domingo, 29 de maio de 2022

"Vencidos e Degenerados" (1915), trecho do romance de José Nascimento Moraes, autor maranhense.


Reprodução de trecho do romance VENCIDOS E DEGENERADOS (p.132 a 135). Para informações sobre como adquiri-lo, envie um Direct Messenger para o Instagram da Profa. Natércia Moraes Garrido, @a_beletrista. 
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"E quem era Armênia? Descendente de uma rica família, a do coronel Magalhães, o senhor de João.

No tempo do Império uma potência, uma estrela de primeira grandeza, ela foi, num plano inclinado, decaindo de sua opulência, dos respeitos com que a cercavam, da fama que granjeara, com a sólida fortuna que possuíra, e com as importantes posições políticas a que subiram seus membros. Fatos inúmeros contribuíram para sua queda do apogeu que desfrutava...Fora seu chefe o tenente-coronel Joaquim Marcos Ribeiro de Magalhães, Comendador da Rosa. Tivera quatro filhos e uma filha que era Armênia Ribeiro de Magalhães.

O tenente-coronel Magalhães era um velho de índole caprichosa, que ia até a malvadez e à perversidade. Era marchante¹. De uma feita, porque um escravo contrariasse nas suas ordens, ele em pleno mercado o esbofeteara. Alfredo, chamava-se o negro. Recebendo a desfeita, que lhe injetou os olhos de sangue, nada lhe disse. Continuou a trabalhar até as cinco da tarde, nas diversas ocupações que lhe eram diariamente dadas. O coronel Magalhães tinha por hábito conversar à tarde, na porta de uma taverna, na Rua de Santana, onde se reuniam alguns ricaços, em amistosa palestra sobre ganhos e perdas, a arrotar o jantar. Foi nessa ocasião que Alfredo que Alfredo se lhe aproxima e pede-lhe que lhe dê uma palavra. O negro estava calmo, limpo e não inspirava receios, nem o "sinhô" se lembrava mais da bofetada que lhe dera. Levantou-se o tenente-coronel Magalhães para atender ao chamado de Alfredo que se afastava para a esquina da Rua de São João.

- É o meu braço direito, meu homem de confiança - disse ele aos mais, ao dar o primeiro passo. Todos se voltaram para o negro, que era ainda moço, alto, musculoso, de uma fisionomia severa e carrancuda.

A distância de dois passos, Alfredo saltou na gola do paletó do tenente-coronel Magalhães, repuxando-o para debaixo do peito. Foi rápida a cena: uma lâmina lucilou no ar, brandida pelo pulso do escravo, rápida desceu, uma, duas, três vezes, e um corpo baqueou na rua, sem um gemido.

Os da roda, abandonando as cadeiras, correram desorientados, uns para dentro do estabelecimento, outros pela rua abaixo. Transeuntes agruparam-se em torno do corpo, a vizinhança acudiu às portas e janelas, transida² de terror. Era um caso novo, por todas as circunstâncias que o acompanharam.

- Um escravo matou o sinhô! - tal foi o grito de alarma e surpresa que, com a rapidez do relâmpago, se propagou de boca em boca pela cidade toda. As razões foram muitas, e cada qual mais disparada. Só mais tarde se soube da verdadeira causa do fato. 

Contaram então que, perpetrado o crime, guiou dali Alfredo para a residência do sinhô, que era um sobradinho na Rua da Palma. Lá chegando, bateu palmas em meio da escada. Apresentou-se-lhe, em vez de uma mulata escrava que fazia de criada, a própria esposa de Magalhães, uma senhora bondosa, afável que a todos os servidores bem tratava, livrando-os, não raro, das vinganças bestiais do marido. A pobre senhora apareceu pálida, o olhar assustado, como que pressentindo a notícia desagradável do assassínio do tenente-coronel Magalhães.

- Dona Amélia - falou-lhe Alfredo - acabei de matar seu marido. Vosmecê sabe melhor do que eu que eu era o único escravo que o estimava. D. Amélia, acredite: eu tinha até satisfação em ser escravo. Não era para seu marido (as lágrimas desciam-lhe pelo rosto) fazer o que me fez hoje. Minha senhora, me desculpe. Mande juntar o corpo de seu marido lá na Rua de Santana. Até nunca mais!

E desceu com passo firme e vagaroso a escada, deixando D. Amélia imóvel, pregada no topo da escada, pela perplexidade do que acabara de ouvir, contado pelo servidor mais fiel e leal da casa, um dos poucos com que ela podia contar no caso de uma rebelião. 

Os filhos de Magalhães tomaram conta da bonita fortuna. Ignorantes, sem prática de negócios, sem trato social, que eles viviam abandonados de qualquer educação, por mais rudimentar que fosse, escorraçados do seio da família, pela desobediência a que se acostumaram desde muito cedo, não podiam continuar no giro dos negócios do pai, pois inteiramente o desconheciam, nem com acerto gerir a fortuna de cuja construção não entendiam. Assim, enquanto corria o processo de Alfredo, que foi enforcado no lugar em que cometeu o crime, os irmãos de Magalhães tratavam de enganar a viúva, que sucumbiu anos depois ralada de desgostos. 

O 13 de Maio já encontrou  os filhos de Magalhães nessa casa na Rua de São Pantaleão, vivendo à sombra de alguns bens que lhes deixaram os usurpadores. Dois viviam nas salinas, e mais pareciam caboclos da ilha que moços da cidade; dos dois outros, um era jogador de profissão, e vivia nos botequins; o outro era apalermado e não saía de casa. Era o mais moço. Armênia e duas tias do lado materno completavam o número de domiciliados.

Armênia recebera uma educação esmerada. Mimo de sua mãe, seu conforto e alegria, desde muito moça entregue aos cuidados de professores que a lecionavam no lar. Aprendera o português, o francês, o inglês e o latim, de que fizera até um sensacional exame num afamado colégio da capital. Versada nos autores clássicos e literatura contemporânea, seu espírito tinha cintilações belíssimas. Frequentava a sociedade, onde superiormente brilhava pela formosura e pela inteligência, mas nunca pudera dar expansão ao seu gênio irrequieto, à sua sensibilidade acessível e tocante. O respeito à D. Amélia era um dique que se lhe opunha às largas dos seus desejos contidos. Sempre se mantivera, até ali, em compostura honesta e digna.

Com o desaparecimento de D. Amélia, foi que ela se desatou das peias que a sacrificavam... As tias curvaram-se aos seus caprichos, os irmãos transviados não tinham por ela interesse nenhum; antes, a odiavam: havia mesmo entre eles uma barreira intransponível que eram as maneiras dela e o rude trato com que eles se apresentavam."

Glossário útil:

1. Marchante: negociante de gado. Do francês marchand = comerciante.
2. Transida: apavorada, assustada.

 

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