sábado, 11 de novembro de 2017

As alegrias da maternidade - Buchi Emecheta


(Ed. Dublinense: Porto Alegre, 2017)

"Sim, tenho muitos filhos, mas com quê vou alimentá-los? Com minha vida. Tenho que trabalhar até o osso para tomar conta deles, tenho que dar-lhes meu tudo. E se eu tiver a sorte de morrer em paz, tenho que dar-lhes a minha alma." (p.257)

Olá leitores, tudo bom? Acho que já falei pelo Instagram (segue lá em @naterciagarr ) que os meses de outubro e novembro estou passeando pela Literatura Africana de língua inglesa, mais especificamente pela escrita de autoras nigerianas. E não me arrependi de viajar por essas paragens, não. Tudo bem que, de novo, trago uma obra enviada pela TAG, mas olha: como eles fizeram uma edição bonita deste romance, viu?

Falar sobre As alegrias da maternidade (1979) de Buchi Emecheta (1944-2017) é propor a discussão sobre um assunto bem complexo: o lugar e a função da mulher na sociedade. A personagem principal, Nnu Ego, pertence à cultura nigeriana igbo (grupo étnico africano), vem de Ibuza - uma cidade do interior, cuja economia é voltada para a agropecuária de subsistência (cultivo de inhame e criação de cabras) e é filha de Agbadi, um poderoso líder local, também considerado um dos últimos "caçadores de elefantes". Na organização familiar poligâmica, Nnu Ego nem é filha do pai com uma de suas esposas, mas sim com uma amante, Ona - por acaso a mulher que Agbadi nunca conseguiu comprar. Por isso mesmo era louco de paixão por ela.

Quando chega a hora de casar, Nnu Ego segue a tradição: casa-se aos 16 anos com Amatokwu na condição de ser a primeira esposa, algo de grande status naquela sociedade poligâmica. Porém não consegue engravidar, e aí reside sua desgraça. Ao voltar para a casa do pai, que a recebe em sua grande generosidade, Agbadi devolve o dote da filha e procura um segundo marido para ela. Este segundo marido escolhido, Nnaife, porém há muito já se mudou de Ibuza para Lagos, cidade grande litorânea que cresce vertiginosamente, porque também é onde se concentra a maior parte dos colonizadores britânicos.

Ao se mudar para a cidade grande, Nnu Ego logo percebe o choque cultural que existe não só entre o colonizador e o africano, mas entre o ambiente rural e o ambiente urbano. Odeia seu marido mas, como começa logo a engravidar, entende que é para isso que ela existe no mundo: para ser mãe, pois foi criada assim. Como o enredo se desenvolve entre as décadas de 1930 e 1950, percebemos que os nigerianos vivem em um mundo conflituoso: viver segundo suas crenças e tradições ou viver adotando a ideologia do colonizador, que dentre suas muitas formas se manifesta no controle social por meio da religião cristã e da língua inglesa.

E as alegrias de ser mãe e esposa? Nnu Ego percebe que seu marido Nnaife não consegue lhe dar o suficiente para o sustento dos filhos e da casa, e a vida em Lagos é cara e precária, por isso logo ela aprende a "arrumar dinheiro extra" vendendo o que pode: cigarros, fósforos, lenha - é um trabalho extenuante, porém necessário se ela quiser minimizar a vida miserável que leva. Pois é aí que está a parte emocionante da história: o sacrifício de uma mulher por seus filhos, com todos os ônus e bônus. Mas questiono se realmente houve bônus para a vida que Nnu Ego foi impelida a ter. 

E mais: aqui se insere uma discussão pertinente sobre ter filhos homens e filhas mulheres, e como se dá a educação deles na sociedade nigeriana na época retratada. Era glorioso para uma mulher ter filhos homens, porém as filhas eram consideradas um fardo. Sua permanência na família servia apenas pra executar serviços domésticos, a grande maioria mal sabia ler e escrever e era aguardado ansiosamente o momento em que elas trariam o dinheiro do dote  - deveriam se casar bem cedo, com onze, doze anos. E assim elas reproduziriam o mesmo ciclo a que foram ensinadas a viver. 

Existe uma personagem neste romance que quebra esse paradigma: Adako. A jovem se torna a segunda esposa de Nnaife, herdada por este porque seu marido, irmão mais velho de Nnaife, morreu. Tida pelos parentes como mulher ambiciosa só porque quer uma vida melhor para suas filhas e porque se recusa a se resignar com a vida miserável e negligente que encontra em Lagos, vida esta proporcionada por seu marido, ela resolve ir embora enquanto Nnaife está lutando na II Guerra Mundial. Adako segue em busca de um modelo diferente daquilo que foi ensinada - e a atitude que ela escolhe é trabalhar e colocar suas filhas na escola. Esta mãe acredita que o mundo está mudando, os valores culturais rígidos serão rediscutidos e quer que suas filhas façam parte desta mudança.

Diante de tantas complexidades sobre ser mãe e mulher, Emecheta consegue desfiar um retrato sobre a classe trabalhadora nigeriana e também sobre as relações eternamente conflituosas entre homens e mulheres numa sociedade de organização poligâmica, algo que nós aqui no Brasil não conhecemos. Pelo menos não legalmente falando. Utilizando uma linguagem irônica desde o título da obra, a autora consegue nos mostrar um panorama rico e que nos desafia a entender e aceitar aquilo que não vivenciamos porque sequer imaginamos. 

Mas será isso mesmo? Será que as dores e as agruras pelas quais passa Nnu Ego, mesmo tão distante em tempo e espaço de nós, não serão compartilhadas com alguma mãe leitora por aí neste universo de meu Deus? Mãe é a primeira palavra que aprendemos a chamar quando estamos em apuros. Mãe é a palavra que existe em qualquer língua deste planeta, e que facilmente é identificada nos estudos filológicos. Não sou mãe, mas sou filha de uma mãe que teve três filhas e que nunca achou que um filho homem a deixaria mais completa. Talvez por isso ela nos criou para sermos mais corajosas num mundo desenhado pela perfeição dos homens. Quanto a mim, sigo tentando aprender com todas as figuras femininas que me são dadas o privilégio de conhecer, seja na vida real ou na ficção.

"Vivemos num mundo de homens. Mesmo assim, esposa mais velha, quando estas meninas crescerem vão ser de grande ajuda para cuidar dos meninos. E seus dotes de esposa também poderão ser usados para pagar a escola deles." (p.178)