sábado, 28 de dezembro de 2019

"Êxtase da transformação", romance de Stefan Zweig

(São Paulo: Companhia das Letras, 2019)
Enviado pela TAG Curadoria para seus assinantes em Novembro/2019

"A surpresa lhe corta a respiração. Nem mesmo em sonhos ela ousara imaginar-se tão bela, tão jovem, tão enfeitada [...]: começara nesta criatura humana o êxtase da transformação." (p.63; 65)

Olá beletristas, tudo bom? Nesse último post do ano de 2019 trago pra vocês a resenha de minha última leitura do ano: o romance Êxtase da transformação, do autor austríaco Stefan Zweig. Confesso que fiquei surpresa ao abrir minha caixinha da TAG Curadoria de novembro pois há muito tempo mesmo não ouvia falar desse autor, salvo quando li, de sua autoria, o famoso "Brasil, o país do futuro" - retrato apaixonado do Brasil sob a ótica de um exilado que veio pra cá em busca de um recomeço. No caso o exilado é o próprio Stefan Zweig, que por também ser judeu, teve que fugir do anti-semitismo, do regime nazista e da 2a Guerra Mundial.

Nas décadas de 1920 e 1930 Zweig foi bastante celebrado como autor, tendo escrito muitos contos, novelas e romances, e grande parte de sua produção literária teve adaptação cinematográfica. O que aconteceu é que, com o nascimento de uma nova ordem sócio-política na Europa e com as consequências da 2a Guerra Mundial a obra de Zweig ficou esquecida - seus livros foram banidos / queimados pelos nazistas. Mas enfim, o que importa é que desde a década de 1970 existe um resgate de seu legado e eu, particularmente, gostei bastante dessa escolha da TAG Curadoria.

A história central de Êxtase da transformação foca na personagem Christine, uma assistente postal de 28 anos (ela trabalha em uma agência dos Correios) de uma vila austríaca que leva uma vida de total privações, ao mesmo tempo que cuida da mãe doente e à beira da morte. Um belo dia ela recebe um telegrama de uma tia que não tem notícias há décadas e que imigrou para os EUA: ela e o marido ficariam felizes se Christine fosse passar as férias com eles em um hotel luxuoso nos Alpes Suíços. A princípio Christine pensa em recusar, mas sua mãe lhe diz para agarrar a oportunidade e ir. Então ela vai. E é lá que ocorre o grande "êxtase da transformação".

Clara, irmã da mãe de Christine, foi para a América pouco antes de estourar a 1a Guerra Mundial e lá casou e enriqueceu. Ao se encontrar com a sobrinha, ela percebe como seus parentes que ficaram e sobreviveram à guerra na Europa de fato empobreceram. Clara então providencia toda uma transformação para Christine - desde a toalete íntima aos vestidos de seda. Por isso o título do romance: a jovem Christine fica extasiada com a transformação que se opera nela, desconhecendo mesmo sua outra persona. Ali, naquele hotel de luxo, ela se depara com um mundo apenas vislumbrado em sonhos: muita comida e bebida, automóveis rápidos, pessoas bonitas e educadas, empregados que executam os serviços rapidamente, camas grandes com lençóis macios e homens ricos que lhe fazem a corte constantemente, desde o sexagenário lorde Elkins a um jovem engenheiro alemão.

Mas no auge dos dias de deslumbre, Christine é repentinamente mandada embora pelos tios; aqui não darei spoiler. E é aí que começa seu verdadeiro inferno: a volta à sua antiga e miserável vida. Tendo experimentado o que há de melhor, Christine sentirá ódio e amargura ao tomar consciência de seu lugar no mundo. Enxotada do paraíso sem saber a razão, a jovem analisará melhor a sociedade em que vive e o que esperar de seu próprio futuro. 

No meio desse turbilhão íntimo, Christine conhecerá o ex-combatente de guerra Ferdinand, amigo de seu cunhado Franz. O moço de 30 anos representa a grande desesperança diante de um Estado falido que luta para se recuperar de uma guerra perdida- no caso a recém proclamada República da Áustria. Para quem não lembra, antes da 1a Guerra Mundial havia o Império Austro- Húngaro; o império perde não só a guerra (junto com a Alemanha) como também muitos territórios. 

Como a história se passa no período entre guerras (década de 1920), é perceptível a crítica social impressa de forma latente nas linhas do romance: tanto Christine quanto Ferdinand conheciam uma vida boa (eram burgueses) antes da guerra, mas tudo se acaba quando o conflito vem à tona. Obviamente que as experiências amargas de Christine não são as mesmas de Ferdinand - os relatos deste oferecem uma boa crítica sobre como o ideal revolucionário não melhorou a vida de ninguém; só iludiu o povo. Mas os dois jovens terão suas vidas ligadas por esse fio de sentimento tão bem conhecido por eles: o ódio à vida miserável e sem perspectivas que ambos possuem. Quem sabe daí não surge uma solução, ainda que desesperadora, já quem ambos não tem nada a perder.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Biblioteca Municipal Mário de Andrade (São Paulo, SP)


Morar este ano de 2019 em São Paulo (se vc me segue no Instagram, já sabe o porquê dessa mudança geográfica temporária!) me rendeu inúmeras experiências culturais, para dizer o mínimo. É claro que eu não poderia esperar menos de uma metrópole, que por sua própria característica cosmopolita, tem o prazer de acolher e ressignificar as vidas de muitos de nós que não pertencemos a este espaço mas nos apropriamos dele. A minha situação, de vir pra cá para estudar, (de novo!) não é diferente nem mais fácil ou difícil de outras tantas pessoas. Me sinto e sempre me senti muito à vontade em São Paulo, mais livre até - penso que é devido à diversidade que encontro aqui. 

Visitar e conhecer a Biblioteca Municipal Mário de Andrade foi muito significativo pra mim, tanto por sua importância histórica, desconhecida por muitos brasileiros, como por minha paixão por livros, sendo eu uma bibliófila (como todos sabem). A BMA é um importante centro de pesquisa do país, é a segunda maior biblioteca pública do país (a primeira é a famosa Biblioteca Nacional, situada no Rio de Janeiro) e é a maior biblioteca municipal do país. Inaugurada em 1925 com um projeto moderno do arquiteto francês Jacques Pilon, esse edifício localizado no centrão da cidade é considerado um marco da arquitetura moderna paulista.

