sábado, 29 de dezembro de 2018

"Villette", romance de Charlotte Brontë

(São Paulo: Martin Claret, 2016) Ou faça o download de graça aqui ;)

"Se a vida era uma guerra, parecia ser meu destino combatê-la sozinha" (p.499)

Olá beletristas! Último post do ano de 2018 e eu resolvi escrever sobre a leitura deste calhamaço maravilhoso, o romance "Villette" (1853) da autora inglesa Charlotte Brontë. Calhamaço mesmo, com 820 páginas e nesta edição da Martin Claret o romance passa fácil das mil páginas por conta da inserção de prefácio, posfácio e uma seção / glossário onde consta a tradução de palavras e expressões em francês usadas ao longo da obra - que são muuuuuitas!

Charlotte Brontë é bem lembrada por outro romance que fez muito sucesso: Jane Eyre (1847). Suas irmãs foram igualmente escritoras - Emily e Anne Brontë - e como era comum para a época, elas publicaram seus escritos sempre sob pseudônimos masculinos. O ato de escrever para o público não era bem visto para as mulheres, pois implicava que elas também eram capazes de desenvolver o intelecto tanto quanto os homens. As opções para o gênero feminino que quisesse ganhar a vida honestamente, para aquelas que por algum motivo não casavam, também eram poucas: babá, doméstica, governanta ou professora. A última opção foi a escolhida por Charlotte e foi a que lhe deu muitas referências e materiais concretos para escrever seus romances. "Villette" não foge à regra. Vamos ao enredo então.

Lucy Snowe é uma jovem mulher que se encontra orfã no mundo após a morte de seus tios / tutores. Sem rumo, ela acaba por tomar um navio na Inglaterra rumo ao país europeu (fictício) de Labassecour, e se instala na capital Villette. Ao chegar lá, ela é informada que pode procurar abrigo no internato de Madame Beck, que de fato a acolhe como babá de suas filhas e logo depois, ao perceber a inteligência de Lucy, promove-a a professora de Inglês na escola. Como um típico romance de folhetim (com capítulos longuíssimos e intermináveis descrições), a permanência de Lucy em Villette é recheada de reviravoltas, revelações e possui características da estética romântica, das quais podemos destacar a forte religiosidade (catolicismo x protestantismo), o sobrenatural (a recorrente assombração de uma freira), o estado melancólico da alma e a ideia de amor romântico.

Em Villette, Lucy faz amizade com o jovem Dr. John Graham, que ela logo descobre ser o filho de sua madrinha, a Sra. Bretton, a quem não via há anos. A descoberta de que eles moram ali na capital e a retomada dessa amizade deixa Lucy menos solitária e depressiva, pois alguns fatos a isolam socialmente na cidade: o fato dela ser protestante, de ser uma mulher sozinha no mundo e de não ser tão atraente à primeira vista.

Em outro momento do enredo, Lucy retoma a amizade com Paulina de Bassompierre, de quem cuidou dez anos antes em uma temporada na casa de sua madrinha. Agora Paulina é rica pois seu pai recebeu uma herança e tornou-se Conde de Bassompierre. O conde também ajuda a pagar os estudos das sobrinhas pobres, dentre elas Ginevra Fanshawe, que é uma das alunas de Lucy no internato. Ginevra, porém, tem o caráter muito diferente da prima Paulina: é fútil, interesseira e bem prática nos assuntos amorosos, o que deixa Lucy extremamente desgostosa. Ela flerta com tantos homens quanto pode, inclusive levando o Dr. John ao tormento. Ginevra sabe de sua condição social e sabe que só um casamento vantajoso a tirará do fardo de seus pais e tio.

