natércia Moraes Garrido.



O mar e sua eterna imensidão
cochicharam em meu ouvido:
engole a corrente do tempo.

Pois se há mil formas de morrer
existe um único jeito de viver.

Engole a corrente do tempo que resta
e saboreie.