terça-feira, 1 de setembro de 2020

"Uma noite, Markovitch", romance de Ayelet Gundar-Goshen

 

(São Paulo: Todavia, 2018) Lido no Kindle. 355 pág.

"E tamanho esforço, certamente, não era sinal de indiferença. Era sinal de ódio. Aquela ideia consolava um pouco Iaakov Markovitch, pois ele sabia muito bem que o contrário absoluto do amor não era o ódio, e sim a apatia." (p. 242)

A leitura que vou indicar hoje foi escolhida e debatida mês passado pelo meu clube de leitura, portanto indicada por uma de nossas integrantes, a Sara Serra, que além de ser enfermeira é uma grande leitora. E que indicação maravilhosa! Ela foi ano passado para a FLIP e, dentre outras experiências literárias, Sara conseguiu assistir uma mesa redonda em que estavam duas jovens autoras: a israelense Ayelet Gundar-Goshen e a nigeriana Ayòbámi Adébáyò. Apesar de vindas de culturas diferentes, ambas conversaram sobre a posição da mulher em uma sociedade tradicional, sobre família e sobre como criar laços em meio a conflitos sócio-políticos. Durante a FLIP, Goshen lançou seu romance "Uma noite, Markovitch", que na verdade já havia sido publicado em terras internacionais desde 2012.

"Uma noite, Markovitch" é o romance de estreia de Ayelet Gundar-Goshen. Escrito de forma leve e bastante poética, possui pitadas de realismo mágico, aproximando a narrativa a uma fábula contemporânea. Quando eu digo "leve" não quero dizer que não possui temas conflituosos e espinhosos sendo tratados na história; mas o tom irônico muitas vezes atenua a dor e a desgraça com que as personagens principais vão se deparar em suas sagas. Porque sim, é uma saga, e esta se inicia pouco antes da 2a Guerra Mundial e no contexto de perseguição aos judeus.

Ao escapar de uma aventura sexual e da iminente vingança mortal de um marido traído, Zeev Feinberg, o agricultor mais popular e bonito de uma colônia agrícola da Palestina, foge para a Europa com a ajuda/ intervenção de seu amigo Efraim, o vice-comandante do Irgun (uma organização militar israelense). A proposta de Efraim é que Feinberg integre uma missão de resgate de mulheres judias e case-se com uma delas lá, para depois voltar e divorciar-se da moça em Tel Aviv. Dessa forma ele e tantos outros judeus palestinos estariam ajudando a salvar judias da crescente perseguição nazista. O grande amigo de Feinberg, o insípido e feio Iaakov Markovitch, acompanha-o nesta missão sem nenhuma expectativa, e é por isso mesmo que o destino lhe surpreende com um golpe de sorte: reserva a Markovitch a mulher mais bela do grupo para casar, Bela. O que ocorre é que na volta, ao contrário de seus companheiros que cumprem o acordo, Markovitch recusa-se a se divorciar decidindo manter Bela a seu lado contra sua vontade.

Poderíamos pensar a partir desse fato que Markovitch oprimiria Bela continuamente, porém ele a respeita, mantendo-se inclusive afastado dela, dormindo em cômodos separados da casa, esperando passivamente o bom momento em que nela crescesse a semente do amor. Aceita inclusive que Bela leve a vida que deseja: ela chega até a passar dois anos fora da colônia agrícola vivendo suas próprias experiências. Mas volta pois engravida e percebe que o mundo não é exatamente aquele pintado pelos poetas.

O realismo mágico do qual mencionei se mostra nas sutilezas da narrativa, extremamente sinestésica e  carregada de cheiros: Sonia exala o cheiro da laranja, tão cultivada nas colônias agrícolas de Israel e da Palestina. O bigode de Feinberg parece ter vida própria também. As frutas e a terra tem o cheiro do sangue e da conquista, aspectos intrínsecos à vida dos habitantes daquela região. 

O romance em si narra a saga não só de Feinberg e Markovitch, mas das pessoas que estão à sua volta: a esposa de Feinberg, Sonia; Rachel Mandelbaum e seu marido Avraham, o açougueiro local; e Efraim. Todos eles passarão por traumas que existem ali no contexto que falei anteriormente: o trauma das guerras, das perseguições, das desesperanças e o desafio dos recomeços. Apesar de à primeira vista Markovitch se resignar a um papel secundário nas vidas daquelas pessoas, ele se mostra importantíssimo por suas atitudes e falas; é aí que percebemos suas maiores características: a persistência, a capacidade de amar, de ter fé, de perseverar e sua lealdade. Mas tudo isso não livra Markovitch da solidão permanente que ele terá que enfrentar na vida. 










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