sábado, 23 de maio de 2020

"Jude, o obscuro", romance de Thomas Hardy

(São Paulo: Companhia das Letras, 2019)

"Mas a natureza humana não pode evitar ser o que é" (p.335)

O autor inglês Thomas Hardy é considerado pela crítica literária um dos últimos autores da era vitoriana, época em que a literatura inglesa floresceu enormemente, dos textos românticos das irmãs Brontë aos textos realistas de Charles Dickens. A sociedade vitoriana também provou das críticas ácidas contidas nas maravilhosas peças teatrais de Oscar Wilde e por fim, do pessimismo e da crítica ao puritanismo e conservadorismo nos romances e contos de Hardy.

Em seus textos ele se mostra muito mais um naturalista, no sentido de que retrata as vidas, os vícios e as desilusões das classes trabalhadoras e como essas pessoas não conseguem ascender socialmente por meritocracia, por mais que desejem. Daí se origina o pessimismo diante das vicissitudes da vida, tão bem apontado pela crítica como característica inerente dos textos de Hardy. A denúncia recorrente nos romances dele é que não há como fugir de algo que o indivíduo já está predestinado por vários motivos: porque é pobre; porque vem de uma família de degenerados; porque a moral e os bons costumes cerceiam o poder de decisão, escolha e liberdade que o indivíduo possui.

Considerando tudo isto, quero dizer que quando selecionei esse romance para ler eu já estava preparada espiritualmente para o que iria encontrar pela frente em suas quase 400 páginas. Eu já conheço a escrita desse autor desde quando li sua obra mais famosa, "Tess of the D'Ubervilles" (1891), que inclusive recomendo. Então pensei que gostaria de conhecer a triste história (sim, eu já imaginava que era triste) de "Jude, o obscuro" (1895).

O romance acompanha toda a trajetória de Jude, desde menino pobre e órfão criado pela tia-avó. Influenciado pelo sonho de seu professor, Mr. Phillotson, Jude também queria ser Doutor em Teologia e estudar na universidade de Christminster. Ele acreditava firmemente que conseguiria alcançar esse objetivo com esforço e afinco. E como Jude se dedicou. Ele estudava sempre à noite, pois de dia trabalhava muito, primeiro entregando os pães que sua tia avó fazia, depois como aprendiz de entalhador e restaurador de edifícios, fachadas e lápides. 

Aos 19 anos Jude se apaixona pela esperta Arabella, que o induz a casar-se com ela insinuando uma suposta gravidez. Já casado, ele descobre que as coisas no casamento não parecem assim tão românticas, porém está disposto a manter sua palavra. Daí em diante são muitas as reviravoltas que a vida pregará em Jude, fazendo com que ele sucumba inclusive ao vício da bebida,  entendendo que a realidade para pessoas como ele é muita dura e que o sonho de estudar em uma universidade é uma grande ilusão que ele construiu para si mesmo. 

No entanto, um fato ainda maior acontecerá: Jude conhece a prima Sue Bridehead, uma mulher inteligente e questionadora de vários princípios sociais aos quais, como mulher, está imposta, como a indissolubilidade do matrimônio ( o divórcio era permitido mas moral e socialmente condenado) e os dogmas da igreja anglicana. Leitora de filósofos e de poetas nada ortodoxos, Sue exercerá o fascínio e a atração que levarão Jude a algumas felicidades e a muitas tragédias.

A narrativa é muito bem escrita, desnecessário dizer isso para um grande autor como Thomas Hardy: a sucessão dos capítulos e o desenrolar dos fatos surpreendem o leitor a todo momento, até o final. Lembro que o tempo todo eu me pegava refletindo: "meu Deus, coitado do Jude", ou então, "gente, o Jude não merece isso". Um outro ponto que gosto nos romances de Hardy é que as personagens femininas tem VOZ e expressam bastante suas angústias, seus medos e suas intenções, que muitas vezes são bem diferentes daquelas que se esperavam de uma mulher vitoriana. Arabella e Sue não são submissas e à sua maneira, se impõem perante uma sociedade marcada, como já disse, pelo puritanismo e patriarcalismo. 

