domingo, 20 de fevereiro de 2022

"As moscas", texto teatral de Jean-Paul Sartre

Lisboa: Editorial Presença, 1965. 179 pág. Comprado em sebo na Estante Virtual

O doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que os homens são livres. São livres, Egisto. Tu o sabes; eles é que não. (fala de Júpiter, p. 124)

Essa é apenas uma das várias obras de Sartre que venho lendo por conta do doutorado; elas me ajudam a compreender melhor os conceitos de liberdade, engajamento social, existência e consciência crítica, tão recorrentes no pensamento existencialista do filósofo francês. Apesar de ter refletido sobre essas e outras questões em seu tratado ontológico O Ser e o Nada (1943), foi na arte literária, em especial no teatro e no romance, que Sartre optou por demonstrar como o Existencialismo funcionava na prática. Ele sabia que a literatura exercia um certo poder nas pessoas, até por experiência própria, já que lia muito. E sabia que o teatro, pelo impacto das emoções evocadas nos espectadores, traduzia de forma mais latente, dolorosa e imediata aquilo que Sartre pensava sobre o mundo e sobre como o homem agia e existia nesse mundo.

Percorrer, viver e existir neste tal mundo não é fácil. O texto de As moscas (1943) é publicado e encenado ainda em plena 2a Guerra Mundial com uma França dividida entre movimentos de resistência e um governo de fachada aliado ao nazismo alemão (o regime de Vichy).  Os franceses que optavam por se calar e ser conivente com os nazistas, caso de grande parte da população, tinha que conviver com a culpa. Não agir também é agir, como o próprio Sartre diz. E todos somos responsáveis pelas escolhas que fazemos. As moscas funciona muito bem como uma alegoria desse período, portanto tem como pano de fundo a crítica à passividade daqueles que aceitaram tão prontamente a ideologia e opressão nazistas. Há ainda, explicitamente, o ataque à religião e ao que ela se propõe cumprir neste governo altamente moralista de Vichy, uma espécie de culto ao remorso humano, condenando o homem a partir de seu passado sem nem ao menos dar-lhe a opção de escolha e mudar seu futuro:

Sartre combaterá pela raiz a "religião do remorso" de Vichy e o cultivo da ideia de uma "fatalidade" histórico-moral, ao mostrar que a liberdade é a verdadeira "condenação" absoluta que pesa sobre os homens e os povos.[...] já que assinala a soberania do homem sobre seus atos, e do seu presente [...] sobre o seu passado, ao contrário do que sugere a moral do arrependimento compulsivo, que bloqueia o futuro em nome da eterna reiteração da lembrança culposa. (LIUDVIK, 2007, p.10-11)*

O enredo de As Moscas retoma o mito do filho que volta para vingar o pai, resultando num duplo assassinato; um deles o matricídio. Após um longo exílio forçado em Corinto, Orestes retorna a Argos para saber como vivem as pessoas daquela cidade que anos atrás aceitaram tranquilamente a usurpação do trono de seu pai Agamemnon, assassinado pela esposa Clitemnestra e seu amante Egisto. Quando chega em Argos, anonimamente, Orestes ainda não tem clareza sobre o que pretende fazer a respeito de seu passado, não existe um plano de vingança arquitetado previamente. Mas ao encontrar-se com a irmã Electra e ouvir os sofrimentos e humilhações a que foi imposta nos últimos 15 anos pela mãe e pelo padrasto, é que o príncipe começa a refletir sobre a realidade da cidade e de seu povo: ambos estão relegados a um enxame de moscas que, metaforicamente, se alimentam de suas fraquezas e culpas, já que foram coniventes com os atos perpetrados pelo rei assassino e sua rainha cúmplice e desleal. É um povo que se afunda em um remorso sem fim, e não há cerimônia religiosa que dê conta de tanta expiação. E onde está Jupiter, deus dos deuses e dos homens, que não demonstra em um único momento sua compaixão? 

Paredes manchadas de sangue, moscas aos milhões, um cheiro a matadouro, um calor de rebentar, as ruas desertas, um deus com cara de assassino, essas larvas aterradas que batem nos peitos no recôndito das suas casas - e estes gritos insuportáveis: é então isto que agrada a Júpiter? (fala de Orestes, p.26)

Quando Orestes percebe a indiferença do Deus maior, notando que Júpiter se diverte às custas do sofrimento humano, ele toma consciência de que é livre e dono de seu destino. É só a partir daí que ele resolve cumprir seu ato final, inclusive apoiado por Electra, que de várias formas o impele a executar os assassinatos. Orestes está ali para isso, para cumprir seu destino: matar Egisto e também a mãe. Conseguirá conviver com a culpa de tamanho desígnio? Sim, pois antes de empreender o ato ele já compreendia as responsabilidades que o aguardavam no futuro. O mesmo não ocorre com Electra, cúmplice de seu irmão: arrependida amargamente, seu destino e sua consciência seguirão rumos mais penosos.

Não vamos nos deter no julgamento do ato em si de Orestes: um ato extremo, dois assassinatos - sendo um, o matricídio. Ele penará por isso também, haja vista que é um ato moralmente condenável, apesar do desejo de justificativa parecer correto em sua mente. Creio que o que Sartre desejava chamar a atenção, pela própria época em que o texto foi escrito, era para o engajamento, para a luta, para que o povo francês não se deixasse consumir em culpa sem ação. Mas óbvio, nada disto era tão fácil. Coragem também é pré-requisito para se agir, e nem todos são corajosos. Nem todos estão dispostos a morrer por uma causa, embora acreditar em uma seja importante para se abastecer da vontade de viver.

Estamos condenados a ser livres e isso implica em fazer escolhas constantemente. Ideia nada agradável para muitos mas ainda assim, desejada. Queremos o bônus mas não aguentamos o ônus de nossas decisões, preferindo culpar outros pelo caminho que nós mesmos escolhemos. Proponho um acordo com minha consciência e vejo com qual situação eu consigo lidar melhor; posso não agir, me render à passividade e às mentiras que conto a mim mesma ou... posso agir. Mas devo estar preparada para o que vem a seguir, nesta vida estranha que é toda movimento. 

A sua força é feita da tua fraqueza. Já reparaste como a mim nada me dizem? [...] E a angústia que me devora, pensas que deixará alguma vez de me roer? Mas isso que me importa: sou livre. Para além da angústia e das recordações. Livre. (fala de Orestes, p.151)
 

*LIUDVIK, Caio. Sartre e o pensamento mítico: revelação arquetípica da liberdade em As Moscas. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

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