  O nome da biblioteca só homenageia o escritor Mário de Andrade em 1960 e não o faz sem motivo: Mário foi um dos intelectuais que mais lutou pela disseminação da cultura popular em São Paulo e no Brasil, lutou pela educação e democratização da leitura e foi um dos que iniciaram o Modernismo no país (lembram da Semana de Arte Moderna?), ao lado de Oswald de Andrade e de tantos outros artistas importantes, pois esse movimento na verdade se iniciou nas artes plásticas. Eu teria que escrever um outro post só sobre o Mário de Andrade, mas sei que vocês podem acessar facilmente sua vida e seus feitos pelo Google. Vale a pena saber, porém, que o romance Macunaíma (1928) é o resultado de suas andanças pelo Norte e Nordeste do país a fim de entender o que seria essa cultura brasileira, pois o Brasil não poderia continuar sendo só espelho de uma cultura europeia. Ele também foi Secretário de Cultura em São Paulo. Ah, Mário foi tantas pessoas em uma só! Folquelorista, musicólogo, escritor... Uma homenagem bem justa.


Você fica besta mesmo com o acervo e com o espaço da BMA, e olha que conheço outras bibliotecas dentro e fora do país. A quantidade de gente que ainda frequenta a biblioteca é espantosa e isso me encheu de alegria! A internet é maravilhosa, confesso, mas imagino que ainda demorará muuuuuitos anos para que todos os livros sejam digitalizados. Além do que, a exclusão digital é um fato, e pode não ser sentido por você que lê esse post agora, mas a fonte de pesquisa de muitas pessoas ainda está nos livros físicos proporcionados gratuitamente à população nas bibliotecas. Eu me incluo nesse nicho também, pois faço parte da era analógica. Não nasci com um celular/ tablet nas minhas mãos. Com certeza por isso sou bem desencanada com esse tipo de stress - o digital/virtual. Eu também sei distinguir bem realidade de ficção...


O que eu mais amo nas bibliotecas, além obviamente dos livros, é o silêncio. É como se o mundo inteiro parasse só pra isso: para a contemplação das letras e dos textos. Pra mim o silêncio nunca foi ensurdecedor ou incômodo. Ele é sinônimo de paz e volta ao meu interior. Outra sensação que tenho é de que posso estar em qualquer lugar do mundo, mas estarei sempre em casa se estiver em uma biblioteca. É como diz um ditado antigo em inglês: Home is where the heart is ("Casa é onde seu coração está"). 


O que vc precisa saber de imediato sobre a BMA:

↦Endereço: R. da Consolação, 94, República (centro de SP)
↦Horário de funcionamento: geralmente das 8h às 21:30 (de segunda à sexta) e das 8h às 19:30 (sábados, domingos e feriados). Atenção: se vc possui alguma especificidade e deseja consultar acervos específicos da biblioteca, clique AQUI.
Fonte de consulta: prefeitura.sp.gov.br 
Crédito das fotos: Marcelo Vais 💖

Referência da Sétima Arte:
Eu não podia deixar de lembrar de um dos meus filmes preferidos da vida, Cidade dos Anjos (1998; gente, como amo esse filme e o Nicolas Cage e a Meg Ryan e o roteiro do Wim Wenders!). Nele há várias cenas na biblioteca porque a médica Maggie gosta muito de ler e também porque acredita-se que os anjos habitam esse espaço. Afinal de contas, anjos são seres inteligentíssimos...não à toa sua presença junto aos livros é sempre citada...






segunda-feira, 21 de outubro de 2019

"Dias úteis", livro de contos de Patrícia Portela

(Porto Alegre: Dublinense, 2019) 
Clique AQUI para adquirir o livro! (vc ajuda o blog e não pagará nada a mais por isso)

É como viver, para quem ainda não tenha percebido do que se trata. (p.18)

Olá beletristas! A resenha crítica deste mês é de mais um autor português contemporâneo - no caso uma autora, até então desconhecida por mim: Patrícia Portela. Ela já escreveu várias obras e Dias úteis é sua mais recente publicação (2017). Algo interessante sobre a formação de Portela é que ela não é apenas escritora mas também artista em um conceito mais amplo: já idealizou e executou diversos projetos artísticos interdisciplinares, como espetáculos teatrais e instalações. Outra curiosidade sobre sua vida pessoal é que Portela vive entre Portugal e Bélgica e fez cursos em diferentes países, sempre voltados para as artes (cênicas e/ou plásticas).

Os contos que integram Dias úteis demonstram essa versatilidade e essa união entre as palavras e a performance, indicando uma fusão plena entre imagem, cena, voz, atuação e perspectiva, sem deixar de lado o trabalho lírico com a linguagem. Afinal de contas, tudo se volta à arte, não é mesmo? A própria literatura é arte em palavras e contém em si a força imaginativa. Apesar da "orelha" do livro evocar sua divisão em sete contos curtos, "um para cada dia da semana", eu considero que na verdade são 9 contos: prefácio fora de jogo, didascália, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, porque hoje é sábado e epitáfio de domingo para o dia seguinte. Isso sem contar as epígrafes, que por si só contém a essência das narrativas, transformando-se em novos textos a serem (re)descobertos. As epígrafes são convites para adentrarmos o texto, e a primeira delas resgata o poeta/ heterônimo pessoano Ricardo Reis:

passeemos juntos
só para nos lembrarmos disto...

Então entramos no livro e passeamos pelas cenas descortinadas pelos múltiplos narradores, como se fossemos espectadores ávidos de conhecimento sobre a vida cotidiana - mas esse é o jogo que se estabelece lá no prefácio: cuidado, porque esse jogo aí não tem regras e por conter inúmeras expectativas, pode ter resultados diferentes para cada leitor. A didascália estabelece um acordo entre ambas partes: vamos devagar, sem julgamentos ou pretensões, sempre atentos a um possível retorno. A segunda-feira nos confronta com o ambíguo conformismo/inconformismo típico do vazio da vida ligada no piloto automático. A terça-feira nos traz o desabafo em uma sessão de terapia, e o inevitável confronto (de novo!) conosco. A quarta-feira nos leva a uma perda, a um fragmento de memória, de um retorno a uma porta há muito tempo trancada.