Ao final da leitura a impressão que fica, porém, é que não se pode fugir de um pré julgamento e de uma pré determinação social imposta a esses personagens, no caso Jude, Arabella, Sue e Phillotson. Por mais que eles lutem contra sua própria natureza e contra essa imposição moral vitoriana, no fim das contas eles perdem, de uma certa forma, esse jogo trágico que aceitaram apostar e contestar. 





quarta-feira, 13 de maio de 2020

"Até o outro dia", conto de Luciana Frank


Aconteceu aos poucos. Ela não saberia responder se fora em questão de meses, semanas ou dias. Mas, estava apaixonada por ele, disso tinha certeza. Reconhecia sua figura ao longe. As roupas surradas pelo árduo trabalho no campo, o machado sobre o ombro, a expressão cansada, voltando na companhia de seu irmão. Ele sempre encostava por uns instantes. Bebia a água que ela lhe oferecia, limpando os lábios na manga da camisa. Nunca um olhar mais demorado. Nenhum sinal naqueles pequenos instantes diários. Apenas agradecia em silêncio. Com um leve aceno de cabeça ou um riso sem jeito. Aprendeu a colecionar as coisas que a encantavam nele: o modo tímido como recebia um elogio, a forma correta de pronunciar as palavras como se não pertencesse aquele lugar, seus cabelos e olhos escuros como carvão molhado, a expressão humilde, a maneira como lia poesias, os dedos a deslizarem sobre as cordas do antigo violão, a sombra da fogueira sobre suas feições. Sempre acrescentava. Nunca diminuía. Quando tudo isso foi se agregando até seus sonhos terem o formato de um rosto. A figura de uma pessoa. Tanto querer guardado a angustiava, a ponto de estarem próximos aos lábios. Encontrando covardemente o caminho de volta para o seu coração. Temia que não fosse compreendida ou mesmo rejeitada, em uma terra onde só se pensava em fazer fortuna. Onde a morte beirava a vida, não existia tempo para uma história de amor. O intervalo entre a claridade e a escuridão eram preenchidos ante a ausência ou a presença dele. Aprendeu a escrever com a professora solitária que perdera seu marido há muitos anos naquela mesma guerra pela incansável busca ao ouro. Somente a ela confessou que queria escrever cartas para um rapaz que havia roubado o seu coração. Mas, ele partira pouco tempo depois. Sem qualquer aviso. Ninguém sabia informar para onde teria ido. Seu irmão de nada sabia sobre sua vida, além do tempo que trabalharam juntos e as escassas informações sobre sua parentela. Essa constatação tardou a ser absorvida, acostumar seus olhos a não o procurar tanto ao fim do dia, encher o filtro de barro imaginando que viria para beber de sua água. Ao raiar do sol, seus dedos escreviam contínuas cartas que nunca chegariam a seu destino, seu coração procurando entender o porquê de sua partida repentina. Ele foi, mas existia nela. Em tantas vezes em que se imaginou colhendo os beijos de sua boca, de vestido branco, vendo-o por trás de um véu, trocando alianças com ele na pequena igreja, prendendo entre as mãos um arranjo de margaridas, esperando na porta de uma casa simples de barro, colocando seu jantar sobre a mesa, a observar seu rosto sob a luz de uma lamparina. A realidade que abria seus olhos pela manhã, a obrigava a enterrar seus sonhos. A perda não era apenas para a morte, como um dia chegou a pensar. Se perdia também para a vida. Nos seus caminhos tortuosos. Quando as estações se repetiam, quando os dias corriam e os anos passavam guardando sempre o mesmo rosto. Cansou de recolher todos o pôr do sol com a mesma tristeza e amargura. Calou-se por dentro e deixou suas mãos guiarem os seus pensamentos. Encontrou um local onde poderia guardá-los e não enterrá-los naquele solo infértil daquela terra de ilusões. Um cenário feito a luz de um candeeiro, uma velha mesa da época que seus pais ainda eram vivos, uma cadeira de madeira caprichosamente esculpida por seu irmão, um cômodo de paredes de barro batido. Papel, lápis e a escrita. Ali era onde sentava todas as noites e transformava as lágrimas em palavras, que guardavam toda a saudade do que não chegou a ser revelado ou mesmo existir. Até sentir que estava refeita, curada... Até o outro dia.

*Luciana Frank é uma jovem escritora maranhense, com uma escrita sensível e tocante. Esperamos que tenham apreciado este momento literário aqui no blog ;)

Natércia