domingo, 4 de setembro de 2022

"Pé de Conversa" (1957), de José Nascimento Morais Filho. PARTE 1.

(Publicado originalmente em 1957 e depois na década de 1980; ambas edições estão esgotadas)

(O Antologia Poética, publicado este ano - 2022 - possui trovas selecionadas de Pé de Conversa; para adquirir este exemplar, clique AQUI)

Pé de Conversa é a segunda obra do poeta maranhense José Nascimento Morais Filho (1922-2009) e foi publicada originalmente em 1957, dois anos após seu famoso Clamor da Hora Presente (1955) agitar o cenário intelectual com poemas que defendiam a liberdade, a luta e a revolução do povo contra a opressão. Com bastante influência da cultura popular - lendas, costumes, provérbios, orações, cantorias, conversas com os caboclos do interior do Maranhão - o autor compôs quase 200 trovas de temas variados como superstições, relacionamento entre homem e mulher e relação do homem com a natureza, mas como reza a tradição, as quadras revelam versos principalmente de cunho lírico-amoroso.

A 1a edição de Pé de Conversa contém uma segunda parte, a qual agrega um material bastante extenso com muitas notas formuladas por Nascimento Morais Filho que explicam a origem das influências para cada uma das 193 trovas compostas. Essas notas funcionam como verdadeiros tratados antropológicos, sociológicos, históricos e linguísticos, constituindo um tesouro para nós, pesquisadores, já que resultam das próprias pesquisas do autor, fascinado pela cultura popular. Temos como exemplo a seguinte trova, logo no início:

"MORO NO BECO DO COUTO,
VAI QUEM QUER*, 56
DESCE COM JEITO A LADEIRA
QUE SENÃO, VAIS DE UMA VEZ!"
(MORAIS FILHO, 1957, p.6)

Nascimento Morais Filho explica na segunda parte a expressão VAI QUEM QUER*, relacionando-a ainda, à uma experiência sua: 

"Expressão com que, em muitos municípios da nossa terra o povo designa um lugar distante do centro urbano, às vezes de difícil acesso, sem interesse, sem movimento, aonde somente se vai por necessidade. Às vezes, também, o "vai quem quer" é no perímetro urbano como a despeito desse apelido que lhe pus, a rua em que moro; como em Turiaçu, onde além de ficar no coração da cidade, estão localizados, por estranha coincidência, a Coletoria Estadual e a Cadeia!" (MORAIS FILHO, 1957, p.76)

Em tempo: Nascimento Morais Filho era funcionário público estadual - Fiscal de Rendas do Estado do Maranhão, popularmente chamado de Coletor de Impostos. Foi pelo exercício da profissão, da qual só se aposentou na década de 1980, que ele viajou muito pelo interior, e em uma dessas ocasiões passou pela cidade de Turiaçu, onde conheceu sua esposa Maria da Conceição, em 1951. 

Em outro momento, encontramos a seguinte trova:

"COM CAFÉ* CRU DE MIL BEIJOS
MEU CORAÇÃO DEFUMEI,
ATÉ QUE VEIO A FORTUNA:
- QUANDO, MEU ANJO, TE AMEI..." 
(MORAIS FILHO, 1957, p.9)

A inspiração dessa trova é novamente explicada pelo autor na segunda parte da obra:

"Das duzentas e muitas orações que até o presente colhi, é a única em que figura o café como elemento mágico. Penso que não se deve a sua presença no nosso folclore por causa de seu valor sócio-econômico, mas como uma das muitas práticas de magia que sobrevivem na nossa sociedade." (MORAIS FILHO, 1957, p.76-77)

A 1a edição de Pé de Conversa contém ainda algumas raridades: 12 ilustrações a bico de pena do grande artista maranhense Newton Pavão. Tais ilustrações chegaram pela primeira vez aos olhos do leitor maranhense pois constituem representações de temas bem caros a nós, como a figura da quebradeira de coco, os diversos empregos da palmeira de babaçu e o tambor de crioula:


Outra raridade encontrada em Pé de Conversa é o resgate de 3 letras de música com reprodução de suas partituras, compostas pelo famoso José Ribamar dos Passos, apelidado Mestre Chaminé. São elas: Hino Nacional da Cachaça, Coquinho vem cá coquinho e Quebradeira de Coco de Babaçu:

HINO NACIONAL DA CACHAÇA

"SALVE CACHAÇA BENDITA!
BENDITA SEJAS, CACHAÇA!
- SUOR DO NOSSO PROGRESSO,
SANGUE AZUL DA NOSSA RAÇA!

CACHAÇA QUANDO FAZ FRIO,
SE CALOR, TAMBÉM CACHAÇA;
CACHAÇA NAS ALEGRIAS,
NAS DORES, TAMBÉM CACHAÇA!

COMPANHEIRO, MAIS DOIS DEDOS,
PORQUE ME QUERO AZUMBRAR*,
AINDA QUE EU VÁ NA TALHA*,
MAS QUERO TUDO VIRAR!"

*AZUMBRAR: no Maranhão significa "estar bêbado".
* IR NA TALHA: expressão muito usada pela irmandade de S. Martinho para designar que a pessoa está tão excessivamente bêbada que precisa ser carregada pelos outros; a "talha" é uma expressão metafórica originada do aparelho de mesmo nome, usado para levantar objetos pesados.

Quanto à obra em si, Pé de Conversa, foi a 1a vez na literatura maranhense que se publicou um trabalho com uma visão geral do nosso folclore, reproduzindo na escrita dos versos a sintaxe e a pronúncia popular. Sob o ponto de vista da crítica literária, considero que essa obra foi bastante revolucionária no sentido de colocar em pauta a oralidade, esta que é uma característica da expressão poética modernista. Ainda mais no Maranhão, que embora já apresentasse vários autores comprometidos com esta estética - era afinal a década de 1950, a década de ouro da literatura modernista maranhense, época em que explodiram muitas publicações em poesia e prosa - grande parte de nossos estudiosos não consideravam a literatura oral / popular algo que valesse a pena se dedicar ou divulgar. Claramente não era o que pensava Nascimento Morais Filho, haja vista que ele também lutou contra esse preconceito. 

Faremos uma série, ainda ao longo desse ano, trazendo mais curiosidades sobre Pé de Conversa, agregando a escrita das trovas às explicações sobre suas origens / inspirações formuladas e pesquisadas pelo autor. Esse post foi uma sugestão do querido amigo e pesquisador Dr. Dino Cavalcante (UFMA), no intuito de continuarmos a divulgar a boa literatura maranhense, se não para os brasileiros, mas ao menos e principalmente aos nossos conterrâneos. Até o próximo Pé de Conversa!

Natércia Moraes Garrido
Dona do Blog, Canal do YouTube e Instagram A Beletrista; professora, escritora, crítica literária e pesquisadora em Literatura Brasileira e Maranhense, em especial, das obras do meu avô, José Nascimento Morais Filho.


















 

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