No internato, Lucy também conhece o intragável professor de Literatura, Sr. Paul Emanoel (primo de Mme, Beck), que desdenha constantemente da inteligência e da fé protestante dela. Ao longo do enredo, no entanto, ele prova ser um bom amigo e protetor, Lucy descobre seu passado e suas ações caridosas no presente e os dois acabam se apaixonando, apesar das diferenças de opiniões acerca de vários fatos, inclusive sobre religião (Paul é católico e seu padre confessor, Pe. Silas, o desencoraja a ficar com Lucy, chamando-a de "estrangeira herética").

Sob muitos aspectos o discurso de Lucy (pois ela é a narradora-personagem) já antecipa os anseios feministas que se tornariam mais fortes a partir do século XX: ela não se vitimiza por ser orfã e ter que batalhar por seu lugar no mundo; sabe que não é atraente aos olhos masculinos e é ciente de sua inteligência franca e honesta, algo que não é valorizado por um possível pretendente. Talvez por ter essa consciência tão forte e racional de como as coisas funcionam na prática para seu gênero é que em um determinado momento Lucy sucumbe à depressão, mas se recupera ao descobrir novamente a amizade da madrinha e do Dr. John. 

Apesar de ser uma obra que poderíamos encaixar na estética romântica, o discurso sobre o amor aqui raramente é colocado de forma "floreada" e "idealizada"; pelo contrário. As personagens femininas de Villette sabem muito bem o que esperar do gênero masculino e seus caprichos, elas não se iludem à toa. A própria Lucy diz que não acredita no amor que nasce da beleza (uma referência ao amor à 1a vista e porque ela não era mesmo atraente, ao contrário de Ginevra e Paulina), mas sim, acredita que ele nasce da amizade, da constância e da convivência. 

Mas então, depois de ler até aqui, vocês podem me perguntar: qual é exatamente o conflito desse romance? Seria a busca de Lucy por ela mesma e por sua sobrevivência em um mundo que não iria lhe facilitar nem um pouco. Desafios tem que ser superados, obstáculos devem ser transpostos e não necessariamente só como Lucy sempre pensou estar. O grande presente que a vida lhe deu foram as pessoas certas que tornaram sua trajetória menos solitária e com quem Lucy pôde contar e confiar. Apesar de agarrada à fé - que foi o que lhe deu bastante sustentação emocional em vários momentos de sua vida - é fato que só a religião não bastou para Lucy. 

A leitura de Villette durou exatos 4 meses (setembro a dezembro). Para isso fiz um cronograma de leitura (senão não dava conta), e dividi o romance em 4 partes pois como já disse no início, são 820 páginas distribuídas em 42 capítulos. Capítulos longos, feitos para um leitor do século XIX. Ouso dizer que Brontë escreveu mesmo foi para suas leitoras burguesas, que naquela época tinham bastante tempo para se entreter, já que as mulheres não possuíam vida pública, apenas privada (eram as "rainhas do lar"). Mas eram bons tempos esses, em que a leitura constituía uma das principais formas de entretenimento. Ainda podemos resgatar o poder de ler sempre e mais, apesar das tantas distrações proporcionadas pelas redes sociais. E é sempre bom viajar para o século XIX, minha época favorita na literatura e um bom refúgio para as agruras da realidade do século XXI.

"Tantas vezes eu havia percebido que as pessoas de trato mais difícil não são de modo algum as piores da humanidade." (p.755)



quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O processo do tenente Ieláguin, de Ivan Búnin

(São Paulo: Editora 34, 2016)

"É um caso horrível - estranho, enigmático, insolúvel. Se por um lado, é muito simples, por outro é bem complexo..." (p.11)

Imaginem vocês que essa novela literária começa o enredo assim??? Aí o autor já me mata de curiosidade logo de cara, né? Pois muito bem...e russo então! Nesse projeto que determinei pra mim esse ano (de ler literatura russa) estou procurando também autores que não conheço e nunca ouvi falar. E Ivan Búnin (1870 - 1953) entra exatamente neste caso. 

