sábado, 26 de setembro de 2020

"A preta Benedita", conto de Valério Santiago, pseudônimo de José do Nascimento Moraes.

 


(19/03/1882 - 22/02/1958)

Olá beletristas, leitores e amantes de um bom resgate das letras maranhenses, tudo bom? Compartilho com vcs um conto bem famoso do meu bisavô, o escritor, jornalista e cronista José do Nascimento Moraes. Em outro post escreverei falando melhor sobre sua vida e obra. Por ora, deixo-lhes na companhia de um texto inquietante, dramático e analítico no tocante à sociedade ludovicense pré e pós-abolição da escravatura: o conto "A preta Benedita".

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A PRETA BENEDITA

 

Conheci a preta Benedita na casa do meu colega de Liceu, Joaquim Alves Leitão. Era uma mulher de estatura regular, cara chupada, de movimentos ligeiros, olhos piscos e voz fanhosa. Benedita morava na casa de Joaquim. A princípio não me interessou a figura de Benedita. Cuidei que fosse a criada da casa.

 

Mas com o se passarem os dias, o ambiente familiar foi quem me desenhou o perfil moral daquela preta.

 

Estudávamos na varanda da casa dele, três vezes por semana, e três vezes na salinha de minha casa, porque os meus livros eram dele, e os dele eram meus.

 

Ao tempo em que andei pelo Liceu quase todos os estudantes da minha turma eram pobres mas muito amigos uns dos outros.

 

Ao princípio do ano, depois que recebíamos dos nossos professores as notas dos livros, reuníamos para dividir as despesas. Em regra geral cada um se encarregava de comprar um livro.

 

Se havia necessidade de comprar um livro caro, como um dicionário ou uma “tábua de Callet”, então o preço do livro era dividido por todos. À medida que íamos avançando no curso, os livros iam passando às mãos de outros estudantes pobres que se aproximavam de nós. E quando terminava o curso, os livros restantes era divididos pelos pobrezinhos, como nós, que vinham ao nosso encalço.

 

Reparei que Joaquim, seus dois irmãos e suas irmãs obedeciam e respeitavam a preta.

 

Benedita não se vexava de lhes passar carão, quando mal se conduziam. A dona da casa, D. Francília, tratava a preta como se fora uma de suas maiores amigas. Não foram poucas as vezes que as vi, debaixo da mangueira, no quintal, conversando a sós. 

 

Um dia, por motivo que não me ocorre agora à memória, falei à minha mãe a respeito da preta Benedita.

 

-      Benedita, respondeu minha mãe, é quem sustenta a casa de teu amigo. D. Francília foi uma senhora muito rica. Os seus pais eram ricos e rico era o seu marido, o coronel Leitão. Os pais de D. Francília empobreceram do dia para a noite.

 

De uma feita, deitaram-se ricos e, ao amanhecer, eram pobres. Os credores da casa comercial do coronel Alves, pai de D. Francília, levaram tudo que ele possuía. Naqueles tempos, a falência de uma casa comercial desonrava os seus chefes. A família Alves fechou as janelas do seu palacete. Naqueles salões não mais entrou a alegria. O piano de cauda ficou mudo. As meninas não frequentaram mais as famílias de suas relações. Iam com D. Francília à missa, pela madrugada. Passaram a trajar com maior simplicidade. As jóias, que eram muitas, foram fechadas numa velha caixa de pau santo.

 

O Coronel poucas vezes saía à rua. E o que mais doía ao coronel Alvez era que ele não tinha a seu lado aqueles velhos amigos do tempo das vacas gordas. Quando o Coronel morreu, D. Francília ainda não havia se casado com o coronel Leitão, que estava na crista da fama.  Era diretor de bancos e sócio de grandes empresas, inclusive uma de navegação.

 

D. Francília era muito bonita e prendada. Não sei como se namoraram. Diziam amigos da família que o namoro principiou no dia em que ele e alguns comerciantes foram ver o sobrado de sua mãe para comprar. 

