(São Luís, MA: SIOGE, 1972; edição esgotada. O livro pertence ao acervo particular da família Nascimento Moraes, mas também pode ser encontrado em sebos pelo Brasil, bem como no acervo da Biblioteca Pública Estadual Benedito Leite em São Luís-MA)
A vida de um homem de bem
Eu conheci Manuel Sotero Coruja quando iniciei a minha vida de professor particular, nesta cidade de S. Luís. Entre os primeiros alunos que recebi em março de 1921 para o curso secundário, na minha residência, estava Manuel Sotero Coruja. Era um rapagão alto, forte, de fisionomia simpática, gestos largos, voz pastosa e dicção clara. Tipo moreno, cabelo e olhos castanhos. Havia no seu olhar uma expressão de ingenuidade e no seu sorriso o reflexo de uma alma boa e generosa.
O respeitável cavalheiro, coronel Antônio de Carvalho e Melo, alto funcionário federal, fizera a sua matrícula. Era padrinho de Manuel Coruja. Fora no sertão do Maranhão, de onde era filho, amigo de seu pai, um caráter a toda prova e uma infatigável solicitude: Antônio Brandão Coruja. Home pobre, mas de muita vergonha e dignidade. Sobretudo - valente! Fora seu amparo durante toda a vida, mas não escondia os grandes favores que lhe ficara a dever.
E o coronel Antônio de Carvalho e Melo, chegando sua cadeira para junto da minha, e consertando os óculos no nariz romboide de pimentão, consertando o barrigame adornado sobre a calça branca, e depois cofiando a barba branca e longa, em flocos, disse-me:
- O pai do seu futuro discípulo morreu no avarandado de nossa fazenda, defendendo a vida de meus pais, a minha vida e a de meus irmãos. O chefe político local mandou matar-nos, alta noite. Eram seis capangas bem armados e montados, dos mais terríveis que ele pode arranjar em Goiás. Meu pai não esperava o ataque. Nada havia que o justificasse. Uma questão se levantara entre ele e o chefe político, por motivo da propriedade de umas terras, e o juiz resolveu-a a favor de meu pai. Apenas isto, mas fique certo de que foi o quanto bastou. O chefão, atrabiliário e vingativo, resolveu acabar com meu pai e a família toda. Defendemo-nos como pudemos, a rifle e à faca. Caíram mortos três capangas e dois irmãos meus, meu pai e o velho Coruja, que de passagem para Carolina, pernoitara na nossa fazenda. Por tudo isto o senhor pode compreender o interesse que tenho por ele, que é o mais velho dos filhos do Coruja e que minha família tomou sob a sua responsabilidade, para o fim de lhe dar uma educação conveniente. Peço-lhe pois, que faça tudo que lhe for possível para o rapaz progredir. Não faço questão de preço. A sua educação é para mim uma dívida de honra.
O rapaz não ouviu essa conversa porque ficara noutra sala, folhear as páginas do último exemplar da "Revista da Semana". Manuel Coruja, inteligente, vontadoso, progrediu nos seus estudos. Ao fim do terceiro ano já sabia os rudimentos da língua vernácula, escrevia desembaraçadamente, exercitava-se com vantagem no conhecimento de outras disciplinas, das que são mais úteis à vida. O padrinho pensava em colocá-lo numa repartição federal por meio de um concurso.
Manuel Coruja, pelo seu espírito de cordialidade, pelos seus sentimentos altruísticos, pela correção de sua conduta, havia conquistado a estima de seus colegas e professores do quadro do meu colégio. O padrinho aparecia-me sempre ao fim de cada mês para me pagar a sua mensalidade. Nessa ocasião não se cansava de o elogiar.
Estava satisfeitíssimo com o seu procedimento. Admirava o seu grande amor aos livros e a sua sobriedade nos prazeres. Contava-me que, aos domingos, mandava-o passear e que, apesar disso, raramente se aproveitava dessa franquia. O coronel Carvalho e Melo tinha também a seu cargo duas sobrinhas, filhas de um irmão, o mais velho que morrera na defesa da fazenda.