Ele é um dos autores que faz parte da geração de russos intelectuais que imigraram para outros países da Europa por não concordarem com o projeto político-ideológico instaurado após a Revolução Bolchevique de 1917 e que leva Lênin ao poder. Foi influenciado pelas leituras de Anton Tchekhov (o mestre dos contos russo e um dos meus autores preferidos!) e Leon Tolstói e traduziu diversos poetas consagrados para o russo, como o romântico inglês Lord Byron, o clássico italiano Petrarca e o norte-americano Henry W. Longfellow. Ganhou duas vezes o prêmio russo Púchkin (1896 e 1901) e posteriormente o Prêmio Nobel  de Literatura (1933). Ufa! Boas credenciais pra você ler Búnin agora, não é verdade?

Mas vamos à história inusitada - e já digo de antemão que se eu fosse da área jurídica, me apressaria em ler esta novela: Búnin se baseou em uma história real, que aconteceu décadas antes na Rússia, para escrevê-la. O processo do tenente Ieláguin (publicada em 1926 quando o autor já tinha imigrado para Paris) narra como se dá o processo de acusação deste jovem tenente, que confessa ter matado sua amante, a atriz famosa Sosnovskáia, atingindo-a com uma bala no peito. 

Alternando as vozes narrativas - uma hora quem fala é o advogado dele, outra hora o promotor, ou então um narrador onisciente - , o leitor tem a impressão de que é um espectador do próprio júri, acompanhando os testemunhos, as indagações e os autos do processo, estes cheios de lacunas que só serão resolvidas (ou entendidas) ao longo da leitura.  Porque o grande imbróglio do processo - e por isso eu uso o adjetivo inusitado - é que a vítima pediu pra ser morta! É com base nessa tese que a defesa de Ieláguin pretende inocentá-lo.

Mas em 88 páginas - que eu nem senti passar o tempo - começamos a entender melhor o contexto do relacionamento dos envolvidos (Ieláguin e Sosnovskáia), seus passados e suas personalidades doentias. Sim, tem muito de análise psicológica aqui nessa história e quanto ao final, só posso dizer que surpreende, mas como boa narrativa moderna, o leitor terá que construir seu sentido.

"É espantoso: como era possível, ainda que fosse apenas depois da leitura dessa carta, dizer: uniram-se duas pessoas que nada tinham em comum!" (p.40)


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"The pajama party", by Shirley Jackson. Resenha por *Letícia Gomes Cardoso

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SHIRLEY JACKSON (1916-1965)

Shirley Jackson was an American writer, best known for her horror stories such as the novels "The haunting of Hill House" (1959, considered by critics one of the best horror novels ever written!) and "We have always lived in the castle" (1962, her last novel). The plot twist of this short story, "The pajama party" (1963, also retitled later as "Birthday party") however, gives us a domestic and somewhat  boring story compared to her most notable works.

The short story is developed in a quite simple way: Jannie has asked (actually begged) her mother for a pajama party to celebrate her 11th birthday. In return, she promised she would behave and keep her room organized for a month. Her dad thought it was a terrible idea; her brother Laurie agreed and complained about the giggle noises the girls would do.

Eventually, Jannie's mom agreed with the party and began to arrange everything for the guests. She put extra beds into Jannie's room, which was very large and prepared cupcakes and candies. When the girls arrived ( Linda, Kate, Carole and Laura) they moved the party upstairs while Jannie's parents and her older brother enjoyed themselves downstairs.

"The pajama party" sounds different from Jackson's most celebrated stories, even though it's interesting to read a narrative that involves "normal children". The use of quotation marks here is to emphasize that the girls in the story already show adult characteristics such as their clothes (lace-trimmed nightgowns), their private joke "Dickie" and their romantic interests at this age.

The story works as a metaphor to show and explain the difficulties and steps that girls go through from childhood to teenage years. "They were like a pretty bouquet of femininity" showing their feminine characteristics. The pajama party, a traditional children's party in American culture, simbolyzes a route of passage as a last action of a child.

