terça-feira, 19 de janeiro de 2021

"Humilhados e Ofendidos", romance de Fiódor Dostoiévski

 

 (São Paulo: Editora 34, 2018)

"O senhor anseia pelo ideal, pela virtude. [...] Mas o que devo fazer se estou certo de que sei que na base de todas as virtudes humanas está o egoísmo profundo. E quanto mais virtuosa é a virtude, mais egoísmo há nela. Ame a si mesmo - eis a única regra que conheço." (p.286)

A primeira resenha de 2021 também se relaciona com a primeira leitura de 2021: o romance Humilhados e Ofendidos, do F. Dostoiévski. Indicado pela Aline Aimée do Canal Chave de Leitura, resolvi abraçar a bela sugestão e ler Dostô (como Aline carinhosamente chama). Nossa, fazia anos que não lia nada dele e minhas memórias de leitora sempre se direcionam para os imbatíveis O idiota (1869) e Os irmãos Karamázov (1880), sempre meus preferidos. O que não quer dizer que eu não tenha sido impactada por Humilhados e Ofendidos (1861).

O romance em si "foi publicado de janeiro a julho de 1861 na revista O Tempo (Vriênia), dirigida por Dostoiévski e seu irmão Mikhail, a quem o romance foi originalmente dedicado. No outono do mesmo ano, com a preparação de uma edição do romance em formato de livro, o autor eliminou o subtítulo e a dedicatória a seu irmão." (BIANCHI, p.7, 2018). Vamos ao enredo: Ivan Petróvski (ou Vânia, como é chamado carinhosamente por seus familiares ao longo da história) é um escritor pobre e doente que precisa escrever um romance a fim de ganhar algum dinheiro, mas ao invés disso, começa a narrar suas memórias para nós, leitores. Então por meio dessa narração sabemos que Ivan perdeu os pais biológicos muito cedo e foi criado pelo casal Nikolai e Anna, que já tinham uma filha, Natasha. Ivan cresce sempre apaixonado por ela, mas naturalmente segue seus estudos em São Petersburgo, bem longe da vida rural que levava antes. 

O mais importante de suas memórias são as reviravoltas que acontecem no período recente de um ano; são esses fatos que constituem num desfile de humilhações e ofensas recebidas pelas pessoas de classe social mais baixa (Vânia inclusive) e perpetradas em grande parte pelo nobre Príncipe Valkóvski, tido como o grande vilão da história, e por seu filho em certa medida, o ingênuo Aliócha. Após ser convencido de que o administrador de sua propriedade rural o está enganando e roubando, Valkóvski resolve processá-lo e tirar-lhe tudo. E quem é esse suposto desonesto administrador? Nikolai. Exatamente. Mesmo após este ter devotado anos de amizade e lealdade ao ardiloso príncipe, acolhendo dentro de sua própria casa o filho dele, Aliócha, por quem Natasha se apaixona, mesmo assim Nikolai é acusado injustamente e é humilhado perante a sociedade por meio de calúnias. Sobram humilhações para a bela Natasha também, acusada de seduzir Aliócha e querer um casamento vantajoso.

Sempre disposto a ajudar e acalmar os ânimos está Vânia, que vai pra lá e pra cá o tempo todo, tentando resolver os problemas dos outros da melhor forma, esquecendo de si na maior parte das vezes, e ainda aceitando de bom grado ser o ouvinte dos conflitos amorosos de sua amada Natasha com Aliócha. É muita mansidão pra tanta humilhação. E como ainda faltam mais aventuras para a vida de Vânia, ele se depara com Elena (apelidada de Nelli) e resolve resgatar a criança orfã de uma vida de exploração e claro, de humilhações incalculáveis.

O que mais me agrada em Dostoiévski é seu estilo de narrar, nem um pouco monótono e tantas vezes ironicamente humorado. Esse romance possui também um enredo muito bem construído e "costurado", deixando o leitor surpreso até o finalzinho mesmo! Em 395 páginas posso assegurar-lhes que não fiquei entediada nem uma vezinha, não senhores. É uma obra de transição estética também, possuindo elementos românticos contrastados com outros do nascente Realismo. Por exemplo, os valores da grandeza de caráter e do perdão são várias vezes pisoteados pelo príncipe Valkóvski, o próprio retrato do egoísmo, da devassidão e da inescrupulosidade. Outras passagens que revelam o ideal romântico é a carga de sofrimento e dor das personagens pobres desse romance e como elas aceitam tudo, como se sofrer é tudo o que lhes resta, é seus destinos. Mas a mensagem que Dostoiévski nos revela ao final da história é que mesmo com humilhações e sofrimentos, perdoar seus inimigos e suas ofensas e deixá-los viver sua existência egoísta ainda se constitui no ato mais nobre do ser humano. Mas eu sempre me pergunto: será mesmo? 

OBS: A citação em itálico no início da resenha se refere ao texto da tradutora Fátima Bianchi que integra a edição da Editora 34.

Nenhum comentário:

Postar um comentário