A quinta-feira revisita a jornada de um Orlando contemporâneo, em busca do seu próprio tempo, lugar, memória e identidade, questões tão limítrofes e urgentes nos dias de hoje. A sexta-feira evoca o silêncio que clama tão alto dentro de nós mesmos, e por isso é a voz mais significativa que podemos ouvir. Porque hoje é sábado nos obriga a sucumbir à memória da pessoa amada morta, pois "a memória é um inimigo poderoso, mantém o cérebro a funcionar contra a sua vontade." (p.90) O epitáfio de domingo para o dia seguinte...bom, depois de tantos mergulhos e revelações, esse epitáfio é nosso como queiramos escrever. Ou interpretar. Ou (re)viver. 



quarta-feira, 11 de setembro de 2019

"Autobiografia", romance de José Luís Peixoto

(São Paulo: Companhia das Letras, 2019) 
Enviado pela TAG Curadoria para seus assinantes em julho/2019
Conheça a proposta da TAG Experiências Literárias AQUI

A vida, que parece uma linha reta, não o é. 
(epígrafe da p.81)

Resenhar um romance de José Luís Peixoto não é fácil, ainda mais quando ele é inédito (foi encomendado especialmente pela TAG ao autor como item de comemoração dos 5 anos do clube de assinaturas). Não foi apenas José Saramago que ainda em vida declarou que Peixoto é "uma das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa e que é um homem que sabe escrever e que vai ser o continuador dos grandes escritores."* A crítica literária já o considera um dos grandes autores do século XXI e como somos da mesma geração (ele tem 44 anos e eu, 40), me sinto muito bem representada. Portanto esta resenha não me sai fácil, não.

E ainda temos o complicador instigante (gostaram dessa definição?) das boas características de uma prosa contemporânea da qual Peixoto domina todas as técnicas e entremeios. Estamos falando de uma mistura de todas as "metas": metalinguagem, metaficção. Mas também falamos de memória, de alteridade, da literatura em si (escrita/ autoria/ leitor/objeto "livro"/linguagem), do posicionamento desconfortável do leitor diante de um texto que nos "trai" a todo instante, da humanização de grandes pessoas/personagens que tem seu destaque na história de um povo, do questionamento e homenagem concomitantes ao que chamamos de arte literária.** O grande tema do romance Autobiografia (2019) não poderia ser outro mesmo: a própria literatura. E é por essa ousadia que Peixoto é tão genial.

Mas vamos ao seu enredo, se é que eu posso mesmo contar essa história e ao mesmo tempo ser digna da confiança de vocês, né? (olha aí eu manipulando meus leitores hahaha). Na Lisboa de 1997 mora José, um autor que já publicou seu primeiro romance (sem alcançar muito sucesso) mas que não consegue escrever o segundo. Um dia seu editor, Raimundo, procura-o para que escreva uma biografia de José Saramago, algo como um "texto ficcional de cariz biográfico"*** , acreditando que esse projeto possa tirar José de seu bloqueio literário. O jovem autor de 30 anos aceita o desafio, mesmo duvidando de sua capacidade. Essa dúvida só aumenta quando ele se encontra com o próprio Saramago para colher notas sobre sua vida, as quais utilizará para compor a tal biografia.

Com suas múltiplas vozes, a história também narra paralelamente os fatos (serão verdadeiros?) e memórias tanto de José quanto de Saramago, que a essa altura é um autor consagrado, casado com a terceira esposa, Pilar, está terminando de escrever um livro de memórias (Cadernos de Lanzarote) e percebe muito de si em José; além disso, Saramago possui um segredo, o qual quer revelar no momento certo ao jovem e confuso escritor.  

Orbitam a vida de José pessoas que de alguma forma o ajudarão nessa trajetória de redescobrir os meandros da escrita: o colonialista septuagenário Bartolomeu (que odeia o comunista Saramago), a jovem imigrante cabo-verdiana Lídia (que é fã de Saramago) e o alemão dono de livraria Fritz, de quem uma vez José roubou um livro - de Saramago! Cada uma dessas personagens traz suas próprias narrativas e memórias, que se amalgamam à narrativa de José - ou seria de Saramago? Percebem como os fios da metaliteratura nos deixa em território instável, porém instigante, como eu disse no início desse texto? E requer de nós, leitores, olhares mais que atentos: críticos.

Eu imagino que para um assinante da TAG Experiências Literárias, que se depara pela primeira vez com o estilo de José Luís Peixoto, não deve ter sido fácil percorrer este romance de 246 páginas, pois não é para ser lido de forma displicente assim como não dá para prever os rumos que o enredo nos leva. Se você o ler no futuro (já já sai a edição da Companhia das Letras, que fez a parceria com a TAG), sugiro atenção especial ao capítulo 20. É o capítulo mais lindo desse romance, pois aí reside sua essência, a qual gira em torno da eterna pergunta: de que fala a literatura? E como apresentá-la a alguém? Só ouso devanear sobre essas respostas em sala de aula, com meus alunos e professores beletristas.;)

Um adendo: se você também é assinante da TAG Experiências Literárias como eu e leu esse romance, deixa seu comentário aqui abaixo pra gente conversar um pouco, tá certo?


Como posso saber se eu sou eu ou eu? (p.215)

REFERÊNCIAS:

*Revista da TAG Experiências Literárias, p.5.

** Para beletristas que queiram conhecer mais sobre prosa contemporânea e a questão da metaficção, sugiro a leitura dos seguintes teóricos (alô alunos/ professores de Teoria e Crítica Literária):
1. HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. Canadá: Wilfrid Laurier, 2013.
2. BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
3. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.

***Essa expressão aparece de forma recorrente no romance Autobiografia.




segunda-feira, 12 de agosto de 2019

"O infame clube vitoriano das mulheres livres" - org. por Valquíria Vlad & Karine Ribeiro

(São Caetano do Sul: Ed. Wish, 2019) 
(Você pode adquirir o livro clicando AQUI e não pagará nada a mais por isso, e ainda ajudará o blog a se manter! Obrigada!)

