domingo, 27 de fevereiro de 2022

"Uma lição proveitosa", conto de José Nascimento Moraes (autor maranhense)

 UMA LIÇÃO PROVEITOSA

Conto de Nascimento Moraes*


Era D. Vitória Mendes Fragoso, esposa do Dr. Alceu de Sousa Fragoso, por demais ciumenta. Pertencia, segundo ela mesma declarava às pessoas de sua intimidade, ao número das mulheres que se casam por amor. Vivia para o seu marido e não podia admitir que ele a enganasse com outras mulheres. Havia dez anos que estava casada e felizmente ainda não lhe dera nenhum desgosto.  Sabia de sua lealdade e sinceridade para com ela. Se, porém, algum dia, lhe chegasse ao conhecimento de que o Dr. Alceu a enganava com outra mulher, transformar-se-ia num monstro, porque seria capaz de tudo, até de cometer crimes.

D. Manuela Fernandes, sua vizinha e amiga, casada com um português que não era nenhum santinho e que de vez em quando aparecia no cartaz do escândalo ao lado de uma mulata que ele retirara da casa dos pais, ouvindo de D. Vitória expressões tão veementes, disse-lhe, com a serenidade das almas resignadas à sua condição:

- Já eu não penso assim. Acho que a mulher casada deve colocar-se num plano superior, sempre que o marido se revelar mal conduzido. Sei de todas as patifarias de meu marido, mas até hoje nunca lhe disse palavra. É como se não acontecesse nada! A mania dele é andar com as mulatas! Pois que ande com suas mulatas! Desceria de minha dignidade se lhe desse a entender que sei das suas deslealdades. Respeitando-me dentro do nosso lar, é quanto me basta!

- Pois eu lhe digo com toda franqueza que não tolerarei de meu marido uma deslealdade! Sentir-me-ei humilhada no dia em que souber que ele prefere outra mulher a mim! Pense bem, D. Manuela, no caso! Porque o homem casado que procura outra mulher, humilha a sua mulher! É o mesmo que lhe dar carta de mulher inferior, sem qualidades que o seduzam, que o prendam a seu lado! Pense bem, D. Manuela! A mulher casada que é vítima de tal deslealdade, deve sentir-se mal perante as outras mulheres e até perante os homens! Veja bem! É um traste inútil!

- À primeira vista parece que a senhora tem razão, mas examine calmamente o caso. Por que não se dizer que o homem é que não tem atributos para conhecer e estimar as qualidades da mulher que possui? Quantos homens há por aí grosseiros, estúpidos, mal educados, sem sentimentos refinados e que maltratam, dão má vida às esposas porque não estão à altura de avaliar o seu merecimento, porque não podem apreciar a delicadeza de seus gestos? Temos na sociedade muitos exemplos que confirmam o meu modo de ver. A Severinha, que a senhora bem conhece, é abandonada do marido. Não é uma mulher bonita. Eu, pelo menos, não lhe acho graça. É hoje, porém, uma mulher feliz. Encontrou, um ano depois de desprezada, um amante que é louco por ela, o Dr. Pinto Madeira. Comprou-lhe aquele prédio em que ela mora por 50 contos, mobiliou-o ricamente, e trata-a com todo esmero e faz-lhe todas as vontades! E o marido amigou-se com uma rapariga de má vida, que o trata de resto e com quem ele gasta uma fortuna! São tantos os exemplos!

Mas D. Vitória não se convenceu nunca das razões de D. Manuela. Aliás, na sua família havia um caso que lhe podia dar margem a profundas reflexões. Era o de seu irmão Francisco José Mendes, que depois de dar escândalos com diversas mulheres da vida pública, vivendo abertamente com elas, voltara a ser bom marido, arrependido de seus erros e dos desgostos que dera à sua santa mulher.

D. Manuela sabia desse fato, e de uma feita argumentou com ele, dizendo-lhe:

- Se D. Alfredinha, sua cunhada, não fosse um espírito superior, teria rolado pela sarjeta. Soube, porém, colocar-se numa atitude digna, de modo que, depois de tantos anos, saiu vitoriosa!

D.Vitória era, enfim, uma mulher que vivia a imaginar coisas sombrias. Preocupava-se com o que não havia acontecido. De si para si estava convencida de que o marido era o homem mais bonito de S. Luís, e por quem todas as mulheres viviam apaixonadas. Impressionava-se com a elegância, com as maneiras, com a simpatia do marido, e não podia admitir que as outras mulheres fossem indiferentes ao seu Adônis!