 

O casamento surpreendeu a todos, porque, segundo constava, o coronel Leitão comprara o sobrado por um preço vil e que dois meses depois, falecera a viúva ralada de desgostos, porque o coronel Leitão se aproveitara de sua pobreza para arrebatar-lhe o único bem que lhes restava.

 

-      Não era o único bem, interrompeu meu pai.

-      Não era?

-      Não. O único bem ficou com a D. Francília.


Minha mãe não compreendeu.

E meu pai, depois de tirar uma cachimbada:


-      O único bem era a preta Benedita que os credores não quiseram avaliar, nem o coronel Leitão quis comprar quando a mãe de D. Francília, a pedido da preta, a ofereceu para ser sacrificada.

-      E depois?, perguntei curioso.

 

Meu pai continuou:

-      Depois o coronel Leitão entregou-se à paixão do jogo. E lá se foi o dinheiro todo. Vendeu tudo para jogar! No casino e numa saleta de sua casa enterrou ele todos os seus haveres. Nem os escravos de duas fazendas que ele possuía no Mearim foram poupados!

 

E depois de refletir um momento, meu pai continuou:


-      O coronel Leitão suicidou-se, vexado pela desonra e pelo descrédito. Num domingo, às 11 horas do dia, encontraram-no morto num sítio de sua propriedade, à margem do rio Cotim, para onde saíra a passeio, pela madrugada. D. Francília ficou com os filhos nessa mesma casa em que ainda hoje se acha, que fora de sua mãe e que o Coronel comprara por um preço vil e onde passara a residir depois de casado. Os amigos dos bons tempos desapareceram, as suas três irmãs, muito pobres, não a podiam ajudar. Casadas com homens pobres e sem posição arrastavam vida angustiada. 

 

Apenas uma criada ficara com ela – a preta Benedita. Chegou o 13 de maio de 1888 e os escravos abandonaram os senhores, a maioria a rogar-lhes pragas tremendas. Em algumas fazendas deram-se cenas desagradáveis. Senhores que eram carrascos foram humilhados.

Muitos feitores perversos e desumanos foram surrados e esbofeteados pelos escravos. Aqui em São Luís bandos de escravos percorriam as ruas gritando a esmo, ou cantando estrofes de cativeiro. Numerosos, embriagados, em grupos, passavam em frente da residência dos senhores e lhe dirigiam insultos e ameaças.

 

Muitas famílias pobres ficaram em uma má situação, porque os poucos escravos que haviam conseguido comprar a custo de muitos sacrifícios e privações, deixaram-nas sem se despedirem. Desses escravos, os homens eram operários e as mulheres trabalhavam em pequenas indústrias domésticas. Escravos e escravas “pagavam a semana” aos seus senhores, que pouco mais ganhavam em pequenos empregos.

 

Pela explicação de meu pai, compreendi que a escravidão, nas cidades, transformara-se num vício social. O não ter escravos era um indício de pobreza e desprestígio nas famílias. Pelo que as famílias pobres – mas que sonhavam com uma posição melhor, pelo casamento das filhas, não mediam esforços nem sacrifícios para possuir meia dúzia de escravos que, trabalhando em seus misteres de artesão, ajudavam-nas com uma contribuição semanal, ficando-lhes um terço do salário para suas despesas particulares ou reservadas.

 

Os agiotas tiveram então, dias de fartura de bons negócios. Empenhavam, amiúde, joias caríssimas que eram cuidadosamente guardadas pelos seus possuidores. Relógios suíços da melhor qualidade lhe eram oferecidos pelos que se viram cobertos de pesadas necessidades.

 

São Luís durante alguns anos depois da abolição apresentou um espetáculo sombrio...


A preta Benedita não se separou de D. Francília. Para ela não houve abolição. D. Francília alimentara-se de seu leite. Ela a carregara aos seus braços, durante a sua meninice. Dera-lhe os cuidados que não encontrara no regalo de sua mãe. Com ela perdera as suas noites, cantando-lhe modinhas para fazê-la dormir. Quantas lágrimas chorara por causa dela! Quantas vezes a arrebatara das mãos de sua mãe que, sem paciência, a queria bater por qualquer coisa!

