(São Paulo: Companhia das Letras, 2007) veja/compre aqui
"Eu sou surdo-mudo, mas leio lábios e entendo o que as pessoas me dizem. Por favor, não grite." (p.65)
Olá beletristas de plantão! O ano de 2019 abre com uma super indicação de leitura: o romance O coração é um caçador solitário (The heart is a lonely hunter), da autora norte-americana Carson McCullers. Publicado originalmente em 1940 e quando McCullers tinha apenas 23 anos, a obra surpreende pela maturidade com que é escrita e como as situações mais íntimas das personagens principais são descritas.
É uma característica da narrativa da autora ter suas obras ambientadas no Sul americano - aquele Sul racista e rancoroso, carregado de dor e de lutas que ecoam até os dias de hoje. Outra característica é a preferência de McCullers pelos incompreendidos, desajustados e repelidos socialmente. Tudo isso está presente no enredo de O coração é um caçador solitário. Tudo isso e muito mais, pois já asseguro que é uma obra tocante e que mexe com os profundos sentimentos de pertencimento e solidão que todos nós temos.
A história se passa em uma cidadezinha sulista no ano de 1938 e que ainda enfrenta as consequências da grande recessão econômica de 1929. Cinco personagens conduzem o fio da meada narrativa e entendê-los em seu âmago é muito importante. John Singer é um trabalhador surdo-mudo porém alfabetizado e que faz leitura labial; Biff Brannon é dono do New York Café, local onde todos da cidade costumam se encontrar para fazer alguma refeição ao longo do dia, e que tem um lado sensível muito aflorado; Dr. Benedict Copeland, um médico negro que sofre racismo constantemente, vive sua vida para ajudar e conscientizar seu povo e acredita que falhou na educação dos filhos; o forasteiro e alcoólatra Jake Blount, mecânico e anarquista, que sonha com uma revolução em que os explorados pelo capitalismo finalmente terão seu valor reconhecido; e a adolescente Mick, que descobre sua paixão pela música e depois se vê dividida entre o sonho e o dever, pois precisa trabalhar para ajudar sua extensa e pobre família.
Todos eles, de uma forma ou de outra, tem em John Singer uma espécie de confidente. Sabem que ele é surdo-mudo e que entende o que eles falam, mas será que Singer os compreende em seus sonhos, devaneios e frustrações, já que ele próprio tem os dele? Singer acaba de perder o melhor amigo, também surdo-mudo, Antonapoulos, que teve de ser internado em um asilo mental por causa de sucessivas crises agressivas. Singer sente uma grande solidão, um vazio que outro amigo não preencheria e sabe disso. Ele resolve alugar um quarto na pensão dos pais de Mick. Sua atitude sempre calma e prestativa tanto ali como no café de Biff, onde faz suas refeições, o tornam respeitado e procurado pelas personagens que já descrevemos.
O que todos tem em comum, e é algo que conduz a história e é latente, é a solidão, apesar de estarem rodeados de pessoas. Mas é uma solidão derivada da incomunicabilidade ou da falta de compreensão mesmo que o mundo tem para com John, Biff, Copeland, Jake e Mick. Por terem desejos, convicções e experiências que os outros não tem, fica difícil que eles sejam compreendidos. Eles até tentam expressar o que sentem, o que querem, mas não tem sucesso. E a incompreensão anda lado a lado com a exclusão, porque aquilo que eu não me esforço para compreender, eu excluo. E outra situação-limite do ser humano, representada em várias passagens do enredo: a necessidade constante de se comunicar, de se fazer entender, que é inerente ao homem, e que é difícil de ser alcançada.
Eventualmente, no espaço daquele um ano em que a história se desenvolve, alguns fatos cruciais acontecerão e mudarão permanentemente as vidas dessas personagens, obrigando-as a se encaixarem em um padrão social sofrido e castrador pra elas. Será que se adaptarão?
Para mim, a personagem de John Singer é extremamente emblemática pois nos leva a refletir sobre a incapacidade que temos em nos comunicar, em sermos compreendidos, em nos encaixar em uma suposta "ordem" que muitas vezes nos isola. A solidão de cada um de nós está guardada no coração - no íntimo que só nós conseguimos chegar e mais ninguém. O desafio de todo dia é saber como lidar com a incompreensão e falta de empatia do outro. O desafio é entender que mesmo juntos, estamos sós, pois cada um é único em seu pensar.
"A solidão que lhe batia nessas horas era tão aguda que ele ficava aterrorizado." (p.168)