O Dr. Alceu compreendia a tortura de sua mulher e procurava arrancar-lhe do espírito essa impressão, que já era motivo de pequenas desavenças no lar. Se, porventura, chegava à casa um quarto depois do almoço ou do jantar, D. Vitória explodia em lamentações. Se saía à noite, por motivo de sua profissão, D.Vitória ficava em pranto! À medida que os anos se passavam e que o Dr. Alceu envelhecia com ela, o ciúme aumentava. Para ela, o marido era sempre um homem capaz de apaixonar as mulheres. Parece que não via que o marido, com os cabelos grisalhos, não era mais o mesmo de ontem.

- Infelizmente não temos filhos, dizia-lhe o Dr. Alceu. Se os tivéssemos, não terias ficado assim. Nem viverias a lembrar-te de mim, a todo momento! Mas não te esqueças de que em nossa idade esses ciúmes já nos tornam ridículos!

Mas D. Vitória não se conformava...

- A velhice não é mais uma carta de seguro, dizia ao marido. Vejo velhas que se trajam como meninas e sei de velhos que namoram mais do que os moços! Os tempos estão mudados. Há poucos dias lá no gabinete do nosso dentista uma moça dizia a uma amiga: "Hoje os casados dão mais sorte do que os solteiros, e os velhos mais do que os moços. Os casados e os velhos são mais afeiçoados às mulheres e tudo fazem em seu benefício. Os solteiros são os pestes! Ninguém pode confiar neles!"

E o Dr. Alceu ria a mais não poder!

E D. Vitória ficava ainda mais irritada com o seu riso!

É possível que por causa desse estado permanente de irritação, alguém se lembrasse de escrever a D. Vitória uma carta, dizendo que seu castíssimo marido frequentava a casa de uma mulher pública à rua das Barrocas. O anônimo pormenorizava o caso. A mulher chamava-se Andrelina. Era um mulataço! O Dr. Alceu dava-lhe tudo! Na despensa da mulata não faltava nada! Os jarros da sala, de porcelana, eram um primor. O Dr. Alceu mandara-os buscar na Bélgica!

D. Vitória ficou a ponto de perder a cabeça. Até que chegara a seu conhecimento uma deslealdade do marido. Mandou chamar D. Manuela e contou-lhe tudo. E ao mesmo tempo que explodia de cólera, estava satisfeita:

- Eu não dizia à senhora? Tinha ou não tinha razão de ser ciumenta? Eu não sabia de nada, mas uma voz dentro de mim me dizia: todo advogado é fingido! Assim como eles enganam a justiça e provam que os criminosos são homens de bem, assim enganam em casa as esposas!

- Seja prudente, disse-lhe D.Manuela. Aqui no Maranhão se fala de tudo e contra todos. Eu também sei de muita coisa de meu marido, mas fico certa que nem sempre o que dizem dele é verdadeiro! Seja prudente. Procure tirar a limpo. Pode ser intriga de um inimigo ou graçola de algum amigo.

D.Vitória aceitou o alvitre da amiga e resolveu nada falar ao marido para não o espantar.  Ia pegá-lo com a boca na botija!

E no dia seguinte, depois que o marido saiu para o escritório, D. Vitória preparou-se e saiu. Estava contristada e era grande o seu sofrimento. O seu desespero era um mar revolto. Ela morava num sobrado à rua Afonso Pena, e por isso dentro de poucos minutos estava à porta da mulata Andrelina, que vindo do interior da casa, encontrou-se com ela no corredor.

- Quero falar-lhe.

- É já, minha senhora.

A mulata voltou sobre os passos e momentos depois lhe abria a porta da sala.

- Pode entrar.

Andrelina era uma mulata estampada. Alta, mais gorda do que magra, simpática, olhos grandes, cabelos crespos, rosto oval, lábios grossos.

Não sabia com quem tratava, mas inteligente, compreendeu que se tratava de uma senhora.

D. Vitória era também uma mulher bonita, alta, elegante. Os anos não lhe haviam estragado a pele, nem lhe haviam apagado o brilho do olhar. Estava pálida de cólera. Trêmula. Entrou e, cansada, ofegante, sentou-se. Relanceou o olhar pela sala e não viu os jarros bonitos comprados na Bélgica.

- A senhora está sentindo alguma coisa?

- Não.

- Quer um copo d'água?