As meninas gostavam de dançar, e o Coronel tinha dificuldade em conseguir que Manuel Coruja as acompanhasse aos bailes. Tudo isso enchia de ufania o velho Coronel, que não podia esconder o orgulho que sentia por tão elevada construção moral, que a seus olhos se patenteava, e para a qual não concorriam os seus esforços:
- Quem é bom já nasce feito - repetia-me, como se houvera descoberto uma novidade.
***
No domingo da festa de Santa Filomena, que se fazia na igreja de Nossa Senhora do Carmo, apareceu-me, pela manhã, Manuel Coruja. Estava pálido e sombrio. Alisava de vez em quando, com os dedos, os bastos cabelos castanhos. Percebi que alguma coisa de mais se estava passando na vida de Manuel Coruja.
Nove horas, sol festivo, e era grande o movimento na rua da Paz, no flanco direito do prédio que era do meu colégio e de minha residência. Convidei-o a ver da janela o movimento.
- Professor, eu vinha falar-lhe... Se me pudesse dispensar alguns minutos de atenção...
Estávamos no meu gabinete de trabalho. Não havia ninguém que nos pudesse interromper. Meu pai na sala de jantar picava fumo para o cachimbo. Minha mãe estava na cozinha.
- Podemos conversar, disse-lhe.
E Manuel Coruja principiou:
- Estou diante de um caso difícil...
- Difícil?
- Muito difícil! D. Gertrudes, a esposa de meu padrinho, de certo tempo para cá, entendeu de me namorar.
- Homessa! Que idade tem d. Gertrudes?
Manuel Coruja refletiu um momento e depois:
- Penso que ela ande pelos quarenta ou quarenta e cinco anos! Mas é ainda uma mulher bonita e forte. Parece ter menos anos!
- Não vive bem com o Coronel?
- Vive... parece-me que vive...
- E então como se explica...
- Não sei... Não sei explicar!
- E como você tem se conduzido?
- Como devo. Já lhe tenho pedido de mãos postas para o céu que me deixe em paz, que respeite o meu padrinho, que não me ponha a perder... Mas tudo inútil. D. Gertrudes insiste!
Fiquei sem saber o que dizer. Manuel Coruja não tirava os olhos de mim.
- Por que você não comunica a sua situação a seu padrinho?
- Não acreditará. É cego por ela. Não se cansa de dizer-me que D. Gertrudes tem todas as virtudes. Que é uma santa! Que desde os seus tempos de menina nunca amou outro homem que não fosse ele!
Embaraçado diante do problema, disse ao meu discípulo que não se precipitasse...que esperasse. Eu ia pensar no caso e ao dia seguinte lhe diria alguma coisa. Mas que poderia eu aconselhar? À noite, contei o caso a meu pai, que me ouviu com toda a atenção, e depois me disse:
- Este rapaz vai ser sacrificado.
- É impossível!
- Vai ser sacrificado, repetiu.
- Por que?
- Porque o caminho da salvação ele não pode segui-lo e você não pode apontá-lo.
- Por que?
- Porque o caminho da salvação é escabroso...
- Qual é então?
- É acertar o namoro com d.Gertrudes. Ficaria ele numa situação invejável. Ela o elevaria muito mais no conceito do Coronel!
- Horrível!
- Sem dúvida é horrível, e por isso ele está no olho da rua. Vai perder a proteção do padrinho. Dentro de poucos dias o protetor lhe votará ódio de morte e o desconceituará em todas as rodas. E d. Gertrudes ficará num plano superior. Haverá quem diga que ela é a mulher mais honesta do Maranhão!
***
E foi o que se deu. Uma semana depois, o Coronel procurou-me para me dizer que o afilhado era um bandido! E contou-me uma história asquerosa em que o Manuel Coruja aparecia como um cínico sedutor de sua mãe de criação! O coronel Carvalho e Melo pagou-me os dias de aula que me devia e retirou a sua responsabilidade. Deixei-o no topo da escada e, quando voltava, profundamente aturdido com o que se passava, senti passos na escada. Parei. Era o Manuel Coruja.
