terça-feira, 8 de setembro de 2020

"O riso de Inês", conto de Luciana Frank

 


Limpava distraidamente o balcão de madeira envernizado, quando a avistou ao longe. Tirou a mecha de cabelo que impedia uma visão mais completa e pôs-se a contemplá-la. O seu andar elegante, seu porte de bailarina, o caminhar harmonioso na ponta dos pés combinavam com toda aquela beleza.

Soube que ela se chamava Inês assim que a atendeu naquela primeira vez que a viu entrar ali como uma desculpa para fugir da chuva fina que caía. Agora virou freguesa assídua, gostava de ir à padaria pontualmente às cinco da tarde e ele se adiantava para atendê-la. Pedia sempre a mesma coisa: um café preto e um croissant de queijo. Nenhuma novidade além do estilo e da cor das roupas. Usava sempre o mesmo penteado. Cabelo preso em um coque no alto da cabeça que deixava escapar alguns fios sob a nuca, óculos de aros quadrados, carteira de cigarros incompleta, um isqueiro de prata com duas iniciais que colocava em cima da mesa e os constantes suspiros saudosistas.

Notava algo que talvez passasse despercebido para os freqüentadores da aconchegante padaria de arquitetura colonial. Com o papel de pedidos na mão e a caneta segura pela orelha, notou que Inês tinha os olhos mais tristes que já viu em alguém. Grandes e bonitos, mas opacos e sem vida. Ouviu dizer nas entrelinhas das conversas, que antes de tudo acontecer, Inês era outra. Uma moça cheia de vitalidade, que mantinha os cabelos soltos, livres como uma moldura vasta e selvagem no rosto oval. Sua tez era morena, não pálida. Os olhos cheios de alegria e a gargalhada desenfreada e sonora. Espalhafatosa. Um dia seus lábios foram pintados de vermelho e não formavam a linha rígida que se mostrava agora. Inês gostava de rir?

Sim. E alto.

Aliás, a gargalhada que dava era sua marca registrada.

De acordo com algumas informações aqui e acolá, descobriu que era aspirante a cantora e atriz de teatro. Porém, só conseguira soltar sua voz nas noites boêmias em pequenos estabelecimentos esfumaçados e barulhentos. Diziam que cantava bem, de uma forma sensual, lembrava a Elis Regina. Mas o que os homens notavam mesmo era seu corpo cheio de curvas, em vestidos justos, se insinuando atrás do microfone no meio do tablado empoeirado de madeira. No teatro, gostava de encenar mocinhas ou vilãs, bruxas ou fadas, ou o que colocassem para ela fazer. Não possuía aquela ânsia em querer se mostrar mais que qualquer pessoa. Queria mesmo era aquela sensação de estar em um lugar que parecia ter vida própria, respirar com seus próprios pulmões, que palpitava a seus pés. O palco de um teatro. Mesmo que seus olhos vissem inúmeras cadeiras vazias, sua alegria continuava vibrante e a gargalhada solta que chegava a incomodar pela felicidade que transmitia. Cada poro de Inês sorria.

Anos mais tarde, ela se casou. Falaram que foi com um admirador e freqüentador assíduo das peças que participava. Um rapaz de boa aparência e família. Os amigos sentiram sua falta por muito tempo. Inês nunca foi alguém fácil de ser substituída. Sumiu por uns tempos, como se estivesse experimentando outros ares, depois reapareceu completamente diferente do que foi um dia. Arrancaram a pele que recobria Inês, o que viam era o que tinha por dentro. Um coração gelado em uma fajuta postura de mulher casada.

O que ficou sabendo, nas constantes conversas sobre sua mudança, era que seu marido reprovava suas atitudes, sua voz, obrigando-a a calar. Que se incomodava com sua risada, repreendendo seu tom alto, a forma alegre que falava, recriminando-a por parecer infantil, seus cabelos soltos que não lhe davam um ar sério de mulher casada.

Chorava angustiada pela dor de cada pena que lhe foi tirada no silêncio dos olhos que recriminavam. No início, ela teve suas asas disfarçadamente aparadas. Depois, cortadas e arrancadas de forma cruel. Até que o que sobrou foi uma mulher magra, de ossos longos de postura curvada, derrotada, de olhos tristes e fundos. Não mais saía, aprendeu a temer a noite que antes tanto a atraía, enxergava a vida através de uma janela de vidro embaçada pela chuva que caía fora de si e escorria por dentro.

Inês já não era o que foi. Já não lembrava o que a fazia feliz, como se fosse algo que ofendesse quem tivesse a seu redor e por mais que encenasse um pequeno ato na frente do espelho do quarto, envergonhava-se de sua ousadia em voltar a tentar a fazer o que havia sido proibida, a recolher as migalhas de um passado negado.

Todavia, mais tarde veio a separação. Ouviu dizer, aos cochichos, que seu recente ex marido não mais aturava uma alma sem fôlego, uma mulher que não ria, que não conseguira emergir de um mar revolto, um corpo frio e rígido ao seu lado na cama. Assumiu uma moça mais jovem, não em idade, porque Inês ainda era jovem, nem beirava os quarenta. Mas, a outra tinha presença de espírito, a pele corada, viva.

Assim voltou Inês para sua antiga casa e bairro que acolheu sua infância, carregando uma mala de couro e segurando um cachorro pequinês. Encontrara muitos de seus antigos moradores, mas parecia que não os conhecia, acenando por educação, sem querer encompridar o papo. Sempre que a avistava atravessar a rua para entrar na padaria, ele sorria para ela. No início, ela não lhe retribuía. Timidamente, fazia seu pedido como se ele já não o soubesse de cor. Seu olhar inquisidor, ávido, vasculhando o ambiente, porém com uma pequena e derradeira inquietação por detrás da tonalidade incomum de verde. Um sorriso meio de lado, que queria se abrir.

Chegava a ter certeza que a antiga Inês retornaria, assim como a história da Fênix que ressurgia de suas próprias cinzas. Ainda mais bela, com a voz mais bonita e experiente, com o encenar mais incorporado, mais real. Era apenas uma questão de tempo, como o bater de asas de pássaros inquietos presos em um viveiro no meio de um jardim de inverno, que nunca chegaram a ser o azul do céu. Esperando uma brecha, um descuido, um passo em falso, uma oportunidade para alçar voo novamente.

E rir baixinho, até gargalhar. Desta vez, mais alto.












*Luciana Frank é uma jovem escritora maranhense, com uma escrita sensível e tocante. Esperamos que tenham apreciado este momento literário aqui no blog ;)

 Natércia




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