- Obrigada.

Andrelina, de pé, olhava-a admirada. E depois:

- Estou às suas ordens.

- Diga-me uma coisa...

- Se eu souber...

- Meu marido frequenta a sua casa? Seja franca comigo.

- A usar de franqueza, minha senhora, não sei.

- Como não sabe?!

- Se eu não sei quem é o marido da senhora!

- É o Dr. Alceu, um advogado muito conhecido.

- Advogado? Não sei o que é...

D.Vitória passou a dar os traços do marido...

- Conheço muitos homens assim...

- Mas não vem à sua casa um homem que se chama Dr. Alceu de Sousa Fragoso?

- Minha senhora, não sei, porque da maioria dos homens que frequentam a minha casa, eu são sei o nome...

- Não sabe?!

- Não senhora. Não me serve de nada saber o nome deles... Não os procuro. Não vou à casa deles, não falo com eles na rua... lá um ou outro me diz como se chama... e eu, às vezes me esqueço. São tantos nomes! E muito embrulhados!...

- E como recebe um homem em sua casa sem saber quem é?

Andrelina riu e passando as mãos pelos cabelos crespos:

- O que me interessa é saber se eles tem dinheiro. E pelos modos eu vejo logo. Qual é a rapariga que não conhece a cara dos prontos?

E Andrelina soltou uma risada argentina.

E depois:

- Disseram à senhora que seu marido frequenta a minha casa?

- Disseram.

- É possível... só eu perguntando. Como é o nome dele?

- Dr. Alceu.

- Dr. Alceu... Se eu não me esquecer pode ser que eu venha a saber... Se a senhora voltar outro dia aqui... talvez lhe possa informar...

E D. Vitória encolerizada e decepcionada:

- Informará mesmo? E se for apaixonada por ele?

- Ah, minha senhora, rapariga não tem paixão. Deus me livre de me apaixonar por um homem! E quando desconfio que algum está com jeitinho de querer ficar, desengano logo. Eu vou perder os meus interesses por causa de um homem? E logo quem? Homem casado! Olhe: quem se apaixona por homem casado é mulher casada!

D. Vitória deixou a casa de Andrelina como ninguém pode descrever! Uma hora depois estava em casa. Atirou-se numa cadeira de braço, como se tivesse acabado de apanhar uma surra de corda. Doía-lhe o corpo. A cabeça girava. Ouvia ainda as palavras da mulata! Não conhecia o seu marido! Nem sabia o seu nome! Do tipo do seu marido conhecia tantos homens! Como aquela mulher falava! Que descaramento! Os homens para ela não valiam nada! O que valia era o dinheiro. E como escarnecia da paixão dos homens! Olho da rua com os apaixonados! Os seus interesses estavam em primeiro lugar!...

E foi por isto que D.Vitória Mendes Fragoso se tornou, inesperadamente, um belo exemplar de mulher casada. Nunca mais perturbou a serenidade de seu lar com os seus ciúmes infernais.

FIM

* Referência: MORAES, Nascimento. Contos de Valério Santiago. 1a ed. São Luís, MA: SIOGE, 1972.


UM ADENDO: celebrando 64 anos da morte de Nascimento Moraes

Por Natércia Moraes Garrido**

I

O livro Contos de Valério Santiago foi editado e publicado originalmente em 1972 de maneira póstuma, já que Nascimento Moraes havia falecido em 1958. Foi um projeto organizado primordialmente por um de seus 7 filhos, o também escritor e pesquisador José Nascimento Morais Filho, que sempre teve a preocupação de reunir a obra do pai, espalhada até hoje em muitos jornais ludovicenses e aguardando por mais olhos pacientes e perscrutadores. Nesta primeira edição, há muito já esgotada e pertencente à biblioteca particular da família Nascimento Moraes bem como à Biblioteca Pública Estadual Benedito Leite (São Luís-MA), contamos com uma reunião de apreciações críticas e memorialistas sobre a vida e obra do autor, tais como este trecho escrito pelo grande Humberto de Campos em suas Memórias Inacabadas (1935), em que relembra as propostas literárias de dois periódicos editados pelos jovens intelectuais que pertenceram à geração chamada de Os Novos Atenienses, surgida no Maranhão em 1899:

Intitulava-se um "Os Novos" e era órgão da "Oficina dos Novos", associação constituída pela geração moça, orientada por Antônio Lobo e Fran Pacheco. "Renascença", denominava-se o outro, e reunia uma dissidência combativa e heróica, sob a chefia de Nascimento Moraes. O primeiro era sereno, ponderado, mergulhado em sonho e meditação. O outro periódico era mais variado e mais vivo. Nascimento Moraes, professor de português, criticava a língua dos Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do grupo.

