quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Tabocas & versos: 5 poemas em resistência à ameaça de descaracterização do Morro do Alecrim.

Foto: David Sousa

Olá leitores do A Beletrista! Hoje cedemos nosso espaço aos queridos poetas caxienses Carvalho Jr., Edmilson Sanches, Isaac Sousa, Jorge Bastiani e Quincas Vilaneto. Os cinco bardos expressam sua resistência em forma de poesia contra a descaracterização do Morro do Alecrim, local histórico na cidade de Caxias (MA) onde aconteceram muitos conflitos da Balaiada. A ideia é bem simples: se não preservamos nosso passado, nossas ruínas, a fim de conhecê-las e transmiti-las à atual e futura geração, como nos reconheceremos ? Nossa identidade reside nos fatos e nas memórias. É assim que nos sentimos pertencedores da história do local onde nascemos. Sou caxiense de coração há 5 anos, por isso não consigo mais enxergar a cidade com olhos estrangeiros.... 

BALAIOS DE SOLUÇOS
///Carvalho Junior///

flecha de mágoas-vivas, corpo de tabocas órfãs,
sou carvão desprezado no alto da ladeira
(o)fendida pela lâmina de silêncios suicidas.

o sonho resiste ao fogo, ao cuspe tóxico dos
homens-cinza e à pedra não lapidada dos
autodidatas da futilidade.

tudo morre diante dos nossos olhos:
o morro, a história, a lucidez...
as borboletas sobreviventes marcham sobre os
balaios de soluços que explodem no jardim.

 A TERCEIRA “GUERRA” DO ALECRIM
///Edmilson Sanches///

“Ímpios sem crença, e precisando tê-la,
Assentastes um ídolo doirado
Em pedestal de movediça areia;
Uma estátua incensastes  [...]
Da política, sórdida manceba “

(Gonçalves Dias, “À Desordem de Caxias”, IV, 
in Poesia Completa e Prosa Escolhida, p. 551,
Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959)


E eis que lá no alto do Morro trava-se nova batalha
-- não é mais Alecrim, Duque, nem é contra Fidié:
é luta por causa histórica, onde a verdade assoalha
para o Morro não deixar de ser a Memória que é.

Esse Morro onde habita a História sem fim
e também onde o poeta sua musa canta
pode não mais ser nosso Morro do Alecrim
para ser  -- e muito mais --  “o morro da santa”.

Querem (im)por uma estátua no alto do Morro do Alecrim,
onde a escultura é desnecessária, quiçá conflituosa.
Há opções de valia   -- entre elas o Morro do Barata, sim,
onde, com Fé, renderemos graças à Maria Virtuosa.

Filhos da terra que dizem respeitar a História,
detentores transitivos do volátil Poder,
abusam da condição, desrespeitam a Memória,
louvam a si mesmos por trás da Santa enaltecer.

Estátua, substantivo sem vida nem rima.
Colocá-la bem no Alecrim é turbação.
À essa obra no alto do Morro, lá em cima,
a Santa pede e quer contrição, oração.

Pois é no interior de cada um que se constrói a devoção
e se a confirma na Fé, no Trabalho, no Amor, na luta contra o Mal,
com decência suprindo o povo carente não só de fé, mas de pão
acompanhado de boas doses de ética, fraternidade, moral.

O próprio Deus escolheu o íntimo do ser humano como templo
quando poderia, fácil, por outros meios fazer-se representar.
E certos humanos, incrédulos, desapegados desse exemplo,
o que fazem para a Deus  -- na verdade, a si mesmos, ímpios --  louvar?

Em sítio histórico de Caxias quer-se erguer estátua religiosa;
fazer estátua não só porque os feitores tenham fé, convicção ou crença:
quer-se fazer estátua porque estão, breves, no Poder – coisa perigosa –,
senão teriam construído com humildade, sem alarde ou desavença.

Se têm contas a prestar com a Santa,
se co’ ela têm promessas a pagar,
por que, humildes, como quem ora e canta,
não fazem a estátua em outro lugar?

Digam: Por que foram mexer logo com a Virgem Santa?
Por que assumiu a obra e depois sumiu o Público Poder?
Porque quem tem fé sabe que à Fé incomoda e espanta
o fazer questão de anunciar ao mundo o seu fazer.

Receberam uma dádiva  --  dinheiro, poder, vitória, eleição --
e, cumpridores, querem agradecer com uma o que a outra mão pediu?
Então, munam-se, assim, de reserva, recato, humildade, contrição,
e não se preocupem se todo mundo no mundo todo vê, ou viu.

Pague-se sua promessa sem excessos, ou soberbia, com discrição,
--- pois santo que é santo não precisa de alto-falante para sê-lo.
A Santa, sobretudo porque virginal, materna, estenderá a mão
e grata ficará pela prudência, contenção, amor, fé e zelo.

Basta de revolverem-se as pedras do Morro e sua memória;
cada uma delas é um patrimônio que é nosso, que é seu.
Diz o Poeta: “Cada pedra que i* jaz encerra a história”,
história valente, corajosa, “dum bravo que morreu”.**

Nessas pedras há sangue, há dor, há ideal e há liberdade,
e essa luta, só o Morro do Alecrim deve ser o lugar dela.
Assim, porque soterrar mais ainda a História, quando, de verdade,
há outros lugares para a santa escultura e o que vier com ela?

O caxiense Teixeira Mendes, a partir do Rio de Janeiro,
iniciou uma luta, fez a lei e finalmente conseguiu
separar Igreja de estado  --  pois a Fé, valor verdadeiro,
não deve ser obrigação constitucional no Brasil.

