(Porto Alegre: Ed. Dublinense, 2017)
Casado três vezes no decurso da minha própria breve vida com três graças diferentes, ele agora me convidara, como se para demonstrar o ecletismo de seu gosto, para integrar essa galeria de mulheres bonitas - eu, a filha da viúva pobre [...] (p.20)
Olá de novo meus amores leitores! Mais uma resenha literária maravilhosa que hoje trago para vocês: um conto da não menos maravilhosa autora inglesa Angela Carter e sua atualização dos clássicos contos de fadas. Atualização sim, pois Carter (re) conta algumas destas clássicas histórias populares valorizando a figura da mulher, promovendo assim um pensamento mais empoderado e forte sobre a figura feminina na sociedade.
Essa obra chegou pra mim neste mês de março pois sou assinante da Tag Experiências Literárias; já contei aqui em outro post que tenho gostado muito da seleção de livros que chegam mensalmente. Quem fez a indicação de A câmara sangrenta e outras histórias para nós, assinantes da TAG, foi a não menos maravilhosa escritora Marina Colasanti. Como o mês de março é "considerado" o mês da mulher, a proposta de leitura / discussão da obra segue essa linha mesmo: refletir sobre a força feminina na sociedade e perceber como nós, mulheres, podemos ser e somos agentes transformadores do nosso próprio destino.
Publicado em 1979, A câmara sangrenta e outras histórias "explora o tema do feminismo ao contrastar elementos tradicionais da ficção fantástica -que habitualmente descreve personagens femininas como frágeis e desamparadas - com protagonistas fortes e impositivas." (Revista da TAG, p.13)
Não conhecem Angela Carter? Indico essa obra aqui embaixo, ó, para começarem a ver um pouco do trabalho de pesquisa e seleção de contos populares que ela realizou, e como suas reflexões sobre o universo feminino foram e são importantes para a literatura:
(São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011)
Carter é uma mulher de seu tempo: vivenciou as lutas e conquistas femininas a partir da década de 1960 e ela não se omitiu - deu voz bem alta a muitas personagens em suas narrativas, ao mesmo tempo em que se aprofundava no estudo, coleta e análise de contos populares ("contos de fadas") das mais diversas culturas. Segundo ela, o resgate dessas histórias nos revela que "o passado foi duro, cruel e especialmente hostil para as mulheres, por mais desesperados que tenham sido os estratagemas que usamos para fazer as coisas um pouco à nossa maneira." (2011, p.23).
Mas vamos à história de A câmara sangrenta? Aqui só falaremos deste conto, para que vocês fiquem com gostinho de quero mais e leiam os outros contos da obra de Carter. Ele é uma "repaginação" moderna do famoso conto de fadas Barba Azul, popularizado séculos antes por Charles Perrault. Carter traz a história narrada pela própria personagem, a mocinha virgem e pobre que aceita se casar com um homem rico e beeeem mais velho - ela é sua quarta esposa. Não há indícios de amor, mas de um grande desejo de posse, por parte do marido, e de curiosidade, por parte da jovem. Ela se atrai por esse mundo luxuoso e pela aparência viril e forte que aquele homem tem a lhe oferecer: por isso aceita casar-se.
Ele me beijou e colocou a mão imperativamente sobre o meu seio, por baixo da bainha de renda antiga [...] (p.31)
Ele a leva para seu castelo à beira do mar, na região francesa da Normandia, "isolado do continente pela maré durante metade do dia." (2017, p.25) Sim, era um castelo cujo acesso para o continente se dava apenas quando a maré baixava; quando estava alta, o castelo ficava mesmo isolado. Após uma breve lua de mel e apresentação do imenso lugar à sua esposa, o marido lhe dá todas as chaves de todas as portas do castelo, fazendo porém a ressalva sobre uma delas em específico: "prometa-me que vai usar todas as chaves no anel exceto essa última que lhe mostrei." (p.38) E em seguida ele lhe diz que precisa fazer uma viagem de negócios de última hora.
Consumida pela curiosidade, a jovem, é claro, decide não só explorar o castelo como também entrar na câmara proibida: lá, descobre que é uma câmara de tortura mantida pelo marido, responsável pelas mortes de suas ex-esposas. E agora? Como ela fará para se desvencilhar deste casamento fadado à tragédia?
No famoso conto de fadas, Barba Azul é um homem rico e poderoso que propõe casamento a uma jovem pobre. Com isso, ela vê uma oportunidade dupla: sair do lar e ter compensação financeira. Mesmo impactada pelo aspecto feio da barba e sinistro mesmo de seu pretendente, ela se casa. Ele também lhe diz que ela pode desfrutar de tudo o que existe no castelo, com exceção de um quarto secreto. Mesmo assim, ela cede à curiosidade e adentra o recinto proibido, dando de cara com as atrocidades cometidas pelo marido contra suas esposas anteriores, que permaneciam degoladas e penduradas, tal qual um açougue.
Não vou contar o final das duas histórias - a clássica e a "repaginada" por Angela Carter, porque vale muito a pena a leitura de ambas. Mas devo dizer que fiquei muito feliz em ler o final de A câmara sangrenta: demonstra que realmente nós, mulheres, devemos sim ser solidárias umas com as outras. Somente um senso forte de irmandade e cumplicidade entre mulheres nos salvará de um mundo em que ainda se aceita toda e qualquer forma de violência masculina. Temos esperança de que um dia homens e mulheres se respeitem de tal forma que não precisem mais se enxergar com tantas diferenças.
Lancei um último olhar desesperado da janela e, como num milagre, vi um cavalo e seu cavaleiro galopando a uma velocidade vertiginosa ao longo da passagem [...] (p.64)