Ficha técnica:
v 1º livro escrito pelo autor, ano: 1962
v Ed. Alfaguara, 2012.
v Título original: La ciudad y los perros.
v Li através da publicação digital da equipe Lelivros
v Tradução: Samule Titan Jr.
Este romance trata-se do 1º livro do Mário Vargas
Llosa, considerado em parte como autobiográfico pois alguns personagens e
contextos retratam aspectos da sua vida.
A história remonta ao Peru da década de 50, período
delicado e tênue entre a democracia e a ditadura militar, traçando um paralelo
entre a vida num internato militar e os bairros da cidade. Percebemos a vida
comum (civil) de adolescentes com suas famílias, amigos, angústias, dúvidas,
amores, necessidade de aceitação e o internato militar Leôncio Prado, destinado
a meninos que eram matriculados para que se transformassem em “homens”. Na sua
primeira edição, a tradução brasileira para o título era “Batismo de fogo”,
pois queria-se enfatizar o rito violento dessa transformação. O próprio Llosa
atravessou 3 anos de sua vida a contragosto neste internato.
A narrativa começa com um sorteio de quem irá roubar
as questões da prova de química e tal fato já mostra a falha do sistema militar,
que a despeito de inúmeras restrições e exigências, não inibia absolutamente as
transgressões disciplinares. Os alunos eram admitidos a partir do 3º ano (idade
de 14 anos) e lá permaneciam até o 5º ano. A recepção
dos “calouros”, apelidados de cachorros, era regada à brutalidade e humilhação
de cunho moral e sexual pela turma do 5º ano (os veteranos):
“Diante de Alberto, à esquerda, erguem-se três blocos de cimento: quinto
ano, depois o quarto, no final o terceiro, o alojamento dos cachorros”(p.19)
É nesse contexto que nasce “O Círculo”, grupo de
calouros liderados por Jaguar, que faz resistência à violência, sempre tentando
uma vingança direta à turma do 5º ano e fazendo condão à teia de estudantes
transgressores (tráfico de bebidas, cigarros, fugas, assédio sexual, bullying
etc.).
“A vingança é doce, nunca desfrutei tanto como nesse dia no estádio,
quando dei de cara com um dos que tinham me batizado quando eu era cachorro.
Quase nos expulsaram, mas valia a pena, juro que valia” (p.64)
Nesse meio sórdido, há figuras como Arana (Escravo) e
o tenente Gamboa, que seja do lado estudantil ou militar destoam em suas
condutas:
“Todos nós acreditamos no regulamento – disse o capitão – Mas é preciso
saber interpretar. Antes de mais nada, nós militares temos que ser realistas,
temos de agir conforme às circunstâncias. Não se pode forçar as coisas para que
coincidam com as leis, Gamboa, ao contrário, é preciso adaptar as leis às
coisas” p.332
Llosa utiliza o recurso de múltiplas narrativas, e destaca em especial a vida de Alberto (apelidado
de poeta , parecendo ser o alter ego
do autor); outros personagens importantes são Ricardo Arana, Cava e o Jaguar,
meninos de bairros diferentes, e que
desde cedo estão impelidos a responder socialmente conforme a vontade da figura
do pai (notas boas, transformar-se em homem, não ser bandido). Note-se que o
internato é o ponto comum na historia de vida desses meninos e o meio para o
alcance da vontade dos pais. O internato é, pois, uma instituição que busca
manter um prestígio social a qualquer custo:
“ – Alberto, subitamente inspirado, anuncia o título: Os vícios da carne e lê
sua obra, com voz entusiasmada. O alojamento escuta respeitosamente; em alguns
momentos, há erupções de humor. Depois o aplaudem e abraçam. Alguém diz: “Fernandez,
você é um poeta”. “Sim,” dizem outros. “Um poeta”.
O recurso narrativo usado pelo autor, nos permite
compreender a vida dos personagens antes e durante o internato, fazendo um
interessante paralelo entre a vida militar e civil. Acredito que seja
necessário um pouco de maturidade do leitor para acostumar-se, pois além de
múltiplos personagens, estes são representados ora por seus nomes civis, ora
por seus apelidos do internato em diferentes tempos e espaços.
A leitura pode ser difícil de início, mas é super
válida pois nos tira da velha zona de conforto das histórias lineares. Com o
tempo a gente vai se acostumando e mergulhando plenamente na história, principalmente
quando ocorre um grave evento que expõe a crise do internato, e traz total
clima de desconfiança entre os internos: o fato coloca em jogo a índole e a
ética da instituição.
Vale a pena
conhecermos um pouco do Peru da década de 50: temos a percepção das gritantes
diferenças e preconceitos entre pessoas de regiões e bairros diferentes (serranos são dedo duro, mal educados
etc.), questões raciais (os negros são frequentemente rotulados por apelidos – Arana era de Escravo), as mulheres são
retratadas como seres dependentes e condicionadas a um casamento, ou se casada,
condicionadas à família/marido e possuem grande dificuldade de emancipação numa
sociedade engessada.
Quando lançado, o livro não foi muito bem acolhido
pelos militares que na época acusaram Llosa de comunista, uma vez que a história
feria uma instituição acadêmica militar. No entanto, fica evidente a intenção
do autor em expor a veia de governos extremos, cuja justificativa de exceção
parece servir até mesmo em internatos, contendo um reflexo social negativo.
Saber e perceber no livro aspectos da vida do autor, mesmo que não sejam
integralmente autobiográficas, torna a leitura mais rica e interessante.
Importante ressaltar que em 1985 foi feita uma adaptação do livro em filme pelo
cineasta peruano Francisco Lombardi.
Apesar de ser uma excelente construção literária, não
recomendo como primeira leitura das obras, mas como segunda ou terceira por ser
confuso e um pouco difícil nos primeiros capítulos; isso pode acabar
desmotivando um leitor iniciante. Bem antes de iniciar este projeto li Travessuras da menina má, cuja leitura
é bem mais fluída e instigante, seja no aspecto histórico como na estrutura do
romance em si. Sou adepta de que precisamos conhecer vida e obra dos nosso
Nobels de literatura e cá estou conhecendo Llosa! Vamos seguir para a próxima
leitura, que será Pantaleão e as visitadoras (1973).
*Sobre a resenhadora: Sara C. Serra é professora, enfermeira e uma leitora apaixonada por literatura.
Ricardo Arana, o escravo, não é negro. O personagem negro do livro é Vallano.
ResponderExcluirVou enviar seu comentário à resenhadora, a Sara Costa ;) Obrigada por visitar o blog!
ExcluirNatércia