Mas o que um caxiense faz para todo o País outros desfazem em casa.
De modo exposto ou escondido, verbo e verba em variados expedientes,
interesses pessoais são mantidos, decisões e descaso ganham asa
...e História e Patrimônio caxienses  -- sim, ruindo --  cada vez mais doentes.

Depois de portugueses e balaios,
que “mato” e “morro” não tornem a verbos
nesta terceira “guerra” do Alecrim;
que sejam o que são: só Natureza
e História, ambas com seu espaço e beleza,
cumprindo em Caxias seu elevado fim.
Sine ira et studio.
(*) O mesmo que .
(**) “Cada pedra que i jaz encerra a história” e “dum bravo que morreu” são respectivamente o terceiro e o quarto versos da segunda estrofe da primeira parte do poema “Morro do Alecrim”, de Gonçalves Dias (in Poesia Completa e Prosa Escolhida, p. 527, Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959).

[MORRO DE SAUDADES DO ALECRIM]
///Isaac Sousa///

Morro de saudades do alecrim.
Morro e teu perfume jaz em mim.
Como um velho feiticeiro
Que invoca pássaros de fumaça.

Morro sete vezes sem perdão
Nas encruzilhadas da canção,
Onde o velho feiticeiro vem
modelar morcegos enevoados.

Nas ruínas gemem ossos litium
Dos tabocais plantados no infinito.
E o poeta em seu cigarro escreve
Suítes de metal e de fantasmas.


EM GUARDA
///Jorge Bastiani///

Sei que nunca é chegada a hora de dizer
adeus.
Também não há hora para se despedir.
Nasci ouvindo histórias,
Até mesmo de assombros
Sobre sombras que
Pernoitamos essas paragens do Morro.
Agora ouço passos, de novo,
Acordando tudo – de novo! –
Para mais uma
Nova batalha.

SÃO RUÍNAS NOSSAS
///Quincas Vilaneto///

Não preciso consultar a bússola
nem tampouco o gandula da fé,
todo o meu chão pode ser visto
à medida que se rabisca nele
e a memória permanece de pé.
Não preciso de uma outra história
criando uma estética às avessas,
as coisas que realmente nos interessam,
devem ser mais do que borras de hóstias.
Não tenho nada contra a religiosidade
nem me interessa o conteúdo da promessa,
só não creio que seja modermo
juntar-se pios com os céticos
e destruir todo um passado impresso.


domingo, 10 de setembro de 2017

Vá, coloque um vigia - Harper Lee

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(Ed. José Olympio, 2015)

Hoje vou ler o capítulo 21, versículo 6, do Livro de Isaías: "Porque assim me disse o Senhor: vá, coloque um vigia, que anuncie o que vir." (p.90)

Olá pessoal, tudo bom? Um feriadão e mais uma dica de leitura, né? Resgato hoje a Literatura Norte - Americana porque essa indicação é bem merecida: Vá, coloque um vigia, segundo romance da autora Harper Lee. Ela nunca escreveu outra obra além do famoso O sol é para todos (1961, ganhador do Prêmio Pulitzer) e de repente, antes de morrer em 2016, seus parentes encontraram e publicaram o manuscrito deste livro que vamos resenhar agora.

Vá, coloque um vigia é ambientado na pequena cidade de Maycomb, no estado sulista do Alabama, durante a década de 1950. Maycomb é a cidade natal da personagem Jean Louise Finch, que retorna de Nova York, onde mora, para passar quinze dias de férias e rever sua família  - o pai Atticus, a tia Alexandra e o tio Jack, além do namorado Hank. Imbuída de sentimentos nostálgicos da infância e adolescência, ao mesmo tempo em que é pressionada para voltar definitivamente à cidade e se casar, Jean Louise percebe ao seu redor que algo está errado - existe uma grande tensão social "gritando" na atmosfera da conservadora Maycomb.

A tensão é reflexo das crescentes lutas por igualdade de direitos civis para os negros bem como para por fim à segregação racial, há tantas décadas respaldada pelas leis sulistas. Contextualizando melhor: a sociedade civil branca sente-se ameaçada pelos avanços conquistados pela Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor e pelo resultado positivo do caso Brown v. Board of Education , que garantiu, em 1954, que pessoas negras frequentassem as mesmas escolas públicas junto com pessoas brancas. 

O que Jean Louise presencia é a visão de seu pai, o advogado Atticus, e de seu amigo de infância / namorado Hank - que ela acreditava que fossem justos e bondosos - participando de reuniões junto com os homens "respeitáveis" da cidade. Seu mundo "cor de rosa" de menina sulista cai por terra ao escutar um discurso de defesa da raça branca disfarçado de proteção das famílias e bens, revelado num recinto que remonta às velhas reuniões da temida Ku Klux Klan.

O conflito que se segue em sua mente é de que ela nunca de fato conheceu o mundo em que viveu a maior parte de seus 26 anos, até aquele momento de tensão social. Jean Louise terá que amadurecer como mulher e como cidadã. Ela defenderá seu ponto de vista progressista, mesmo que tenha que "cortar na própria carne"ou sucumbirá às antigas tradições de sua gente?

Após ler o romance, uma boa pedida é assistir o filme Histórias Cruzadas (2011), cuja história se assemelha muito ao enredo de Vá, coloque um vigia. Se quiserem, tem resenha do filme aqui no blog! É só pesquisar e clicar pra ler!

Mas você precisa se decidir, Jean Louise. Vai ver mudanças, vai ver Maycomb mudar completamente durante a nossa vida. (p.72)