segunda-feira, 11 de junho de 2018

"A propósito de A sonata a Kreutzer", conto de Nikolai Leskov.

(São Paulo: Editora 34, 2012)

"Eu quero antes saber a sua opinião sobre isso, e o senhor deve responder com sinceridade. O que o senhor me aconselhar a fazer, eu farei." (p.170)

Olá pessoal, hoje trazemos mais uma indicação da literatura russa: o conto "A propósito de A Sonata a Kreutzer"(1899), do autor russo Nikolai Leskov. Já falamos anteriormente aqui e no nosso canal do You Tube A Beletrista que nosso projeto de leitura pessoal de 2018 está voltado para o conhecimento de novos autores / obras russas. E o Leskov foi uma grata surpresa para mim, uma surpresa tão boa que vou falar dele aqui e lá no YouTube. Porque ele merece sim.

Nikolai Leskov (1831-1895) viveu e publicou seus textos na 2ª metade do século XIX, mais especificamente entre 1860 e 1890. Escreveu romances, contos e crônicas e teve como seus contemporâneos autores que conseguiram fama e sucesso maior do que ele ainda em vida: Lev Tolstói, Fiódor Dostoiévski e Anton Tchekhov (esse último aqui sou mega fã e é tido por muitos críticos como um "mestre da arte do conto"). Dentre as características de sua escrita podemos destacar a linguagem popular - Leskov  já se preocupa em priorizar o retrato das camadas populares russas: os mujiques (camponeses), as mulheres, os costumes do interior. Todo esse "material humano" é coletado ao longo de várias viagens que o autor faz de trem pelo interior da Rússia.

Quanto à estrutura narrativa de seus contos (que não são narrativas lá tão curtas, possuindo inclusive capítulos), Leskov sempre inclui o elemento da "virada brusca nos acontecimentos, usando procedimentos que freiam a ação e criam suspense", como diz a estudiosa Elena Vássina*. Esses recursos fazem com que o leitor pare mesmo de ler, por causa do susto e do teor inesperado com que se depara na história. 

O narrador de Leskov também é um elemento da narrativa muito interessante: existe sempre a figura do "segundo" narrador, do tipo "ahhhh, eu escutei do fulano o seguinte caso etc." - e é esse fulano quem de fato vai narrar a história em questão. No caso de "A propósito de A Sonata a Kreutzer", o narrador é um autor/ escritor que é procurado por uma mulher misteriosa que precisa lhe confessar algo de sua conduta e ao mesmo tempo lhe pedir um conselho sobre como resolver seu dilema. Vou contar logo para vocês, leitores, pois ainda tem muita água para rolar depois disto: a dama em questão trai seu marido há vários anos e mesmo já terminado o affair, quer contar tudo a ele. Mas surpreendentemente, o narrador a quem ela se confessa e pede conselho lhe diz que não conte nada ao marido. Isso mesmo. E o argumento não poderia ser mais feminista, pasmem! Se os maridos que traem conseguem guardar tão bem seus segredos extraconjugais para não magoar suas esposas, e se é verdade que as mulheres tem os mesmos direitos que os homens, então não vale a pena trazer sofrimento ao marido traído e ao casamento, haja vista que eles ainda tem um filho. 

Alguns anos depois o narrador-personagem resolve fazer um tratamento de saúde em uma cidade balneária e lá reconhece a mulher misteriosa que o procurou no passado. Daí em diante, existirá um outro desenrolar para os fatos e pré julgamentos que rondam o narrador e esta mulher - e nós leitores também. Posso dizer que amei conhecer Leskov e sua visão irônica e perspicaz sobre o povo russo. É um autor que escreve "sem papas na língua" sobre todas as camadas sociais e que se negou a adotar uma determinada ideologia intelectual e política como seus contemporâneos - talvez por isso mesmo, em sua época, ele não tenha sido tão celebrado. 

E por fim, mas nunca menos importante: vocês observaram que o título do conto de Leskov faz uma referência à famosa novela A Sonata a Kreutzer (1891), de Lev Tolstói? Mas isso é assunto para outro post! Se já leram, comenta aqui embaixo para dialogarmos mais!

"Quando entrei no hotel em que ela estava hospedada... nunca me esquecerei do que vi." (p.183)

*VÁSSINA, Elena. "Nikolai Leskov, o mais original dos escritores russos." In: "A Fraude e outras histórias." Trad. Denise Sales. São Paulo: Ed.34, 2012.




terça-feira, 5 de junho de 2018

As invernas, romance de Cristina Sánchez-Andrade

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(São Paulo: Tordesilhas, 2017)

"Ninguém suspeita nada do que aconteceu conosco. Somos jovens, cruzamos fronteiras,  rios, pontes, cidades, falamos inglês, vimos o mar e fizemos cinema. O que vamos fazer aqui, escondidas como os percevejos e fechadas para o mundo...?" (p.71)

Posso dizer que este romance já um dos melhores que li neste ano de 2018! A escrita fluída, direta e irônica da autora espanhola Cristina Sánchez-Andrade me conquistou por mesclar, em uma mesma narrativa, mistério, história e cinema, aliado ao cenário rural em que grande parte das ações acontecem.

O título do romance, As invernas, se relaciona ao apelido dado às irmãs Dolores e Saladina pelos habitantes do povoado de Terra Chã, na região da Galícia (entre Portugal e Espanha). A história se passa na década de 1950. Depois de muitos anos afastadas dali, elas retornam guardando um grande segredo e descobrindo outro, deixado por seu falecido avô: a de que ele comprou o cérebro de todos ali do local na época da Guerra Civil Espanhola (fins da década de 1930). E agora que os tempos de escassez e de conflitos findaram, as pessoas pleiteiam às irmãs a "revogação" desses contratos, pois não querem morrer e ficar sem seus cérebros.

As irmãs mais que tudo desejam se reintegrar àquela sociedade - para transpirar normalidade e para curar as mágoas do passado. Para Dolores e Saladina o povoado de Terra Chã não mudou: ali ainda está o mesmo padre, dom Manuel, que só pensa em buscar de casa em casa a contribuição dos fiéis (mesmo que a vasta maioria seja pobre); tio Rosendo, o professor da única escola, casado com a Viúva de Meis, mas que odeia a esposa; Tiernoamor, aquele que faz implantes de dentes com dentes extraídos de defuntos. E tantos outros habitantes cujas histórias se confundem com as lendas e "causos" do lugar.

A narrativa engendrada por Andrade tem um quê de história oral.  Ao lermos a obra, temos a impressão de que alguém que nos é íntimo nos conta sobre os percalços das invernas e dos moradores de Terra Chã, fazendo-nos rir ou entristecer. A dualidade das coisas e pessoas se apresenta constantemente, a começar pelas próprias irmãs: uma é bonita, a outra é feia; uma tem dentes, a outra não; porém ambas dividem a paixão pelo cinema. E elas sabem que não podem ficar ali no povoado para sempre. Apesar do relacionamento conflituoso, as irmãs seguem unidas pelas memórias do passado e pela incerteza do futuro. Será que Terra Chã tem algo mesmo a oferecer às invernas?

"Não é que eu tenha notado nada de concreto, mas tenho o palpite de que vão acontecer coisas, mais coisas..." (p. 231)