quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO, de Ursula K.Le Guin

( São Paulo: Ed. Aleph, 2014) 

"O inesperado é o que torna a vida possível" 
(p.122)

Este é um clássico do gênero de ficção científica, mas para aqueles que acham que essa escrita só possui autores homens que vão desde H.G.Wells, passando por Isaac Azimov, J.R.R.Tolkien e Philip K. Dick (que também são autores que amo), é porque ainda não leram as narrativas da norte - americana Ursula K. Le Guin. A obra me chegou às mãos pela primeira vez quando eu tinha 15 anos, mas o que é que eu entendia, nessa época, em plena década de 1990, de feminismo, igualdade de gêneros, solidariedade humana, globalização? É...eu era uma adolescentezinha bem egoísta, com certeza. Hoje, ler novamente A Mão Esquerda da Escuridão me traz à tona todos os conceitos filosóficos e sociais que tanto tenho lido ao longo dos anos (sou uma mulher de minha época), e são justamente esses pensamentos que tornam a leitura da obra tão significativa pra mim, 20 anos depois.

Primeiramente os dados técnicos: Ursula ainda está viva e A Mão faz parte de um ciclo de 5 romances chamado de Ciclo de Hainish ou Ecumênio, e saber disso faz todo o sentido, pois você poderá começar a leitura por qualquer um deles, já que irá se deparar com a essência da narrativa em todos esses romances: um representante do Ekumen é enviado a um planeta para estabelecer e oferecer uma aliança de paz que propõe compartilhar os mais diversos saberes, promovendo o desenvolvimento das nações com tolerância às diferentes características de cada planeta:

"Há oitenta e três planetas habitáveis no espaço Ekumênico e, nesses, cerca de três mil nações ou grupos antrotípicos.[...] Ekumen é nossa palavra terráquea; na língua comum, é chamado de Família" (p.43; p.136)

A história de A Mão Esquerda da Escuridão é a seguinte: Genly Ai é o enviado do Ekumen ao planeta Gethen, um planeta extremamente distante que ele mesmo chama de Inverno, pois a temperatura raramente está acima de 0º graus Celsius. Mas o que mais chama a atença de Ai são os habitantes do planeta: andróginos, sem uma aparência de gênero definida. A pergunta imediata que ele se faz é: como lidam com o sexo? Como se reproduzem? Como se constituem em sociedade?  Ao mesmo tempo que tenta entender esse choque cultural primordial - Genly Ai está diante de uma sociedade plenamente igualitária, já que não faz distinção dos gêneros masculino e feminino - ele tem que mostrar-se confiável ao rei de Karhide a fim de cumprir sua missão. Karhide, assim como Orgoreyn, é um dos poucos países existentes em Gethen, já que o planeta possui apenas uma pequena faixa de terra habitável. O restante dele é só geleira, precipícios e mares congelados.


Alternando a narração da própria história com mitos e lendas de Gethen, o leitor tem a experiência de realmente estar neste planeta, e acompanha as angústias e superações físicas, psicológicas e culturais de Genly Ai, até porque para alcançar o sucesso de sua missão, que é trazer Gethen para a liga do Ekumen, ele precisa não só confiar em uma pessoa que não conhece - o enigmático burocrata Therem Harth Estraven - mas também conviver e aceitar as diferenças deste povo que Ai não consegue entender.

"Sozinho, não posso mudar seu planeta. Mas posso ser mudado por ele. Sozinho, tenho que escutar, além de falar. Sozinho, os relacionamentos que eu finalmente tiver, se tiver, não serão impessoais e nem somente políticos: serão individuais, pessoais, serão mais e menos que políticos. Não Nós e Eles; não Eu e Ele; mas Eu e Tu."(p.248)

Por isso é que A Mão Esquerda da Escuridão não é apenas um romance de ficção científica qualquer: exige do leitor alguns conhecimentos sobre religiões (em especial o taoísmo), Psicologia, Sociologia e a questão mais atual de todas: a sexualidade e a diversidade de gêneros. Uma mão cheia pra você que busca uma leitura mais aprofundada sobre esses assuntos. Tudo isso regado ao clima getheniano: com bastante gelo, neve, nevasca e um belo cobertor de peles para aquecer.

"É bom ter um objetivo nas jornadas que empreendemos; mas no fim das contas, o que importa é a jornada em si." (p.214)