Even Jannie's birthday gifts express such passage - she got an Elvis Presley record (a singer her parents enjoy too). The way the story ends shows that the party itself wasn't even that important: the girls got together but they got "into a fight", which demonstrates imaturity because they're still too young to deal with some problems by themselves. It also shows how shallow their friendship is, meaning they're not real best friends as they claim to be. 

Personally I believe the story is important and relevant because it talks about friendship on early ages and is worth knowing for the message it brings, specially for those who are in that "growing up" stage of life. 

*Letícia Gomes Cardoso is an intelligent, brilliant and sensitive English teacher, also a student from the English Language Major Course. This review was part of an avaluation of the discipline "The use of Literature as a Resource for English Teaching", taught by me.



quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Aquela água toda - João Anzanello Carrascoza

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(Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018)

Olá beletristas de plantão, tudo bom? Hoje trago pra vocês minhas impressões sobre o livro de contos Aquela água toda (2018), do paulista João Anzanello Carrascoza. Confesso que é meu primeiro contato com a escrita do autor mas sempre tive muita vontade de lê-lo - são muitas resenhas positivas sobre suas obras, além do fato dele ter ganho vários prêmios literários nacionais e internacionais, a exemplo do nosso Jabuti e do White Ravens.

Claro que é difícil resenhar um livro de contos - sempre vamos falar das narrativas que nos tocaram mais ou que nos deixaram mais reflexivos. Porém podemos destacar alguns pontos em comum nos 11 contos: a linguagem de Carrascoza é lírica, poética mesmo, e cheia de metáforas para o que denominamos de vida cotidiana e a passagem do tempo. Logo identificamos a imagem da água, que está presente de alguma forma em todas as narrativas, seja por meio do mar ou das lágrimas. O conto que dá título à obra é assim: um garoto saboreia o momento de estar no mar, sua maior felicidade:

O menino comia a sua vivência com gosto, distraído de desejos, só com sua vontade de mar. (p.15) 

Outra característica percebida é que na maioria dos contos temos um narrador criança, que sempre parece ter toda sua vida resolvida até a chegada de um indicador conflituoso do mundo dos adultos - é o que acontece no conto "Paz", quando o garoto percebe a dor da mãe ao receber um envelope branco, que depois descobrimos ser a cobrança de um banco pois as prestações da casa não foram pagas.

Aproveitar o instante é algo recorrente nos contos. A urgência de entender que não sabemos os rumos da vida futura é que nos deveria tornar mais atentos ao hoje, ao presente, valorizando as pessoas que estão ao nosso redor. É o que encontramos no belo "Chave", em que o filho caçula gosta de passar seu tempo junto à mãe e é criticado por isso pelos irmãos:

[...] os dois se oferecendo ao instante, à esperança de esticá-lo como um elástico, ou de alargar o sentimento que experimentávamos, um minuto apenas, aglutinado ao outro. (p.98)

Mas não posso deixar de falar de "Cristina": a delicadeza com que o olhar e o sentimento do primeiro amor é construído me fez voltar à minha infância. Ter novamente a sensação da primeira vez traduzida em um conto me fez realmente ser fã do Carrascoza:

[...] descobri - no fundo, pressentia! - que as coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las. (p.21)   

Uma pergunta parece estar sempre ecoando nos contos: como lidar com a inexorável passagem do tempo? A resposta também está lá: valorizando os pequenos instantes de felicidade, saboreando o gozo do momento, a paz do silêncio, enfim, a expectativa gostosa que precede o clímax da vida.

O seu legado estava todo ali, naquele momento que usufruía junto delas. (p.111)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

As três Marias, romance de Rachel de Queiroz

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(Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2017 - edição em parceria com a Tag Experiências Literárias)

"A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida" (p.68)

Olá beletristas, tudo bom? Tenho certeza aí que muitos já conhecem ou já ouviram falar da autora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003) e de sua grande contribuição à Literatura Brasileira, principalmente ao dar posição de destaque às mulheres em seus romances. Ela também foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras (o que aconteceu somente em 1977!), além de ter ganho muitos prêmios literários, dentre eles o Prêmio Camões e o Jabuti.

