sexta-feira, 24 de julho de 2020

O Lugar Mais Sombrio vol.1: A Noite da Espera, romance de Milton Hatoum

(São Paulo: Companhia das Letras, 2017)

Talvez seja isto o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras...(p.210)

Olá beletristas, tudo bom? A resenha crítica de julho se dirige a um romance de um dos meus autores favoritos, o amazonense e super premiado Milton Hatoum (quem nunca ouviu falar ou já leu o aclamado romance Dois irmãos ?), que também é considerado pela crítica literária especializada já como um dos grandes autores de nossa contemporaneidade. A noite da espera é o primeiro volume da trilogia chamada O lugar mais sombrio; o volume 2 já foi lançado também (Pontos de fuga) e o volume 3, segundo o autor, já está em fase de revisão para chegar a nossas mãos em 2021. Confesso que já comprei para ler o Pontos de fuga, porque né... trilogia quando agarra pela história, a gente vai até o fim! 

Estamos falando de um romance de formação em pleno contexto político-social da ditadura brasileira. Martim, o personagem central e também o narrador da história, relembra no exílio em Paris seus 5 anos de vida em Brasília, tanto com seus novos amigos da revista Tribo quanto com seu pai Rodolfo, um homem rígido, de índole difícil e cheio de segredos. Com a separação dos pais, Martim aos 16 anos é avisado pela mãe Lina que ele vai morar com o pai, que acabou de aceitar um emprego de engenheiro numa firma em Brasília. Sendo assim, pai e filho se mudam para uma cidade em ampla expansão em 1968, que coincide também com a mudança de regime político no Brasil.

A solidão da cidade e a tentativa de adaptação levam Martim a fazer amizade com o dono da livraria Encontro, Jorge Alegre, onde depois o jovem vai trabalhar. É no pequeno auditório da Encontro que Martim conhece o grupo de teatro de Damiano Acante e faz amizade com esse professor e com outros integrantes da trupe: Nortista (apelido de Lélio), Vana, Ângela, Fabius, Lázaro e Dinah, esta última por quem Martim se apaixona. Apesar de pertencerem a classes sociais diferentes (do mais pobre e morador de Ceilândia, passando por Taguatinga e chegando na Asa Norte e Sul), esses rapazes e moças descobrem as delícias e dores da liberdade, do ativismo político-estudantil e da sexualidade, e vão amadurecer juntos a ponto de fundarem uma revista artístico-literária, a Tribo. Seus contextos sociais e experiências familiares também influenciarão suas atitudes e decisões quando chegar a hora mais difícil: a da repressão política.

A narrativa de Hatoum é muito envolvente e com o passar das páginas o leitor vai sendo transportado para os dois estados mentais de Martim: o do presente que é o exílio, saudoso de Dinah e de sua mãe Lina,  perdido nas ruas e boulevares parisienses e em encontros ocasionais com outros brasileiros exilados; e o do passado, o qual tenta reconstituir por meio de folhas de anotações da época em que morou em Brasília. Dessa forma conseguimos perceber o amadurecimento dessa personagem, pois 10 anos fazem muita diferença em sua percepção de mundo e no entendimento dos fatos que lhe aconteceram. 

O que Martim presenciou de 1968 a 1972, do fim do Ensino Médio para o início da vida universitária na UNB, talvez ele só consiga digerir agora no exílio. Era uma época em que pouco se podia confiar nas pessoas, em que você tinha que conviver com olheiros e delatores na própria sala de aula; época em que se via seus professores da universidade serem presos e demitidos a olho nu e você se sentia impotente por não fazer nada. Época em que as metáforas falavam mais que as verdades oficiais. Em quem acreditar? E em qual versão da história? Martim só contava com os amigos e as experiências que teve ao lado deles, e mesmo assim, viu coisas bem distintas: das favelas de Ceilândia ao apartamento chique na Asa Sul do triste e intelectual Embaixador Faisão, pai de seu amigo Fabius e patrocinador da revista Tribo.

Martim não quer só reconstituir em um texto suas memórias; ele também quer esclarecer dúvidas de seu passado. Por exemplo: onde está sua mãe, que nunca disse exatamente onde morava e manteve contatos rápidos com ele, sem nunca dar certezas? Por que o pai de Martim tem tanta raiva de Lina? Só porque ela o abandonou para morar com um artista? E o que cerca a vida de Rodolfo nos covis políticos de Brasília, "essa cidade silenciosa"? Esperamos que essas perguntas sejam respondidas no restante da trilogia :) 

A liberdade é uma quimera. Essa noite macabra é muito longa, não vai acabar tão cedo assim. Um dia termina. A história é movediça. (p.158)



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