segunda-feira, 2 de julho de 2018

A cidade e os cachorros, romance de Mario Vargas Llosa. Resenha de *Sara Costa Serra.


Ficha técnica:
v   1º livro escrito pelo autor, ano: 1962
v  Ed. Alfaguara, 2012.
v  Título original: La ciudad y los perros.
v  Li através da publicação digital da equipe Lelivros
v  Tradução: Samule Titan Jr.

Este romance trata-se do 1º livro do Mário Vargas Llosa, considerado em parte como autobiográfico pois alguns personagens e contextos retratam aspectos da sua vida.
A história remonta ao Peru da década de 50, período delicado e tênue entre a democracia e a ditadura militar, traçando um paralelo entre a vida num internato militar e os bairros da cidade. Percebemos a vida comum (civil) de adolescentes com suas famílias, amigos, angústias, dúvidas, amores, necessidade de aceitação e o internato militar Leôncio Prado, destinado a meninos que eram matriculados para que se transformassem em “homens”. Na sua primeira edição, a tradução brasileira para o título era “Batismo de fogo”, pois queria-se enfatizar o rito violento dessa transformação. O próprio Llosa atravessou 3 anos de sua vida a contragosto neste internato.
A narrativa começa com um sorteio de quem irá roubar as questões da prova de química e tal fato já mostra a falha do sistema militar, que a despeito de inúmeras restrições e exigências, não inibia absolutamente as transgressões disciplinares. Os alunos eram admitidos a partir do 3º ano (idade de 14 anos) e lá permaneciam até o 5º ano. A recepção dos “calouros”, apelidados de cachorros, era regada à brutalidade e humilhação de cunho moral e sexual pela turma do 5º ano (os veteranos):

“Diante de Alberto, à esquerda, erguem-se três blocos de cimento: quinto ano, depois o quarto, no final o terceiro, o alojamento dos cachorros”(p.19)

É nesse contexto que nasce “O Círculo”, grupo de calouros liderados por Jaguar, que faz resistência à violência, sempre tentando uma vingança direta à turma do 5º ano e fazendo condão à teia de estudantes transgressores (tráfico de bebidas, cigarros, fugas, assédio sexual, bullying etc.).

“A vingança é doce, nunca desfrutei tanto como nesse dia no estádio, quando dei de cara com um dos que tinham me batizado quando eu era cachorro. Quase nos expulsaram, mas valia a pena, juro que valia” (p.64)

Nesse meio sórdido, há figuras como Arana (Escravo) e o tenente Gamboa, que seja do lado estudantil ou militar destoam em suas condutas:

“Todos nós acreditamos no regulamento – disse o capitão – Mas é preciso saber interpretar. Antes de mais nada, nós militares temos que ser realistas, temos de agir conforme às circunstâncias. Não se pode forçar as coisas para que coincidam com as leis, Gamboa, ao contrário, é preciso adaptar as leis às coisas” p.332

Llosa utiliza o recurso de múltiplas narrativas, e destaca em especial a vida de Alberto (apelidado de poeta , parecendo ser o alter ego do autor); outros personagens importantes são Ricardo Arana, Cava e o Jaguar, meninos de bairros diferentes,  e que desde cedo estão impelidos a responder socialmente conforme a vontade da figura do pai (notas boas, transformar-se em homem, não ser bandido). Note-se que o internato é o ponto comum na historia de vida desses meninos e o meio para o alcance da vontade dos pais. O internato é, pois, uma instituição que busca manter um prestígio social a qualquer custo:
 “ – Alberto, subitamente inspirado, anuncia o título: Os vícios da carne e  lê sua obra, com voz entusiasmada. O alojamento escuta respeitosamente; em alguns momentos, há erupções de humor. Depois o aplaudem e abraçam. Alguém diz: “Fernandez, você é um poeta”. “Sim,” dizem outros. “Um poeta”.

O recurso narrativo usado pelo autor, nos permite compreender a vida dos personagens antes e durante o internato, fazendo um interessante paralelo entre a vida militar e civil. Acredito que seja necessário um pouco de maturidade do leitor para acostumar-se, pois além de múltiplos personagens, estes são representados ora por seus nomes civis, ora por seus apelidos do internato em diferentes tempos e espaços.
A leitura pode ser difícil de início, mas é super válida pois nos tira da velha zona de conforto das histórias lineares. Com o tempo a gente vai se acostumando e mergulhando plenamente na história, principalmente quando ocorre um grave evento que expõe a crise do internato, e traz total clima de desconfiança entre os internos: o fato coloca em jogo a índole e a ética da instituição.
 Vale a pena conhecermos um pouco do Peru da década de 50: temos a percepção das gritantes diferenças e preconceitos entre pessoas de regiões e bairros diferentes (serranos são dedo duro, mal educados etc.), questões raciais (os negros são frequentemente rotulados por apelidos – Arana era de Escravo), as mulheres são retratadas como seres dependentes e condicionadas a um casamento, ou se casada, condicionadas à família/marido e possuem grande dificuldade de emancipação numa sociedade engessada.
Quando lançado, o livro não foi muito bem acolhido pelos militares que na época acusaram Llosa de comunista, uma vez que a história feria uma instituição acadêmica militar. No entanto, fica evidente a intenção do autor em expor a veia de governos extremos, cuja justificativa de exceção parece servir até mesmo em internatos, contendo um reflexo social negativo. Saber e perceber no livro aspectos da vida do autor, mesmo que não sejam integralmente autobiográficas, torna a leitura mais rica e interessante. Importante ressaltar que em 1985 foi feita uma adaptação do livro em filme pelo cineasta peruano Francisco Lombardi.
Apesar de ser uma excelente construção literária, não recomendo como primeira leitura das obras, mas como segunda ou terceira por ser confuso e um pouco difícil nos primeiros capítulos; isso pode acabar desmotivando um leitor iniciante. Bem antes de iniciar este projeto li Travessuras da menina má, cuja leitura é bem mais fluída e instigante, seja no aspecto histórico como na estrutura do romance em si. Sou adepta de que precisamos conhecer vida e obra dos nosso Nobels de literatura e cá estou conhecendo Llosa! Vamos seguir para a próxima leitura,  que será Pantaleão e as visitadoras (1973). 


*Sobre a resenhadora: Sara C. Serra é professora, enfermeira e uma leitora apaixonada por literatura. 

2 comentários:

  1. Ricardo Arana, o escravo, não é negro. O personagem negro do livro é Vallano.

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    1. Vou enviar seu comentário à resenhadora, a Sara Costa ;) Obrigada por visitar o blog!
      Natércia

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