terça-feira, 16 de junho de 2020

"Acaso", crônica de Vilton Soares



Foto: Marimbondo na janela. Foto do arquivo do autor (2020). 
ACASO

Crônica de Vilton Soares*

Acordei sobressaltado. Zumbidos trouxeram-me à realidade aflitiva do embargo das nossas vidas ... um olhar seletivo procura as atualizações das redes sociais, evitando tragédias, tão frequentes ultimamente. O desejo (in)controlado de não-ver antecipou o número de mortos pela COVID-19 no Brasil:42.802 mortos e 851.321 casos confirmados e, imediatamente, pensei no que nos liga uns aos outros. As subjetividades que a visita daquele marimbondo, ou caba para os amazônicos, me trazia ... Acordar-me às 6h30, isto é,  na madrugada de um domingo e naquele zum-zum-zum, foi providencial. Ocorreu-me fotografá-lo e ao ouvi-lo, ouvi-me ...
Foi-me segredado muita coisa. Atônito com a interferência nos meus pensamentos, sem tirar os olhos daquele bulício alado, ouço, sussurrada, a voz da minha ex-vizinha em Recife ... Morávamos eu e ela, sozinhos, cada um em sua casa, compartindo, por meio dos combongós das respectivas áreas de serviço, os silvos e burburinhos do domingo de manhã. Eu tinha 20 anos e estava na universidade, ela era uma ativa costureira, saía raríssimas vezes, já passara dos 70, vivia sozinha. 
Domingo de manhã era o espaço-tempo em comum de nós dois. Eu, preparando o sagrado café à italiana e pronto para “ganhar o mundo”, como repetia a minha mãe. Café e tapioca prontos, sentava e concentrava-me para ouvi-la cantar-se. Ela, ao mesmo tempo em que aguava suas plantas ... segredava-se ... distorcendo alguns versos de uma música muito tocada na época. O que me dava prazer era o conjunto da ópera ! Eram os cheiros de café e terra molhada, o burburinho, o alvoroço, os silvos, os sibilos, o rechino da sua voz ... e as mensagens subliminares que no silêncio e em outras semioses trocávamos ... Naquela época, compreendia como um sinal de que a discretíssima e circunspecta vizinha-amiga continuava sua sina, e entrava em profundo diálogo comigo, sob as rígidas coerções socioculturais que se impunham, mais a ela.  De um lado do muro o cheiro de café; do outro, os bulícios e solfejados, graças aos combongós ...  
A cada domingo eu escutava com clareza uma parte dos versos que ela repetia ... em um, marcava-me o “já não sei mais por que vivo a sofrer”;  em outro, “não sei por que, mas acho que é falta de compreensão”... hoje o zum-zum do marimbondo acordou e misturou várias memórias em interferência. 
Em uma das minhas idas ao Recife, fui ao bairro onde morei quando jovem, na tentativa de vê-la. Pelas minhas contas ela já teria passado dos 90 ... talvez nem me reconhecesse. Fui informado que ela morrera, por alguém que já lhe ocupava a casa. Perguntei por detalhes, já que a mesma não tinha parentes, desconversou. Doeu-me muito ser chacoalhado pelo zizio da sua máquina de costuras e do rechino da sua voz aos domingos ... retardou-me em dez anos esse estado de anojamento e uma sensação de réu ... ecoam os seus versos, em estridor, neste domingo. 
Com tantas almas partindo na velocidade da luz, como a da minha solitária ex-vizinha e sempre amiga, dói-me pensar na subjetividade das relações que (inter)ligam as mais de 42.000 vítimas da COVID-19 e que espalham pelo Brasil o atual estado de nojo. Ai, quanto nojo !  
Que dor me trouxe esse zumbido de marimbondo hoje de manhã ... e que foi respondido por memórias tão segredadas. Hoje ouvi na íntegra a música que ela cantava, descobri versos ainda não perscrutados e, o mistério do acaso distorceu mais uma vez minha percepção ... “Não sei por que meu Deus, sozinha eu vivo a penar”,  “Não tenho nada a pedir, também não tenho nada a dar”,  “por isso é que eu vou me mandar!”, “Vou-me embora agora, embora pra outro planeta, na velocidade da luz, ou quem sabe de um cometa”, “eu vou solitária e firme, onde a morte me aqueça” ... com a voz embargada, cantei em sua homenagem e escrevi como redenção. 

Domingo, 14 de junho de 2020, em São Luís do Maranhão, Brasil, 6h50 da manhã.

 

* Vilton Soares (viltonsoares@ifma.edu.br) é Professor de Português e Francês do Instituto Federal do Maranhão - IFMA e Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP); é pernambucano de nascimento e maranhense de coração, onde reside há vários anos. É um ser humano incrível, de sensibilidade e perspicácia aguçadas; por seus olhos e em seu íntimo navegam memórias de tempos de outrora. Espero que tenham gostado desse texto, que nos faz refletir sobre o presente e sobre nossa própria humanidade.

Beijos,

Natércia