- Tudo está consumado! O senhor não me quis aconselhar, ou melhor, demorou em me dar um conselho e eu fui vítima da maior miséria deste mundo!
- Já sei de tudo!
- Quem lhe contou?
- O coronel Carvalho e Melo, que saiu daqui agora mesmo!
- Estou na rua. Deixei a mala na casa de um barbeiro e vim comunicar-lhe o que se passou.
- Está bem. Não se deixe vencer pelo acabrunhamento. Traga a sua mala para cá.
Manuel Coruja, depois que passaram os efeitos da maior decepção da sua vida, continuou os seus estudos. Mas já não era o mesmo rapaz. Amortecera-lhe a injustiça o brilho do olhar e apagara-lhe na fisionomia aquele ar de ingenuidade que era um dos traços mais fortes de sua simpatia. Para o distrair, dava-lhe a ler romances de Eça de Queiroz, do Zola e Aluísio então muito procurados, pelos que experimentavam os primeiros vôos literários. E assim, pouco a pouco, Manuel Coruja foi voltando a si. E uma tarde, depois do jantar, ele me disse:
- Professor, há dias que venho pensando em arranjar um emprego. Não me fica bem continuar aqui em sua casa, sem dar um vintém para as minhas despesas. Além disto, também tenho as minhas necessidades que só podem ser medidas pelo meu critério.
- Pois já que você pensa assim, vamos tratar de conseguir um emprego que lhe convenha.
- Se o senhor quiser, poderei passar todas as minhas aulas para a noite. Não vou prestar exames... Estudarei devagar, como for possível...
Estava resolvido o problema. Não foi difícil encontrar um pequeno emprego para Manuel Coruja, num escritório que se abrira por aqueles dias, de um rapaz que se propunha a emprestar dinheiro a juros. Precisava de um auxiliar que trabalhasse em dois expedientes. O serviço era simples. Manuel Coruja, dentro de pouco tempo, aprendeu o serviço com o próprio patrão que ficou muito satisfeito com a sua fácil assimilação. Dentro de poucos meses, Manuel Coruja correspondia plenamente às necessidades do escritório. E o capitalista, no melhor dos mundos, por que deixou de trabalhar no seu negócio. Apenas assinava os papeis, ou pela manhã ou à tarde. No segundo ano, Manuel Coruja já era melhor do que o patrão.
Relacionara-se com as casas comerciais, com os patrões, com os diretores de bancos e de companhias, com quase todos os funcionários públicos. Sabia do "momento" de cada um. "Momento", no caso, é a oportunidade de fazer a cobrança do título. Ele sabia que o sr. Fulano devia ser cobrado na casa da amante, às tantas horas; que o sr. Sicrano pagava sem pestanejar na hora da cerveja, no botequim tal, que o sr. Beltrano só pagava à noite, no jogo, no clube. Sabia os que deviam ser cobrados na residência da família e os que nunca eram encontrados no lar, porque ou sistematicamente respondiam que ele não estava ali, estando, ou porque raras vezes iam à casa. Manuel Coruja era um tratado de psicologia individual. Sabia todas as manhãs, de todos os pulos de inúmeras criaturas bem feitas na vida, e as causas de muitas infelicidades domésticas, da ruína de muitas casas comerciais, das aflições ocultas de muitos homens de responsabilidade. Pelos negócios do escritório que, dentro de pouco tempo, se tornaram abundantes, lastimara muitos casamentos em que a sociedade via farta messe de felicidade. De uma feita (nunca deixou de morar comigo), disse-me à hora do jantar:
- Fiz hoje dois negócios de que nunca mais me esquecerão em toda minha vida. Imagine o senhor que, às 8 horas, apareceu-me um cavalheiro, com uma fiança de primeira, para fazer um empréstimo de dez contos. Esse cavalheiro fez a transação às escondidas. Entrou habilmente no escritório, ocupou a secretária do patrão, que está sempre desocupada, de modo que os que estavam do lado de fora não o viram. Embolsou o empréstimo e soube sair sem despertar a mais leve curiosidade da freguesia que se acotovelava no guichê. Mais tarde, duas horas depois a senhora desse cavalheiro chegou sobraçando objetos embrulhados num papel fino. Vi logo que eram joias. Mandei-a entrar para o reservado das senhoras e vi as joias custosas. Queria empenhá-las por 15 contos. Valiam mais, muito mais. Mas o patrão ensinou-me que devia oferecer sempre um terço do valor real aproximado, salvo em casos excepcionais. Ofereci-lhe 5 contos e só fazia por se tratar de uma senhora, pois o patrão já até me dera ordens para acabar com os penhores, que quase geram aborrecimento e complicações. É o velho estribilho...Já sei de cor.
