quarta-feira, 22 de agosto de 2018

As três Marias, romance de Rachel de Queiroz

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(Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2017 - edição em parceria com a Tag Experiências Literárias)

"A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida" (p.68)

Olá beletristas, tudo bom? Tenho certeza aí que muitos já conhecem ou já ouviram falar da autora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003) e de sua grande contribuição à Literatura Brasileira, principalmente ao dar posição de destaque às mulheres em seus romances. Ela também foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras (o que aconteceu somente em 1977!), além de ter ganho muitos prêmios literários, dentre eles o Prêmio Camões e o Jabuti.

Essa semana (re) li o romance "As três Marias" (1939). Na época do lançamento, o próprio autor  Mário de Andrade ( de quem Queiroz era fã) escreveu o prefácio do romance, destacando que é nessa obra que a autora dá uma guinada em seu interesse pelos "problemas humanos, mantendo, no entanto, todos os elementos  de simplicidade e clareza da sua expressão linguística."* É porque aqui o tom se reveste de um semiautobiografismo, com um toque de confissão e memória, características bem diferentes daquelas encontradas no primeiro romance de Queiroz: "O Quinze" (1930). 

A história é narrada por Guta (Maria Augusta) e se inicia com sua chegada ao colégio interno em Fortaleza aos 12 anos; logo faz amizade com Maria José e Maria da Glória. Por conta de andarem sempre juntas, uma Irmã as nomeia de 'três marias", em alusão às 3 estrelas que compõem a constelação de Órion. A vida no internato, com as naturais descobertas da adolescência e a partilha de sofrimentos familiares contribuem para estreitar ainda mais a amizade entre as 3 meninas, que se estende mesmo após o término dos estudos.

Cada uma segue os percalços da vida adulta que são próprios às mulheres: indecisões sobre o futuro, o medo da solteirice, o dever do casamento, a busca pelo amor verdadeiro. Guta resolve seguir seu espírito de liberdade e trabalhar como datilógrafa, morando em Fortaleza mesmo mas dividindo um quarto com Maria José na casa da mãe desta; Maria José decide se dedicar à vida de professora e de catequista na igreja; e Maria da Glória, a órfã, encontra um marido para lhe dar a família que tanto sonha.

Não diria que este romance tenha um discurso feminista veemente, como alguns estudiosos querem defender, até porque a narradora-personagem (Guta) pra mim soa um tanto ingênua e idealizadora dos fatos mundanos; em outros momentos, entretanto, seu discurso é mais categórico e até mesmo lúcido e realista, como quando ela reage ao saber que um amigo seu se suicidara e lhe culpava por um amor não correspondido (um amor platônico):

"Em nome de que direito se introduzira assim brutalmente na minha tranquilidade, por que arrastara consigo a sua alcova dramática, a parentela acabrunhada e viera morrer dentro da minha vida?"


As relações de gênero retratadas em As três Marias demonstram como na primeira metade do século XX as mulheres esperavam muito pouco de si mesmas e conheciam menos ainda o sexo oposto, apesar de desejarem uma vida diferente daquela que a sociedade já havia traçado para elas. Questiono por exemplo, o que seria essa tal ideia de liberdade tão sonhada por Guta: um emprego? Ir e vir sem dar satisfações? Morar em outra cidade, longe dos olhos vigilantes da família? Namorar livremente? Parece que sim, Como disse no início desse post, fiz uma releitura desta obra. A primeira vez que li mesmo eu tinha 14 anos; lá se vão mais de 20 anos e com certeza nessa segunda leitura consegui perceber e criticar fatos que na época eu não podia sequer entender.

As dúvidas que assolam os pensamentos de Guta bem como seus erros e acertos na passagem da adolescência para a vida adulta é o que nos remete ao mundo real e às nossas próprias experiências: não sabemos mesmo de nada quando somos tão jovens e a vida é isso aí mesmo: não pára pra dor nem pro sofrimento. A outra lição que a releitura me trouxe foi valorizar as amizades - a longevidade deste tipo de relação, entre mulheres, cria o apoio de que precisamos e fortalece nossas memórias como ser humano. 