Essa semana (re) li o romance "As três Marias" (1939). Na época do lançamento, o próprio autor  Mário de Andrade ( de quem Queiroz era fã) escreveu o prefácio do romance, destacando que é nessa obra que a autora dá uma guinada em seu interesse pelos "problemas humanos, mantendo, no entanto, todos os elementos  de simplicidade e clareza da sua expressão linguística."* É porque aqui o tom se reveste de um semiautobiografismo, com um toque de confissão e memória, características bem diferentes daquelas encontradas no primeiro romance de Queiroz: "O Quinze" (1930). 

A história é narrada por Guta (Maria Augusta) e se inicia com sua chegada ao colégio interno em Fortaleza aos 12 anos; logo faz amizade com Maria José e Maria da Glória. Por conta de andarem sempre juntas, uma Irmã as nomeia de 'três marias", em alusão às 3 estrelas que compõem a constelação de Órion. A vida no internato, com as naturais descobertas da adolescência e a partilha de sofrimentos familiares contribuem para estreitar ainda mais a amizade entre as 3 meninas, que se estende mesmo após o término dos estudos.

Cada uma segue os percalços da vida adulta que são próprios às mulheres: indecisões sobre o futuro, o medo da solteirice, o dever do casamento, a busca pelo amor verdadeiro. Guta resolve seguir seu espírito de liberdade e trabalhar como datilógrafa, morando em Fortaleza mesmo mas dividindo um quarto com Maria José na casa da mãe desta; Maria José decide se dedicar à vida de professora e de catequista na igreja; e Maria da Glória, a órfã, encontra um marido para lhe dar a família que tanto sonha.

Não diria que este romance tenha um discurso feminista veemente, como alguns estudiosos querem defender, até porque a narradora-personagem (Guta) pra mim soa um tanto ingênua e idealizadora dos fatos mundanos; em outros momentos, entretanto, seu discurso é mais categórico e até mesmo lúcido e realista, como quando ela reage ao saber que um amigo seu se suicidara e lhe culpava por um amor não correspondido (um amor platônico):

"Em nome de que direito se introduzira assim brutalmente na minha tranquilidade, por que arrastara consigo a sua alcova dramática, a parentela acabrunhada e viera morrer dentro da minha vida?"


As relações de gênero retratadas em As três Marias demonstram como na primeira metade do século XX as mulheres esperavam muito pouco de si mesmas e conheciam menos ainda o sexo oposto, apesar de desejarem uma vida diferente daquela que a sociedade já havia traçado para elas. Questiono por exemplo, o que seria essa tal ideia de liberdade tão sonhada por Guta: um emprego? Ir e vir sem dar satisfações? Morar em outra cidade, longe dos olhos vigilantes da família? Namorar livremente? Parece que sim, Como disse no início desse post, fiz uma releitura desta obra. A primeira vez que li mesmo eu tinha 14 anos; lá se vão mais de 20 anos e com certeza nessa segunda leitura consegui perceber e criticar fatos que na época eu não podia sequer entender.

As dúvidas que assolam os pensamentos de Guta bem como seus erros e acertos na passagem da adolescência para a vida adulta é o que nos remete ao mundo real e às nossas próprias experiências: não sabemos mesmo de nada quando somos tão jovens e a vida é isso aí mesmo: não pára pra dor nem pro sofrimento. A outra lição que a releitura me trouxe foi valorizar as amizades - a longevidade deste tipo de relação, entre mulheres, cria o apoio de que precisamos e fortalece nossas memórias como ser humano. 