 

A preta Benedita ficou. Depois que as joias de D. Francília foram para os cofres dos agiotas, levadas por ela, lá também se foram as suas.

 

D. Francília mal sabia ler e escrever, como os seus irmãos e irmãs! D. Francília não sabia trabalhar. Só a preta Benedita era capaz de trabalhar. E a preta multiplicou-se, num trabalho exaustivo. Fazia doces de todas as qualidades e todas as tardes saía a vendê-los num tabuleiro, coberto por uma toalha muito alva e muito fina.

 

Fazia gengibirra que era muito apreciada e de que tinha grande freguesia nas tavernas. Fazia doce de coco e vendia aos quilos nas casas das famílias. A canjica, o pé-de-moleque e o arroz de cuxá, davam bom rendimento.

 

D. Francília ajudava-a na casa, mas não aparecia nunca nesses negócios. A preta Benedita era quem enfrentava a luta. Adquiriu crédito nas tavernas e no mercado. Toda gente queria negociar com ela, porque era séria e pontual nos seus tratos. Por último, um português do Desterro fechou com ela um negócio lucrativo: fornecer o almoço e o jantar para os seus trabalhadores encarregados de vender carvão na cidade. A preta Benedita deu conta do serviço, a contento do português, que passou a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava.

 

E as crianças de D. Francília frequentavam escolas particulares, bem vestidas. Não lhes faltavam livros, nem lápis, nem papel, nem caneta e pena. O Joaquim era um rapaz inteligente e estudioso. Era o segundo filho do casal e afilhado da preta Benedita, como todos os filhos de D. Francília. Mas ao Joaquim dispensava uma amizade especial.

 

Era a menina de seus olhos. Quando estudava na varanda, a preta arranjava sempre uma guloseima para nos dar.

 

As meninas precisavam de aprender piano. A professora era uma cantora francesa, casada com um maranhense de boas letras, que nas horas vagas fazia verso. Vivia de um bom emprego e tinha avultada renda de uns dinheiros que lhe deixaram os pais.

 

A francesa, porque não precisasse de ensinar, aos alunos que lhe apareciam, para terem o gabo de se apresentarem como discípulos de uma estrangeira, cobrava-lhes também a vaidade.

 

As moças “lamechas” de São Luís aprendiam com ela.

 

A preta Benedita não consentiu que as filhas de D. Francília aprendessem a tocar piano com outra professora.

 

O Joaquim assim que acabou o curso de preparatório, foi para Recife estudar Direito. Assim o quis a madrinha.

 

Quando a preta Benedita, muito alcançada em anos, morreu vítima de uma beribéri galopante, D. Francília já sabia trabalhar. Era uma senhora cheia de experiências úteis à vida. Sabia fazer tudo, até cozinhar e coser. Auxiliada pelas meninas tomou de conta das pequenas indústrias e negócios com que a preta durante quinze anos sustentava a casa.

 

O Joaquim bacharelou-se e voltou a São Luís, para tomar conta da família. As irmãs por seus merecimentos intelectuais faziam parte da boa sociedade. A professora casou-se com um violonista pernambucano, de grande fama. A pianista casou-se com um notável professor de São Paulo. A mais velha, depois de se casar com um alto funcionário federal, formou-se no Rio em Odontologia. Eram moças sóbrias de gestos, prendadas e de boa conduta.

 

Os dois irmãos de Joaquim colocaram-se bem no comércio de São Luís, de onde saíram como guarda-livros, um para Belém e outro para o Amazonas.


D. Francília ficou em companhia do filho que durante dois anos fez clientela nesta cidade.

 

Por sua morte [da mãe], o Joaquim foi residir em São João da Barra, no Rio. De uma feita, conversando comigo sobre os lances da vida de sua família, abriu a camisa e mostrou-me uma corrente de ouro cravejada de brilhantes e engastado nela um retrato.