Em outro momento de apreciação crítica, temos a exaltação da escrita ferrenha de Moraes pelo ilustre autor Domingos Vieira Filho em sua Breve História das Ruas e Praças de São Luís (1971):

Na cátedra ou no jornalismo era o combativo de sempre, esgrimindo, em prosa amena, a argumentação cerrada e fulminante que surpreendia o adversário. Octogenário quase, ainda era o mesmo escritor da mocidade, fluente, impressivo, claro, como as coisas boas e simples da vida.

Impossível não relembrar aqui as palavras de Josué Montello, outro ilustre escritor maranhense, na crônica dedicada a seu mestre do Liceu por ocasião de seu falecimento em 1958:

Minhas dívidas de escritor para com a pessoa e a obra literária de Nascimento Moraes não são pequenas. Tive-o entre os meus mestres do Liceu Maranhense. Tive-o entre os guias de algumas de minhas leituras essenciais. E contei-o sempre entre meus amigos. Pude sentir, assim, numa convivência demorada, a grandeza de sua inteligência e de sua cultura. E posso avaliar o que ele teria feito, se houvesse deslocado dos horizontes da província o cenário de suas ilusões. Haveria de perder algumas, como todos nós. Mas pelo menos o benefício de uma irradiação maior de seu nome, ele teria tido. Porque essa irradiação Nascimento Moraes a merecia, pelas virtudes de seu talento e de seu saber.

Valério Santiago é apenas um dos vários pseudônimos que Nascimento Morais utilizava, haja vista que em muitos períodos de sua vida teve que driblar as perseguições políticas e imposições ideológicas dos muitos jornais para os quais escrevia, sendo também editor de alguns deles. O salário de Professor de Geografia no tradicional Liceu Maranhense não cobria as despesas de casa, fazendo com que Moraes dedicasse grande parte de seu tempo ao jornalismo. Suas crônicas e editoriais são tão famosos quanto seus contos, pois não poupam críticas à sociedade maranhense, às inúmeras situações políticas pelas quais passou o Maranhão e à condição dos negros, sendo ele próprio um sobrevivente de ataques racistas constantes. No entanto, Moraes venceu pelo valor de sua pena na província e foi respeitado por seu legado, sendo bastante reconhecido por seus contemporâneos, quer eles fossem amigos ou inimigos. 

Os Contos de Valério Santiago foram publicados entre os anos de 1940 e 1941, quando Moraes escrevia para a Revista Atenas (do qual também era editor), um suplemento literário do jornal O Imparcial, cujo fundador foi o jornalista João Pires Ferreira, seu amigo próximo. Consta também nesta edição uma belíssima introdução escrita por seu filho, o jornalista político Paulo Nascimento Moraes, o qual resgata o contexto de vida e de atuação do pai em um texto brilhante, ressaltando as dificuldades enfrentadas por um homem negro que teve como única arma sua inteligência e sua escrita:

Em todos [os contos] sente-se a sua preocupação constante em mostrar a decadência de uma época social que ele, menino, estudante, ao lado da mãe preta, defrontou-se para depois nela sentir o aparecimento de seus primeiros cabelos brancos. Em cada conto há uma mensagem, há uma lição de sociologia, há uma paisagem filosófica. Causticante até. São estes contos que, aqui, enfeixados neste livro, nós apresentamos uma oferta de ontem e de amanhã. Uma prestação de contas com o Passado que fica sempre, que se debruça sempre para alumiar os caminhos do Presente e do Futuro.

II

Breve clichê biográfico

1. José Nascimento Moraes nasceu e faleceu em São Luís (MA): 19/03/1882 - 21/02/1958;

2. Por natureza e formação foi poeta, prosador, professor, jornalista, crítico literário e polígrafo;

3. De seu casamento com d. Ana Augusta Mendes Moraes (em 1908) teve 4 filhos: Ápio Cláudio, Paulo, Nadir e João José. De seu relacionamento com d. Francisca Bogéa (o qual durou alguns anos da década de 1920) teve 3 filhos: José Nascimento Moraes Filho, Thalita e Raimundo;