"...menina louca que queria brincar de amor com um homem, com um homem que sabia muito bem o que isso era." (p.132)

* ANDRADE, Mário de. As três Marias. In: QUEIROZ, Rachel de. As três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Papisa Joana" - Donna W. Cross. Por *Maria de Fátima Ribeiro dos Santos

CROSS, Donna Woolfolk.  Papisa Joana (São Paulo: Geração Editorial, 2009. 491p.)

A autora norte-americana Donna Woolfolk Cross possui bacharelado em Inglês pela Universidade de Pensilvânia.  Em Londres trabalhou como assistente editorial na W. H. Allen & Company. Nos EUA trabalhou em uma empresa de propaganda, Young & Rubicam.  Em 1972 fez mestrado em Literatura e Redação pela UCLA.  Em 1973 começou a lecionar no departamento de Inglês de uma faculdade no norte do Estado. É autora ainda de dois livros sobre Linguagem.
Cross constrói um romance de ficção histórica que narra a trajetória da vida de Joana desde seu nascimento até o seu restrito pontificado. A obra se passa na Idade Média, no século IX, época de ignorância, de miséria, de superstição e de muita brutalidade. Joana é filha de um cônego (cristão) e de uma mulher pagã (saxã) que se converte em cristã. Desde criança Joana já se apresentava curiosa e questionadora. Uma vez perguntou à sua mãe sobre os pagãos e pediu-lhe que contasse a história de seu povo. Seu pai, ao ouvir a história, mostra-se furioso e surra a mãe na frente dos filhos. Mateus, irmão mais velho, passa a ensiná-la a ler e escrever escondido do pai e ao perceber tamanho interesse pelo estudo, presenteia Joana com um medalhão de Santa Catarina de Sena. Como se sabe, Catarina de Sena é uma das doutoras da igreja que se destacou pela inteligência; buscava o autoconhecimento para viver sua fé e seu amor por Jesus.
Ao longo de sua vida, Joana percebe que o mundo do conhecimento não foi feito para as mulheres, porém aos poucos e com muita persistência e sorte ela vence seus obstáculos: consegue se destacar nos estudos e chama a atenção de seu tutor, Asclépio, que a indica para a escola em uma cidade maior, Dorstadt; eventualmente, ela assume a identidade masculina de João Ânglico por ocasião de uma tragédia e vai morar no monastério de Fulda. É neste lugar que ela / ele assume a função de monge copista e aprende a arte da medicina. Anos depois suas ambições a levam a Roma, onde entenderemos como se dará a ascensão de Joana / João a Papa João VIII. 
Percebe-se que Joana teve momentos de dúvidas quanto a sua fé. Ora se achava pensando na fé cristã do pai, ora na crença pagã da mãe. Mas quando chegou ao papado descobre a sua autêntica fé em Deus. Outro aspecto interessante da obra foi a concretização das palavras da vidente, com quem Joana se consultou ainda na adolescência:  “----Criança trocada, você é o que não será; você será o que não é.” E continuou: “Você aspira ao que é proibido.”(p.154) Quando ela chega a papa, ela entende o verdadeiro significado das palavras da vidente.
Como pontos específicos da obra, pode-se destacar o grande interesse de Joana pelo conhecimento. A sua vida foi pautada basicamente nessa busca/procura do saber. As obras que ela leu, de autores clássicos - Homero, Hipócrates, Oribásio, Alexandre de Trales, Santo Agostinho e outros - deram-lhe o necessário suporte para direcionar a própria vida. Sua inteligência concorreu para o enfrentamento dos desafios da sociedade da época. Fatos históricos são mencionados como forma de fidelizar a época da Idade Media. Em nota, a autora coloca argumentos contrários e também favoráveis que podem suscitar sua existência, no entanto cabe ao leitor decidir se a Papisa Joana existiu ou não. Recomenda-se a leitura, pois é envolvente e rica de informações históricas. 
* Maria de Fátima Ribeiro dos Santos é professora universitária, exímia leitora e como a Papisa Joana, possui uma sede inesgotável pelo conhecimento.