"...menina louca que queria brincar de amor com um homem, com um homem que sabia muito bem o que isso era." (p.132)

* ANDRADE, Mário de. As três Marias. In: QUEIROZ, Rachel de. As três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Papisa Joana" - Donna W. Cross. Por *Maria de Fátima Ribeiro dos Santos

CROSS, Donna Woolfolk.  Papisa Joana (São Paulo: Geração Editorial, 2009. 491p.)

A autora norte-americana Donna Woolfolk Cross possui bacharelado em Inglês pela Universidade de Pensilvânia.  Em Londres trabalhou como assistente editorial na W. H. Allen & Company. Nos EUA trabalhou em uma empresa de propaganda, Young & Rubicam.  Em 1972 fez mestrado em Literatura e Redação pela UCLA.  Em 1973 começou a lecionar no departamento de Inglês de uma faculdade no norte do Estado. É autora ainda de dois livros sobre Linguagem.
Cross constrói um romance de ficção histórica que narra a trajetória da vida de Joana desde seu nascimento até o seu restrito pontificado. A obra se passa na Idade Média, no século IX, época de ignorância, de miséria, de superstição e de muita brutalidade. Joana é filha de um cônego (cristão) e de uma mulher pagã (saxã) que se converte em cristã. Desde criança Joana já se apresentava curiosa e questionadora. Uma vez perguntou à sua mãe sobre os pagãos e pediu-lhe que contasse a história de seu povo. Seu pai, ao ouvir a história, mostra-se furioso e surra a mãe na frente dos filhos. Mateus, irmão mais velho, passa a ensiná-la a ler e escrever escondido do pai e ao perceber tamanho interesse pelo estudo, presenteia Joana com um medalhão de Santa Catarina de Sena. Como se sabe, Catarina de Sena é uma das doutoras da igreja que se destacou pela inteligência; buscava o autoconhecimento para viver sua fé e seu amor por Jesus.
Ao longo de sua vida, Joana percebe que o mundo do conhecimento não foi feito para as mulheres, porém aos poucos e com muita persistência e sorte ela vence seus obstáculos: consegue se destacar nos estudos e chama a atenção de seu tutor, Asclépio, que a indica para a escola em uma cidade maior, Dorstadt; eventualmente, ela assume a identidade masculina de João Ânglico por ocasião de uma tragédia e vai morar no monastério de Fulda. É neste lugar que ela / ele assume a função de monge copista e aprende a arte da medicina. Anos depois suas ambições a levam a Roma, onde entenderemos como se dará a ascensão de Joana / João a Papa João VIII. 
Percebe-se que Joana teve momentos de dúvidas quanto a sua fé. Ora se achava pensando na fé cristã do pai, ora na crença pagã da mãe. Mas quando chegou ao papado descobre a sua autêntica fé em Deus. Outro aspecto interessante da obra foi a concretização das palavras da vidente, com quem Joana se consultou ainda na adolescência:  “----Criança trocada, você é o que não será; você será o que não é.” E continuou: “Você aspira ao que é proibido.”(p.154) Quando ela chega a papa, ela entende o verdadeiro significado das palavras da vidente.
Como pontos específicos da obra, pode-se destacar o grande interesse de Joana pelo conhecimento. A sua vida foi pautada basicamente nessa busca/procura do saber. As obras que ela leu, de autores clássicos - Homero, Hipócrates, Oribásio, Alexandre de Trales, Santo Agostinho e outros - deram-lhe o necessário suporte para direcionar a própria vida. Sua inteligência concorreu para o enfrentamento dos desafios da sociedade da época. Fatos históricos são mencionados como forma de fidelizar a época da Idade Media. Em nota, a autora coloca argumentos contrários e também favoráveis que podem suscitar sua existência, no entanto cabe ao leitor decidir se a Papisa Joana existiu ou não. Recomenda-se a leitura, pois é envolvente e rica de informações históricas. 
* Maria de Fátima Ribeiro dos Santos é professora universitária, exímia leitora e como a Papisa Joana, possui uma sede inesgotável pelo conhecimento.