"Os homens não, eles podem matar, fazer guerra e expor seus colhões mundo afora que nada disso afronta ou os acomete a justiça pelos seus atos. Porém a mulher já nasce silenciada. Se pudessem os homens impedi-las sequer de chorar ao nascer, o fariam." p.108.

Olá beletristas, tudo bom? Hoje vim indicar a leitura de O infame clube vitoriano das mulheres livres, organizado por Valquíria Vlad e Karine Ribeiro. A linda edição da editora Wish traz histórias de mulheres que ousaram ser livres durante um período histórico inglês conhecido como Era Vitoriana, possuindo esse nome devido ao longo reinado da Rainha Victoria que compreendeu o período de 1837 a 1901.

Apesar do luxo e expansão do império britânico caracterizarem esse período, assim como a consolidação da Revolução Industrial, a era Vitoriana também ficou conhecida por seus rígidos valores puritanos e pelas atitudes de uma sociedade hipócrita (pois por baixo desse estilo conservador, o número de prostíbulos e casas de ópio aumentaram consideravelmente). A sociedade vitoriana também quase não permitia uma ascensão social justa, já que o que importava era colocar as massas para trabalharem nas fábricas por longas jornadas exaustivas  - assim sendo, a exploração de mulheres e crianças é uma denúncia constante em vários relatos deste período. Não haviam escolas, as habitações e condições de saneamento eram muito precárias e as grandes cidades inglesas demonstravam claramente uma desigualdade social extrema, apesar do crescimento econômico. Um dos maiores autores da era vitoriana, Charles Dickens, retrata muito bem esse panorama em seus romances.

Mas as histórias que permeiam O infame clube tem a ver com as formas de liberdade que várias mulheres vitorianas buscaram para si, apesar de que seu objetivo final de vida fosse o casamento, aliado a uma vida marcada pela repressão e rigidez de costumes (ambos metaforizados no temível corset, peça de vestuário íntimo feminino que apertava horrores as costelas para que a mulher alcançasse um nível impossível de cintura fina, e consequentemente, de um padrão de beleza meio mórbido que hoje em dia me parece ser mais romantizado do que criticado). 

O infame clube vitoriano das mulheres livres é uma coluna de jornal britânico editado e publicado por uma mulher que possui o pseudônimo A Dama. Ela recebe cartas de mulheres que se sentem à vontade para contar suas histórias, para que assim, mostre às mulheres que leem que existe uma saída para suas angústias e opressões, encorajando-as a ter esperança. Não sabemos enquanto leitores se são histórias fictícias ou verídicas, mas acredito na máxima "a arte imita a vida". Uma das histórias eu verifiquei que realmente a protagonista existiu: a famosa Lady Isabel Burton, que acompanhou o marido em inúmeras aventuras pelo mundo afora além de ter publicado vários livros sem utilizar o artifício do pseudônimo. Ela diz que o marido sempre a incentivou a ser de fato "uma companheira de vida" e a escrever suas histórias. E ao que parece, um casal assim em plena era vitoriana é um verdadeiro milagre da existência social.

As histórias em geral refletem artifícios usados por mulheres que ansiavam por fazer valer sua independência financeira, realizar seus sonhos e até mesmo se defenderem de injustiças cometidas contra elas. Lemos sobre casos de travestismo, em que a mulher se traveste de homem para tocar os negócios da família ou simplesmente frequentar a escola de música; lemos sobre exemplos de sororidade, em que uma escrava salva sua senhora da morte ou quando uma ex-cozinheira estende as mãos à patroa recém-divorciada e excluída socialmente. Lemos sobre a vontade de uma moça em aprender a montar cavalos, mas é proibida pelo pai, que entende neste ato o perigo da ideia da liberdade. 

Enfim, de várias formas percebemos que, por mais que a submissão às regras da sociedade vitoriana fosse o esperado, várias mulheres ousaram ir além. E ainda bem que ousaram. E tomaram coragem. Sem esses exemplos, da vida real ou não, talvez outras mulheres não ousassem chegar ao patamar que chegamos hoje. Somos frutos de um passado histórico de conquistas e lutas, e olhar para trás, nesse sentido, me dá um certo conforto de que consigo seguir em frente e lutar por minhas ideias. Até porque, engana-se quem pensa que a guerra está ganha. O percurso trilhado por nós mulheres, pelo que observo diariamente, ainda é bem sinuoso e espinhoso. Avante então.

"Eu espero que como mulher você encontre a liberdade de um menino." p.34.





quinta-feira, 1 de agosto de 2019

"Crystal: uma história de sincretismo e encantaria", romance de Samira Fonseca

(Itapecuru-Mirim, MA: Ponto a Ponto Gráfica e Editora, 2017) Disponível para compra na Livraria AMEI do São Luís Shopping (São Luís, MA)

Olá beletristas, tudo bom? Cumprindo minha promessa de trazer mais indicações de leitura e resenhas de autores maranhenses aqui para este espaço, hoje vou falar de um romance mágico e contemporâneo que li recentemente: Crystal: uma história de sincretismo e encantaria. A autora Samira Fonseca é natural de Itapecuru-Mirim (MA), local onde reside e trabalha como professora, e é também uma das fundadoras da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes - AICLA. Conheci a cidade em 2005 por conta de uma disciplina que fui ministrar lá pela Universidade Estadual do Maranhão (permaneci apenas 1 semana), e confesso que após ler o romance de Samira simplesmente cheguei à conclusão de que preciso retornar à Itapecuru para observá-la com esse olhar de "encantaria" que me encantou após a leitura de Crystal. A ficção tem dessas coisas mesmo: faz com que nós, leitores, queiramos vivenciar as páginas da história narrada. De preferência ao vivo e a cores.

Mas em parte acho que consegui adentrar em algumas ambientações do romance, pois o enredo se passa tanto em Itapecuru quanto na capital São Luís. Como nasci na Ilha de Upaon-Açu, conforme São Luís era nomeada pelos índios que aqui habitavam à época do descobrimento do Brasil, reconheci muitos lugares em que o professor de Música Pedro passeia com sua amiga Crystal, advogada e professora de História. Porém Pedro também mora em Itapecuru, e a narrativa te leva a (re)descobrir essa cidade  com seus encantos e peculiaridades, em especial o sincretismo religioso que existe lá entre o candomblé e o catolicismo.