 

-      A preta Benedita!, exclamei.

 

O retrato era perfeito. O retrato ele mesmo tirara, no quintal de sua casa, um domingo, pela manhã, para pilheriar com a preta. Ela estava com seu cabeção de mangas curtas, muito justo no pescoço. A cabeça branca contrastava com a pele negra. Os olhos pequeninos, numa expressão de contrariedade. As mãos apoiadas nas cadeiras e o lábio inferior torcido para o lado esquerdo. Ficamos os dois a olhar para a preta e com o espírito transportado para muitos anos atrás.

 

-      Sabes o que ela me disse nesta postura?

-      Não sei...

- “Seu Quinca você quer fazer de mim uma palhaça? Espere que eu vou dizer à sua mãe o pedaço de atrevido que você é!”... E eu por causa desse retrato quase pego uma surra!

 

E guardando o retrato:


-      Cada um de nós tem um retrato deste. Vou mandar ampliar o meu para colocar no meu quarto de dormir.

 

E com muita saudade:


-      Minha mãe Benedita! Minha mãe e minha avó, porque foi também a mãe de minha mãe! Bebemos o teu leite, bebemos o teu sangue, arruinamos as tuas energias e escravizamos a tua alma! O que nos poderia dar mais?

 

E seus olhos, cheios de lágrimas, derramavam-se sobre o retrato da preta.

 

Valério Santiago, a.k.a José do Nascimento Moraes.

 

GLOSSÁRIO ÚTIL:

 

1. gengibirra = 1. espécie de cerveja de gengibre, cuja composição inclui, além de gengibre, frutos, açúcar, ácido tartárico, fermento de pão e água; cerveja de barbante.2. aguardente de cana; cachaça.

2.“tábua de Callet” = referência ao famoso livro de logaritmos do matemático francês F. Callet.

3.beribéri = polineurite devida à carência de vitamina B1 ( tiamina ), caracterizada por distúrbios sensitivos e motores (paralisia esp. dos membros inferiores), circulatórios (formação de edemas, problemas cardíacos) e secretores.

 

4.guarda-livros = empregado do comércio, ou profissional autônomo, que tem por função fazer o registro da contabilidade e das transações de uma empresa de negócios, escriturando seus livros mercantis [Atualmente substituído pelo técnico em contabilidade, ou, quando se exige nível universitário, pelo contador.].

 

5.cabeção = camisa de mulher, inteira e com mangas, usada como roupa íntima.

 

 

Referência: MORAES, Nascimento. Vencidos e Degenerados & Contos de Valério Santiago.São Luís: SECMA; SIOGE, 1982. Edição esgotada. 


Em tempo: Os contos que compõem essa obra foram escritos e publicados originalmente nas primeiras décadas do século XX e em jornais da época, como O Diário de São Luís, A Tribuna e Correio da Tarde. Seu filho, o poeta Nascimento Morais Filho pesquisou largamente a obra de seu pai, reunindo-a e (re) publicando-a postumamente, uma vez que resgates literários precisam ser feitos sob pena de um ingrato esquecimento. Mas eu, como crítica literária, penso ainda além: é necessário resgatar as boas letras para as gerações de leitores que nascem a todo instante, sob pena de renegarmos nossa cultura por meio da ignorância. 


Em tempo 2: Valério Santiago era apenas um dentre tantos pseudônimos utilizados por Nascimento Moraes; por sofrer perseguições políticas e racistas, essa era a estratégia utilizada por ele para sobreviver da "pena" (ou seja, de sua escrita). Outros pseudônimos são: João Sem Terra, João Ninguém, Braz Sereno, Braz Cubas e Zé Maranhense. Com certeza Nascimento Morais Filho teve um grande trabalho ao pesquisar os contos e crônicas de seu pai, vcs não concordam?


Natércia Moraes Garrido

  


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