"A senhora, derramando lágrimas, pediu-me que fizesse a penhora ao menos por 7 contos. Fingi que recalculava e fechei o negócio. Compreendi que o noivado da filha era a causa do penhor. O noivo da menina era um rapaz rico. Ia entrar pela primeira vez na casa e não lhe ficava bem mostrar-lhe o espetáculo desagradável de uma casa cheia de móveis velhos e sujos, alguns deles avariados. Contou-me o caso de uma senhora distinta de suas relações, cuja filha perdera o casamento, porque o noivo achara repugnante o aspecto de sua pobreza. Sentiu-se mal e não voltou nunca mais à casa da noiva."
- E o marido?, perguntei-lhe.
- Adivinhe!
- Impossível.
- Jogador inveterado devendo no pano verde 10 contos de réis, 6 ao clube e 4 a um companheiro. Não lhe convinha ficar devendo! "Os compromissos de uma mesa de jogo são sagrados", disse-me. "E eu, hoje mesmo, vou pagar tudo! Não tolero humilhações. Muitas vezes tenho batido às portas dos Bancos para pagar a dívida de jogo!" Que tal o casal? E um não sabe da transação do outro! Quanta coisa se aprende numa casa como esta em que estou!
***
Um dia, inesperadamente, o Manuel Coruja foi despedido do serviço. Pela manhã, o patrão apresentou-lhe o seu substituto. Às 9 horas o rapaz apareceu-me aturdido e contou-me o fato. Acalmei-o, dizendo-lhe que se arrumaria outro emprego. O escritório era clandestino e ele nem podia exigir do patrão um atestado de conduta. Procurei mais tarde, o meu amigo, na sua residência particular, para saber se o Manuel Coruja lhe havia dado algum prejuízo:
- Que prejuízo! O Manuel é honestidade em carne e osso! Inteligente, ativo e muito arguto para o serviço. Mas é muito sério, cheio de muitos princípios, e daí, não se prestar, meu amigo, para certos negócios de minha casa, que depende de um curso de malandragem. Arranjei agora um águia, que é muito sensível à bossa da safadeza. Trabalhou no escritório de um camarada e deu grandes resultados à casa.
- Já deve ter alguma coisa.
- Não. Não foram corretos com ele. Não lhe souberam compensar o serviço. E eu resolvi aproveitá-lo aqui, onde há margem muito mais para se cavar a vida!
Passaram-se aproximadamente seis meses e eu consegui outra colocação para ele, a qual consistia em reduzir à escrita as transações de uma fábrica que tinha dois sócios, um que a dirigia e outro que passava quase meio ano ausente de São Luís. Nessa fábrica, as coisas se encrencaram com o Manuel Coruja, logo no fim do primeiro mês. O patrão não gostou de seu processo de escrituração.
- Por que você assentou aqui esses duzentos mil réis?
- Porque o senhor pediu no dia 16 do passado.
- Mas essa quantia devia ficar na minha conta particular.
- Mas o dinheiro é da fábrica. Saiu e eu tenho de debitar.
- Mas eu não me esquecia de que havia retirado essa importância. Vejo agora aqui um conto e quinhentos de entrada?!...
- Foi o senhor que recebeu no dia 18, na casa do comprador Z, ficando de lhe dar o recibo depois. Como o senhor não voltasse, ele apareceu aqui e mostrou o seu vale e exigiu o recibo. Passei-lhe o recibo e dei a entrada!
- Pois não está certo. O senhor não podia passar o recibo sem minha ordem.