Como toda boa história, esta possui um conflito central bem interessante: Crystal nunca recebeu o presente deixado pelo avô após seu falecimento, pois a avó dela não permitiu. Intrigado com esse mistério, Pedro decide investigar que presente é este e onde estará, pois acredita que Crystal merece recebê-lo e que ele tem relação com a história da família dela bem como suas origens. A jornada empreendida por Pedro também será amorosa, já que ele é apaixonado por Crystal desde os tempos de faculdade. A única pista que ambos tem é um poema deixado pelo avô da moça:

Na união do Orisum e do Ombarisá,
Descansando no seio santo,
Coberto do mais fino ouro branco
Protegido pelas mãos de Oxalá.

A escrita de Samira ainda se prende a alguns academicismos que considero desnecessários à ficção contemporânea, porém não compromete seu estilo que está em amadurecimento, já que o escritor se encontra em permanente construção de si mesmo. A linguagem clara misturada à estrutura de capítulos curtos torna a narrativa ágil e nem de longe maçante; pelo contrário, me vi tão envolvida na história que a li em um dia e meio. 

Samira demonstra um conhecimento invejável de temas que expõe com propriedade crítica ao longo do romance, como o sincretismo religioso (em especial quando descreve o Tambor de Mina) e a situação histórica e social de exclusão de áreas quilombolas da região de Itapecuru, aliada à falta de políticas públicas de inserção. Por esses temas mais que pertinentes, e que pertencem à história de nosso país, e por retratar com tanto amor sua cidade é que a leitura deste romance não pode passar despercebido, nem aos leitores maranhenses nem aos leitores do restante do Brasil. 



terça-feira, 9 de julho de 2019

"Setenta" - romance de Henrique Schneider

(Porto Alegre: Não Editora, 2019)
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“E por que lhe faziam tanto mal aqueles homens? Impossível que não soubessem que Raul era apenas um pobre coitado, um zé-ninguém qualquer, alguém sem a menor ideia de como havia acontecido o tal sequestro e sem maiores conhecimentos sobre qualquer assunto, a não ser o trabalho, futebol e banalidades.” (p. 147)

Ano de 1970, Porto Alegre (RS). O Brasil vive simultaneamente o auge da ditadura militar e a final de uma Copa do Mundo de futebol. Raul, um jovem bancário de 25 anos que leva uma vida sem grandes sobressaltos junto à mãe viúva, é preso por engano, confundido com um sequestrador/ guerrilheiro. Por 10 dias Raul é torturado por homens que querem que ele explique como ocorreu o sequestro do tal cônsul americano, mas Raul, que nunca ligou pra política, não sabe do que eles estão falando e experimenta o inferno que nem suspeitava existir em seu país, o qual vive um grande momento de ordem e progresso conforme noticiado nos jornais. 

O romance do autor gaúcho Henrique Schneider, que levou o Prêmio Paraná de Literatura em 2017, mexe, cutuca e remexe numa ferida que lateja constantemente na história do Brasil: o regime militar e a tortura como forma de se fazer justiça. É uma narrativa corajosa que coloca à prova o discurso legítimo do “cidadão de bem” brasileiro, afinal de contas, nem Raul, que era funcionário, filho e cidadão-modelo escapou das injustiças de um regime de exceção.

“E a outra coisa, ainda mais importante: isso que tá acontecendo nunca aconteceu! Tu nunca foi preso! Nunca!” (p.12)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Flores para Algernon, romance de Daniel Keyes

(São Paulo: Aleph, 2018)
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"Se você é intelijente você podi ter muitos amigos pra conversar e você nunca fica solitário sosinho o tempo todo."

Olá pessoal, tudo bom? Ainda tenho os olhos úmidos de lágrimas pois terminei agora de ler esse romance (sério, sem clichê porque é verdade) e vou escrever essa resenha impactada emocionalmente. Começo perguntando: como pude passar tanto tempo sem conhecer essa obra? E digo mais: obrigada, editora Aleph, por trazer aos leitores brasileiros um romance que é simplesmente um dos mais lidos nos EUA além de ser muuuuito utilizado por professores americanos em suas aulas. Depois que vocês lerem Flores para Algernon, vocês saberão o porquê dele ser adotado em várias escolas.

Daniel Keyes, o autor, a princípio o publicou em formato de conto em 1959, mas viu que a história tinha potencial para ser melhor desenvolvida, e assim, transformou-a em romance e tornou a publicá-lo em 1966. Aí fez tanto sucesso, ganhando prêmios do gênero ficção científica como o Nebula e o Hugo, que foi adaptado para o cinema em 1968 com o título de Charly. Detalhe: o ator Cliff Robertson que interpreta o personagem-título ganhou o Oscar de Melhor Ator. Ufa! Será que até aqui já convenci vocês a lerem o romance? Espero que sim! 

Mas vamos à história, que como falei há pouco, se insere no gênero ficção científica - o qual sou fã declarada, já disse várias vezes, ou por aqui ou lá no Instagram (@a_beletrista). Charlie é um rapaz com um Q.I baixo, algo em torno de 68, que possui retardo mental e não consegue reter o que aprende. Ele frequenta a escola noturna e tem aulas com a prof Alice Kinnian e trabalha numa padaria executando serviços simples e que permitem que ele se sustente como um ser humano capaz e responsável por si. Seu sonho é ser inteligente como todo mundo, pois desde criança Charlie sofre muito com a insatisfação da mãe em vê-lo nesse estado. Ele foi rejeitado pela família quando adolescente, enviado à uma instituição para pessoas com vários tipos de deficiências.

Em uma oportunidade única, Charlie aceita participar de um projeto de pesquisa cujo objetivo é "dar" inteligência a pessoas como ele por meio de uma cirurgia no cérebro, mesmo sem saber exatamente quais serão as consequências disso em humanos, já que ele é o primeiro que se submete a essa experiência. Em troca, ele deve executar vários testes no laboratório de Psicologia da universidade, escrever relatórios de progresso diários e/ou semanais e não faltar às sessões de terapia. No laboratório ele conhece o ratinho Algernon, único animal submetido à mesma experiência que Charlie.