4. Em 1914 é aprovado no concurso do Liceu Maranhense para a cátedra de Geografia e Corografia do Brasil; em anos anteriores ensinara Aritmética na Escola Normal e Português, Latim e Francês em sua própria escola, o Instituto Nascimento Moraes e em residências particulares. Ao longo de sua vida acumularia o cargo de professor em consonância ao de jornalista, lecionando, além das escolas já citadas, no colégio Ateneu Teixeira Mendes e na escola Rosa Castro;

5. Como jornalista escreveu durante toda sua vida. Foi editor, redator-chefe e colunista em vários jornais de São Luís, a exemplo de A Pacotilha, O Diário de São Luís, Correio da Tarde, O Globo, O Dia e O Imparcial. Nascimento Moraes foi um dos fundadores e colaboradores constantes da Associação de Imprensa do Maranhão;

6. Dentre seus vários pseudônimos estão, além de Valério Santiago: Junius Victor, Brás Cubas, João Ninguém, João sem Terra, Sussuarama, Zé Maranhense, Berredo, João Ventura e Braz Sereno;

7. Nascimento Moraes pertenceu ao grupo literário Oficina dos Novos (1899) para depois sair e fundar o seu Renascença Literária (1901); ele integra o grupo de intelectuais que buscava a renovação das letras maranhenses no início de século XX, época em que o Maranhão enfrentava uma grande decadência econômica e cultural. Foi um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras (1908) porém só obteve uma cadeira lá em 1934 (ocupou a cadeira de n.11), sendo recebido em 1938 por seu amigo Armando Vieira da Silva. Também foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (1925), donde é patrono da cadeira de n.53.

Bibliografia

1. Puxos e Repuxos (1910, polêmicas literárias);

2. Vencidos e Degenerados (1915, romance);

3. Neurose do Medo (1923, ensaio de psicologia política);

4. Contos de Valério Santiago (1972, contos)

**Natércia Moraes Garrido é professora, escritora e crítica literária; é Doutoranda em Literatura e Crítica Literária na PUC-SP; é pesquisadora da obra do poeta Nascimento Morais Filho há 12 anos; é bisneta de Nascimento Moraes e neta de Nascimento Morais Filho; divide com sua mãe, tios, tias e primas a preservação do espólio literário da família Nascimento Moraes. 





domingo, 20 de fevereiro de 2022

"As moscas", texto teatral de Jean-Paul Sartre

Lisboa: Editorial Presença, 1965. 179 pág. Comprado em sebo na Estante Virtual

O doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que os homens são livres. São livres, Egisto. Tu o sabes; eles é que não. (fala de Júpiter, p. 124)

Essa é apenas uma das várias obras de Sartre que venho lendo por conta do doutorado; elas me ajudam a compreender melhor os conceitos de liberdade, engajamento social, existência e consciência crítica, tão recorrentes no pensamento existencialista do filósofo francês. Apesar de ter refletido sobre essas e outras questões em seu tratado ontológico O Ser e o Nada (1943), foi na arte literária, em especial no teatro e no romance, que Sartre optou por demonstrar como o Existencialismo funcionava na prática. Ele sabia que a literatura exercia um certo poder nas pessoas, até por experiência própria, já que lia muito. E sabia que o teatro, pelo impacto das emoções evocadas nos espectadores, traduzia de forma mais latente, dolorosa e imediata aquilo que Sartre pensava sobre o mundo e sobre como o homem agia e existia nesse mundo.

Percorrer, viver e existir neste tal mundo não é fácil. O texto de As moscas (1943) é publicado e encenado ainda em plena 2a Guerra Mundial com uma França dividida entre movimentos de resistência e um governo de fachada aliado ao nazismo alemão (o regime de Vichy).  Os franceses que optavam por se calar e ser conivente com os nazistas, caso de grande parte da população, tinha que conviver com a culpa. Não agir também é agir, como o próprio Sartre diz. E todos somos responsáveis pelas escolhas que fazemos. As moscas funciona muito bem como uma alegoria desse período, portanto tem como pano de fundo a crítica à passividade daqueles que aceitaram tão prontamente a ideologia e opressão nazistas. Há ainda, explicitamente, o ataque à religião e ao que ela se propõe cumprir neste governo altamente moralista de Vichy, uma espécie de culto ao remorso humano, condenando o homem a partir de seu passado sem nem ao menos dar-lhe a opção de escolha e mudar seu futuro:

Sartre combaterá pela raiz a "religião do remorso" de Vichy e o cultivo da ideia de uma "fatalidade" histórico-moral, ao mostrar que a liberdade é a verdadeira "condenação" absoluta que pesa sobre os homens e os povos.[...] já que assinala a soberania do homem sobre seus atos, e do seu presente [...] sobre o seu passado, ao contrário do que sugere a moral do arrependimento compulsivo, que bloqueia o futuro em nome da eterna reiteração da lembrança culposa. (LIUDVIK, 2007, p.10-11)*

O enredo de As Moscas retoma o mito do filho que volta para vingar o pai, resultando num duplo assassinato; um deles o matricídio. Após um longo exílio forçado em Corinto, Orestes retorna a Argos para saber como vivem as pessoas daquela cidade que anos atrás aceitaram tranquilamente a usurpação do trono de seu pai Agamemnon, assassinado pela esposa Clitemnestra e seu amante Egisto. Quando chega em Argos, anonimamente, Orestes ainda não tem clareza sobre o que pretende fazer a respeito de seu passado, não existe um plano de vingança arquitetado previamente. Mas ao encontrar-se com a irmã Electra e ouvir os sofrimentos e humilhações a que foi imposta nos últimos 15 anos pela mãe e pelo padrasto, é que o príncipe começa a refletir sobre a realidade da cidade e de seu povo: ambos estão relegados a um enxame de moscas que, metaforicamente, se alimentam de suas fraquezas e culpas, já que foram coniventes com os atos perpetrados pelo rei assassino e sua rainha cúmplice e desleal. É um povo que se afunda em um remorso sem fim, e não há cerimônia religiosa que dê conta de tanta expiação. E onde está Jupiter, deus dos deuses e dos homens, que não demonstra em um único momento sua compaixão? 

Paredes manchadas de sangue, moscas aos milhões, um cheiro a matadouro, um calor de rebentar, as ruas desertas, um deus com cara de assassino, essas larvas aterradas que batem nos peitos no recôndito das suas casas - e estes gritos insuportáveis: é então isto que agrada a Júpiter? (fala de Orestes, p.26)

Quando Orestes percebe a indiferença do Deus maior, notando que Júpiter se diverte às custas do sofrimento humano, ele toma consciência de que é livre e dono de seu destino. É só a partir daí que ele resolve cumprir seu ato final, inclusive apoiado por Electra, que de várias formas o impele a executar os assassinatos. Orestes está ali para isso, para cumprir seu destino: matar Egisto e também a mãe. Conseguirá conviver com a culpa de tamanho desígnio? Sim, pois antes de empreender o ato ele já compreendia as responsabilidades que o aguardavam no futuro. O mesmo não ocorre com Electra, cúmplice de seu irmão: arrependida amargamente, seu destino e sua consciência seguirão rumos mais penosos.

Não vamos nos deter no julgamento do ato em si de Orestes: um ato extremo, dois assassinatos - sendo um, o matricídio. Ele penará por isso também, haja vista que é um ato moralmente condenável, apesar do desejo de justificativa parecer correto em sua mente. Creio que o que Sartre desejava chamar a atenção, pela própria época em que o texto foi escrito, era para o engajamento, para a luta, para que o povo francês não se deixasse consumir em culpa sem ação. Mas óbvio, nada disto era tão fácil. Coragem também é pré-requisito para se agir, e nem todos são corajosos. Nem todos estão dispostos a morrer por uma causa, embora acreditar em uma seja importante para se abastecer da vontade de viver.

Estamos condenados a ser livres e isso implica em fazer escolhas constantemente. Ideia nada agradável para muitos mas ainda assim, desejada. Queremos o bônus mas não aguentamos o ônus de nossas decisões, preferindo culpar outros pelo caminho que nós mesmos escolhemos. Proponho um acordo com minha consciência e vejo com qual situação eu consigo lidar melhor; posso não agir, me render à passividade e às mentiras que conto a mim mesma ou... posso agir. Mas devo estar preparada para o que vem a seguir, nesta vida estranha que é toda movimento. 

A sua força é feita da tua fraqueza. Já reparaste como a mim nada me dizem? [...] E a angústia que me devora, pensas que deixará alguma vez de me roer? Mas isso que me importa: sou livre. Para além da angústia e das recordações. Livre. (fala de Orestes, p.151)
 

*LIUDVIK, Caio. Sartre e o pensamento mítico: revelação arquetípica da liberdade em As Moscas. São Paulo: Edições Loyola, 2007.