- E o vale do senhor?
- Não importava o vale! Quem pediu o dinheiro não foi a casa. Fui eu, no meu nome individual.
- Mas no vale estava o nome da fábrica, com a letra do senhor. Disse-me ele que não tem contas particulares com o senhor. Mas eu posso, se o senhor quiser, ir buscar o recibo.
- Não. Já agora fica assim mesmo. Mas não faça outra.
No fim do segundo mês, nova encrenca. Manuel Coruja debitou o patrão por vários objetos que havia comprado a dinheiro para a sua casa particular, sem escapar uma grelha de assar carne, um cabo de vassoura, seis vassouras e cinco caixa de fósforos. Manuel Coruja ouviu novas observações. O patrão zangou-se deveras porque Manuel Coruja abriu um título - CONTA PARTICULAR DO SR. AMARO DE SOUSA.
Ao fim do terceiro mês nada houve a reclamar, porém, ao terminar o quarto, apareceu uma confusão nos preços de vários artigos de um fornecimento avultado. Os preços discordavam dos preços anteriores e, como as compras haviam sido feitas pelo patrão, Manuel Coruja reclamou e os fornecedores aceitaram a sua reclamação.
- Mas eu já havia concordado com os preços.
- Certamente, porque o patrão não reparou nos preços dos mesmos artigos do último fornecimento. Os preços não foram alterados.
- Bem, de fato, eu não sabia dessa circunstância.
Quase ao fim do ano, Manuel Coruja foi despedido da fábrica. Quando me comunicou que voltava outra vez à ociosidade, já não me causou surpresa. Os fatos que se passavam entre ele e o patrão, conduziam-no. para a porta da rua. Contudo, por curiosidade, quis ouvir o dono da fábrica, que era um velho camarada.
- Por que você despediu o Coruja?
- Ótimo auxiliar, mas tem um defeito que apaga todas as boas qualidades que possui. É teimoso a mais não poder ser. Imagine que eu, sócio da casa, gerente da fábrica, responsável por todas as transações do estabelecimento, imagine que eu tinha que aturar as teimosias dele. Acredite que nunca encontrei na minha vida um sujeito mais escrupuloso que o Coruja. Chega a ser uma doença!... Quando se aproximava o fim do mês era eu quem corria dele por causa da prestação de contas. O homem que toma nota de quarenta réis, que se debita por cem réis!
***
Manuel Coruja cumprira o que prometera: estudar à noite. Pelo que continuou a progredir. Durante muito tempo guardei os exercícios desse singular discípulo, para estimular os estudantes profissionais. Passaram-se quatro meses. Certo dia, um dos meus discípulos que terminava o curso de bacharel em Recife, vindo passar as férias em São Luís, ofereceu a Manuel Coruja um lugar de promotor no interior do Estado. Manuel Coruja, a princípio, recalcitrou. Não tinha habilitações para o cargo, porém, o acadêmico, nosso amigo, insistiu, e tanto fez que o Coruja, animado por mim, aceitou. O pai do acadêmico era amigo do Chefe do Estado e responsável político por dois importantes municípios, onde eram grandes as suas forças eleitorais. Não demorou a nomeação. Manuel Coruja partiu para o interior, levando, além de malas, um caixote cheio de livros que o deviam amparar no exercício da nova profissão.
O pai do acadêmico, coronel Júlio Horta, deu-lhe diversas cartas de recomendação para os compadres e afilhados de seus pagos. Nesse emprego passou Manuel Coruja dois anos, dispondo de muita saúde. fruindo confortadora paz de espírito. Escrevia-me longas cartas sobre a politicagem municipal, sobre a organização da vida social e política dos municípios. As autoridades municipais estavam satisfeitas com o promotor. O juiz elogiava-o e dava-lhe um lugar de destaque. De vez em quando era chamado para prestar serviço na secretaria da Câmara Municipal ou da Prefeitura.