E a cirurgia dá certo. E o que se vê dali em diante é espantoso: a inteligência de Charlie alcança um nível inimaginável, ultrapassando até o Q.I de seus mentores, o psicólogo Dr. Nemur e o psiquiatra e neurocirurgião Dr. Strauss. O mais espantoso é o que se segue: todo esse salto cognitivo faz com que Charlie perceba que esse projeto de pesquisa tem uma falha, descoberta após várias observações no comportamento de Algernon.

O texto que lemos em Flores para Algernon é simplesmente TODO o relato de progresso de Charlie - o antes, o durante e o depois, sendo narrado por ele mesmo, de forma cronológica. Por isso é tocante: porque você fica íntimo dos desejos e das dores de Charlie. A minha emoção se deve à questões mais humanas que a leitura desse romance traz à tona o tempo todo: a inteligência realmente nos faz seres humanos melhores? Ou corremos o risco de nos isolarmos e nos tornarmos mais autocentrados e egoístas? Como Charlie era tratado quando ainda possuía retardo mental: com respeito ou com compaixão pelos outros? Quando Charlie "conseguir" ficar inteligente, como as pessoas o enxergarão? Mas o mais importante: o que ele fará com tudo o que aprendeu em tão pouco tempo? Em que ser humano ele se transformará? Ressaca literária define essa leitura...

"Mas agora sei que existe algo que todos vocês negligenciaram: inteligência e educação sem doses de afeto humano não valem droga nenhuma."




sexta-feira, 17 de maio de 2019

Lupita gostava de engomar - romance de Laura Esquivel

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(Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018) CLIQUE AQUI PARA COMPRAR O LIVRO (e vc não pagará nada a mais por isso além de ajudar o blog) ;)

Passar roupas lhe dava paz. Considerava sua melhor terapia e recorria diariamente a ela, inclusive depois de um longo dia de trabalho. (p.9)

Olá beletristas, tudo bom? Hoje trago para a vida de leitura de vocês o romance mexicano Lupita gostava de engomar (publicado originalmente em 2014), da autora Laura Esquivel. Vocês devem conhecê-la mais por seu best seller Como água para chocolate (1989), que fez um enorme sucesso mesmo depois de ser adaptado para o cinema em 1992:

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Esquivel é uma autora mexicana consagrada, tem outras publicações literárias e já há algum tempo se dedica à política, sendo hoje deputada pelo Partido Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA). Mas vamos à história de Lupita e do porquê ela gostava de engomar roupas: porque esse ato funcionava como uma "válvula de escape", liberando-a do stress cotidiano de policial e também ocupava sua mente, para que ela não tivesse nenhuma recaída já que era uma alcoólatra em tratamento.

Logo no primeiro capítulo descobrimos o conflito da história: Lupita testemunha o assassinato do administrador distrital que ela tanto admira, o doutor Larreaga, a quem ela acompanhava desde quando ele fazia campanha política. No decorrer da narrativa, muitas são as pistas que Lupita deve seguir para montar o "quebra-cabeças" desta morte estranha, estranha sim porque não conseguiram identificar nem qual objeto perfurocortante atingiu a garganta do administrador de forma fulminante.

Mas Lupita não gostava apenas de engomar. Ao longo dos capítulos vamos nos inteirando do quê mais ela gosta de fazer (coisas boas e ruins) e conhecemos sua vida pregressa bem como seus traumas e o histórico de abusos que a levaram para o álcool. Lupita é uma personagem complexa, ao mesmo tempo agressiva e carente de amor e atenção, com baixa auto estima e que carrega uma culpa imensa sobre uma tragédia familiar.

O romance segue a ideia de ser uma narrativa policial, porém a carga dramática contida em Lupita salta aos olhos em todos os capítulos; além do mais, a história contém um pano de fundo de crítica social aos problemas mexicanos que simplesmente destroem qualquer tentativa de progresso no país: corrupção política em todos os níveis, narcotráfico, pobreza e problemas com as comunidades indígenas, que ainda são muito fortes e atuantes no México.

Outro ponto interessante acrescido em quase todos os capítulos são pequenas histórias sobre a cultura mexicana, que explicam sua cultura, hábitos e crenças, muito vinculadas aos povos chamados pré-hispânicos, como os astecas.  A importância da liderança dos xamãs - guias espirituais que até hoje gozam de seu espaço na vida do mexicano, convivendo tranquilamente com a religião católica - também se faz presente na história de várias formas, e esse entendimento será peça-chave para a solução do crime.

E que, assim como os deputados e senadores aproveitavam a escuridão da madrugada para aprovar às pressas reformas energéticas e fazer acordos infames, covardes e ignominiosos para entregar a empresas estrangeiras os recursos naturais do país, Lupita descobriu que existia outro México. (p.150)


segunda-feira, 15 de abril de 2019

Kyoto - romance de Yasunari Kawabata

(São Paulo: Estação Liberdade, 2006) Para adquirir, clique AQUI

"E antes de tudo era primavera. Viam-se também as nuances de cores de folhas das folhas tenras das montanhas de Higashiyama [...]" (p.63)

Olá beletristas de plantão! A resenha de hoje é sobre a obra que escolhi para o meu desafio literário 2019 do item Literatura Japonesa. Cheguei ao conhecimento de Kyoto (1961-1962), do Yasunari Kawabata por meio de um outro romance, o Voragem (1928-1930) do Junishiro Tanizaki, o qual li ano passado. Muitas vezes me perguntam como escolho as leituras que faço, mas em geral é aquela velha história: uma leitura puxa a outra kkk. Taí um bom exemplo desse caso com a literatura japonesa.

Pois bem, esses dois romances não se assemelham em quase nada, nem em seus enredos e técnicas de escrita e nem em sua temporalidade, já que foram escritos em períodos bem distintos da literatura; no entanto eles possuem um ponto em comum: foram publicados em folhetins. O Kawabata possui uma distinção enquanto autor: ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1968 e revela em sua escrita muita sensibilidade e fineza, várias vezes até rebuscada, para narrar sua história. Ele realmente estudou Literatura na Universidade Imperial de Tóquio e "foi um dos fundadores da Bungei Jidai, revista literária influenciada pelo movimento modernista ocidental, em particular o Surrealismo francês." (3a capa, 2006)

Uma outra característica interessantíssima em sua forma de escrita é a evocação permanente de aspectos sensoriais (cheiro, visão, tato, paladar e audição). A descrição da natureza e sua influência na cultura japonesa é marcante em Kyoto, algo também revelado no delineamento de suas personagens. Eu entendo isso como um trunfo; nosso olhar ocidental apressado, porém, entenderia como lentidão e sob essa perspectiva, talvez muitos de vocês, leitores, não gostarão da leitura deste romance. Como sempre, eu vou na contramão do gosto apressado e indico Kyoto para que vocês aumentem o repertório cultural.

A história é a seguinte: Chieko é uma jovem de uns 20 anos, sensível e bonita, filha de Sada e Shige. Seus pais possuem uma loja atacadista de tecidos em um bairro de Kyoto e estão com complicações financeiras. Chieko sempre soube que fora adotada quando bebê, mas o que ela não imaginava era ter uma irmã gêmea, Naeko, a qual conhece de forma inusitada durante o famoso Festival Gion - um festival que saúda o verão. Logo percebemos a distinção de classes sociais a que as irmãs pertencem: Chieko possui estudo e é herdeira de um negócio tradicional; já Naeko foi criada num povoado rural próximo a Kyoto e teve uma vida mais simples. Apesar do susto, o que se sucede é a tentativa de Chieko de conhecer suas origens e aproximar a irmã de sua família, pois ela quer essa convivência.

Ao mesmo tempo em que descobre uma irmã, Chieko se vê desejada por aparentemente 3 jovens pretendentes: Hideo, artesão, filho de uma família tradicional dedicada ao ofício de produzir obis (faixas que compõem os quimonos) por meio do tear manual; e de dois irmãos, Shin'ishi e Ryusuke, bem diferentes entre si e já possuidores de atitudes mais "ocidentalizadas", e ambos herdeiros de uma próspera loja de atacado de quimonos. Há aqui, como em várias passagens do romance, a demonstração da dualidade entre tradição / passado X modernidade / presente (já que a época é a década de 1960): os pais de Chieko não a pressionam na escolha de seu futuro marido, deixando a ela esta decisão; eles querem mesmo que ela se case por amor, não importando as condições do pretendente. 

É importante destacar que os capítulos da obra metaforizam as estações do ano de uma forma bem delicada: a narrativa começa na primavera, no contemplar do florescer das cerejeiras e das "violetas que floresceram no tronco do velho bordo" (2006, p.13) e termina no inverno, com "as pequenas porções de folhas arredondadas, remanescentes nas extremidades dos cedros emprumados, e que pareciam a Chieko flores de inverno [...]" (2006, p.237).

Mas o que mais me chamou a atenção na leitura de Kyoto, e que eu já havia comentado anteriormente, é toda a revelação e explicação de vários aspectos culturais japoneses. Fica muito claro pra mim inclusive que a proposta mor da execução deste romance é destacar justamente esse âmbito da cultura e da história, já que na época o país estava passando por um processo de ocidentalização, recebendo cada vez mais turistas curiosos por seus costumes, pelos templos budistas e xintoístas, pelos festivais que celebram as estações do ano, enfim, curiosos pelo Oriente e por sua história tão diversa e tão mais antiga que a do Ocidente. É por agregar uma grande gama de conhecimento cultural que indico a leitura de Kyoto. Terminei-a querendo muitíssimo conhecer não só esta cidade, com muitos de seus patrimônios históricos tombados pela UNESCO pois foi a primeira capital do Japão, mas também Tóquio, a capital atual, que traz a modernidade em seu DNA.  

"Oh! .... Mas... Mas é minha irmã! Foi a graça dos deuses que nos ajudou." (p.125)




terça-feira, 12 de março de 2019

"A uruguaia" - Pedro Mairal

(São Paulo: Todavia, 2018) compre aqui

"Ninguém é somente uma pessoa, cada um é um nó de pessoas..."

Olá beletristas! Tudo bom, gente? Trago mais uma indicação de leitura que eu tenho certeza que vcs vão gostar - um romancinho curtinho do autor argentino contemporâneo Pedro Mairal: "A uruguaia" (123 pág.) Essa leitura chegou pra mim de uma indicação de uma amiga do clube de leitura (segue lá no Instagram @littlewomen_clubedeleitura) e eu comprei e li no Kindle.

Originalmente o romance foi publicado em 2016 e já alcançou sucesso de crítica, tendo sido traduzido para inúmeros idiomas também. O autor tem 49 anos e é considerado um dos grandes nomes da literatura latino-americana da atualidade. Se a história flui muito bem, a leitura idem, até porque entrega muitas referências do nosso mundo cotidiano, especialmente se vc leitor também tem a mesma idade e os mesmos gostos e desafios do narrador-personagem Lucas Pereyra- coisas de gente que chegou aos 40 anos.

Lucas conta a um interlocutor, de forma despretensiosa, sobre um dia que ele passou no Uruguai a fim de resolver negócios financeiros pois possuía conta bancária lá, e não na Argentina: ele deveria sacar uma soma alta de dinheiro, algo em torno de 15 mil dólares, que foram enviados por 2 editoras como adiantamento para que Lucas escrevesse 2 livros, um de crônicas e um romance. Afundado em dívidas e vivendo um casamento que não lhe satisfazia, o narrador começa a expor suas frustrações e angústias misturadas com memórias de relacionamentos anteriores e de sua vida familiar enquanto aguarda o fim da viagem de ferryboat para chegar em Montevidéu. 

Ficamos, claro, na expectativa de que algo vai acontecer com Lucas quando ele tiver sacado todo esse dinheiro e depois retornar à Argentina - que era o plano inicial. Percebemos, com o desenrolar da história, que Lucas tem mais outros interesses no Uruguai que não sejam apenas os financeiros e profissionais. Por exemplo, (re) encontrar-se com uma bela uruguaia, Magalí Guerra, que do alto de seus 20 anos seduziu Lucas, um quarentão imaturo, alguns meses atrás quando ambos se conheceram em um congresso de Literatura. O que acontecerá nesse dia em Montevidéu, será, sem brincadeira nenhuma, uma grande sucessão de erros, acertos e ingenuidades. E algumas lições.