Ia assim, Manuel Coruja, um mar de rosas, quando um fato veio lhe perturbar a confortadora paz. Um dos chefetes do município, morador no termo em que atuava como promotor, abusa de uma das filhas e acusa como autor um vaqueiro de sua fazenda. A politicagem cerrou fileiras ao redor do chefete que era homem abastado e um dos sustentáculos do partido no município. Debalde o vaqueiro jurou sua inocência no caso. O delito tomou proporções de um grande escândalo e a conduta da polícia provocou acres censuras.
Quando o processo chegou à Promotoria, todas as vistas se voltaram para o promotor. Os politiqueiros assediaram-no. Era preciso salvar o chefete, fosse como fosse. O Partido não podia ficar desmoralizado. O silêncio do promotor não agradava os politiqueiros. Ninguém sabia o que ele pensava a respeito do caso. Os mais chegados a ele resolveram interpelá-lo. Quando fizeram, já a promoção estava feita e o promotor não voltou atrás. Era uma peça veemente contra o pai deflorador. O criminoso não esperou mais nada. Dormiu no termo, mas não amanheceu...
A politicalha assanhou-se, o promotor foi demitido. E para não ser assassinado, desapareceu do termo, aproveitando-se das trevas de uma noite tempestuosa.
***
O situacionismo marcou-o. Nessa conjuntura ele me disse uma noite, depois do café:
- Vou aventurar uma colocação no Rio. Arranje-me uma passagem de proa, em qualquer cargueiro.
Consegui-lhe um lugar de primeira classe com o agente do Loide. Dei-lhe cartas para alguns amigos na Capital da República. Colocou-se facilmente, logo que chegou, graças a um dos meus amigos. Duas semanas depois de estar no Rio era admitido como auxiliar num tabelionato. Escreveu-me satisfeito. Ganhava quinhentos mil réis por mês, afora o que a margem permitia. Resolveu fazer o curso secundário. As noções que levava de várias matérias animaram-no a tomar essa resolução. E dois anos depois já havia feito cinco preparatórios. Passando a ganhar oitocentos mil réis por mês, resolveu satisfazer uma velha aspiração - casar-se com uma menina pobre de quem se apaixonara aqui em São Luís, desde a sua chegada.
Não podendo vir realizar o casamento aqui, mandou buscá-la e mais uma irmã menor. Fui eu quem tratou desse embarque. Maria Quitéria chegou ao Rio a 12 de julho. Manuel Coruja levou-a nesse mesmo dia para um hotel barato. Uma semana depois se casava, com uma simplicidade evangélica. No dia 22 do mesmo mês era a companheira vítima de uma dor violenta que ele dizia ser nos pulmões. Quando chegou o médico, muito depois do ataque inesperado do mal, Maria Quitéria já estava morta.
Manuel Coruja só faltou morrer de dor. Sofreu muito ao lado de sua cunhada, uma formosa menina de dezenove anos, Aurora Celeste. Complicou-se assim, rapidamente a situação. Pensou, pensou...e uma noite, depois do jantar, falou à cunhada:
- Celeste, você vai voltar para São Luís?
- Eu não quero voltar. Eu não vinha com Maria Quitéria. Minha avó foi quem me mandou, dizendo que a vida estava muito difícil...
- Como será então, Celeste?
- Eu não sei. Como o senhor quiser. Mas voltar, eu não volto.
- Celeste...
- Sinhô...
- Celeste...
- Fale, homem!
- Para ficares comigo, só se te casares comigo.
- O senhor é quem sabe...
- E tu queres?
- Se tu quiseres...
- Eu já lhe disse!...
Uma semana depois Manuel Coruja casava com Aurora Celeste e ficava morando com ela no mesmo quarto.
***
Contando-me esse episódio de sua vida, numa longa missiva, Manuel Coruja, satisfeito com o golpe que dera na dificuldade, assim se expressou:
- O destino me castigou. Reagi o que pude contra ele. O senhor bem sabe dos tormentos que passei. Mas estava escrito: para se feliz tinha que cometer, primeiro, uma bandalheira. Maria Quitéria me perdoará...
FIM
OBS: TRANSCRIÇÃO DO CONTO FEITA POR NATÉRCIA MORAES GARRIDO, bisneta do autor.