Mas não pense que esta é uma história amarga e melancólica de um quarentão egoísta que fica o tempo todo reclamando do que não deu certo em sua vida, ou de que não estava preparado pra ser pai, ou do quanto odeia dar aulas porque isso rouba seu tempo, enquanto ele poderia estar escrevendo seu tão sonhado romance; não. A história em muitos momentos se torna mais cômica do que trágica, exatamente. Talvez porque na vida real, as coisas mais inesperadas devem ser encaradas dessa forma mesmo: com menos desespero e com mais lucidez. Mesmo que essa lucidez só chegue beeeem mais tarde, porque acredito que só conseguimos entender e explicar os fatos do passado depois de um bom tempo.

Ler "A uruguaia" é garantia não só de boas risadas (ainda que nervosas); é garantia de uma jornada rumo ao autoconhecimento; te leva a fazer um balanço de vida até aqui, até essa metade da vida que é quando você chega, como Lucas e como eu, aos 40 anos de idade. Você se questiona se realmente fez as escolhas certas e procura o tempo todo algo novo na esperança de que isso te tire de uma rotina desgastante e sem cor. Você corre atrás de aventuras na esperança de resgatar a jovialidade e a coragem do passado. Só não podemos fazer como Lucas e achar que tudo acontece sem consequências ou sem atingir as pessoas ao nosso redor. Como toda época da vida, a maturidade só chega com a experiência. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O coração é um caçador solitário - Carson McCullers

(São Paulo: Companhia das Letras, 2007) veja/compre aqui

"Eu sou surdo-mudo, mas leio lábios e entendo o que as pessoas me dizem. Por favor, não grite." (p.65)

Olá beletristas de plantão! O ano de 2019 abre com uma super indicação de leitura: o romance O coração é um caçador solitário (The heart is a lonely hunter), da autora norte-americana Carson McCullers. Publicado originalmente em 1940 e quando McCullers tinha apenas 23 anos, a obra surpreende pela maturidade com que é escrita e como as situações mais íntimas das personagens principais são descritas.

É uma característica da narrativa da autora ter suas obras ambientadas no Sul americano - aquele Sul racista e rancoroso, carregado de dor e de lutas que ecoam até os dias de hoje. Outra característica é a preferência de McCullers pelos incompreendidos, desajustados e repelidos socialmente. Tudo isso está presente no enredo de O coração é um caçador solitário. Tudo isso e muito mais, pois já asseguro que é uma obra tocante e que mexe com os profundos sentimentos de pertencimento e solidão que todos nós temos. 

A história se passa em uma cidadezinha sulista no ano de 1938 e que ainda enfrenta as consequências da grande recessão econômica de 1929. Cinco personagens conduzem o fio da meada narrativa e entendê-los em seu âmago é muito importante. John Singer é um trabalhador surdo-mudo porém alfabetizado e que faz leitura labial; Biff Brannon é dono do New York Café, local onde todos da cidade costumam se encontrar para fazer alguma refeição ao longo do dia, e que tem um lado sensível muito aflorado; Dr. Benedict Copeland, um médico negro que sofre racismo constantemente, vive sua vida para ajudar e conscientizar seu povo e acredita que falhou na educação dos filhos; o forasteiro e alcoólatra Jake Blount, mecânico e anarquista, que sonha com uma revolução em que os explorados pelo capitalismo finalmente terão seu valor reconhecido; e a adolescente Mick, que descobre sua paixão pela música e depois se vê dividida entre o sonho e o dever, pois precisa trabalhar para ajudar sua extensa e pobre família.

Todos eles, de uma forma ou de outra, tem em John Singer uma espécie de confidente. Sabem que ele é surdo-mudo e que entende o que eles falam, mas será que Singer os compreende em seus sonhos, devaneios e frustrações, já que ele próprio tem os dele? Singer acaba de perder o melhor amigo, também surdo-mudo, Antonapoulos, que teve de ser internado em um asilo mental por causa de sucessivas crises agressivas. Singer sente uma grande solidão, um vazio que outro amigo não preencheria e sabe disso. Ele resolve alugar um quarto na pensão dos pais de Mick. Sua atitude sempre calma e prestativa tanto ali como no café de Biff, onde faz suas refeições, o tornam respeitado e procurado pelas personagens que já descrevemos.

O que todos tem em comum, e é algo que conduz a história e é latente, é a solidão, apesar de estarem rodeados de pessoas. Mas é uma solidão derivada da incomunicabilidade ou da falta de compreensão mesmo que o mundo tem para com John, Biff, Copeland, Jake e Mick. Por terem desejos, convicções e experiências que os outros não tem, fica difícil que eles sejam compreendidos. Eles até tentam expressar o que sentem, o que querem, mas não tem sucesso. E a incompreensão anda lado a lado com a exclusão, porque aquilo que eu não me esforço para compreender, eu excluo. E outra situação-limite do ser humano, representada em várias passagens do enredo: a necessidade constante de se comunicar, de se fazer entender, que é inerente ao homem, e que é difícil de ser alcançada.

Eventualmente, no espaço daquele um ano em que a história se desenvolve, alguns fatos cruciais acontecerão e mudarão permanentemente as vidas dessas personagens, obrigando-as a se encaixarem em um padrão social sofrido e castrador pra elas. Será que se adaptarão? 

Para mim, a personagem de John Singer é extremamente emblemática pois nos leva a refletir sobre a incapacidade que temos em nos comunicar, em sermos compreendidos, em nos encaixar em uma suposta "ordem" que muitas vezes nos isola. A solidão de cada um de nós está guardada no coração - no íntimo que só nós conseguimos chegar e mais ninguém. O desafio de todo dia é saber como lidar com a incompreensão e falta de empatia do outro. O desafio é entender que mesmo juntos, estamos sós, pois cada um é único em seu pensar. 

"A solidão que lhe batia nessas horas era tão aguda que ele ficava aterrorizado." (p.168)