Bem, sempre no fim do ano, na época do recesso, aproveito para ler uns 5 livros que é pra compensar a falta de tempo entre novembro e dezembro que acomete, sei, a todos nós professores. Como já disse, vivo e respiro literatura, que é minha paixão, e quando estava selecionando as leituras de fim de ano, me deparei com "A moradora de Wildfell Hall" da autora inglesa Anne Brontë, comprado havia 1 mês e no final da pilha de livros na minha cabeceira. Mas como estava com uma vontade louca de "visitar" novamente a Inglaterra da era Vitoriana (o séc. XIX é meu período favorito na Literatura Universal), resolvi retirá-lo do fim da pilha e "passá-lo na frente" dos outros livros (desculpe Saramago, foi o jeito!):
Essa edição é bilíngue, da ed. Landmark e custa R$25,00 no site da editora SBS: http://www.sbs.com.br/. (por sinal, super seguro). Anne Brontë publicou o romance em 1848 sob um pseudônimo masculino meio ambíguo, Acton Bell, já supondo que, se a crítica soubesse que o autor era uma mulher, ela seria duramente rechaçada pela sociedade rígida da época, a da era Vitoriana. Explico a razão pela própria história do romance: Helen faz a terrível escolha de aceitar o pedido de casamento de Arthur, um homem aventureiro e rico (logo um bom partido) mas boêmio e cheio de vícios como a bebida, as mulheres e o jogo. Romântica, Helen pensa que reformará o caráter do marido através de seu amor e de sua religião, o que ela até consegue no 1º ano de casamento, mas depois as tentações do mundo acabam arruinando a relação dos 2 pois Arthur passa mais tempo em Londres do que na propriedade dele com a esposa, localizada no interior da Inglaterra. Por mais de 5 anos Helen sofre os maus tratos do marido, sendo inclusive traída dentro de sua casa, mas quando percebe seu filho aprendendo os mesmos maus hábitos do pai ela resolve dar um basta e fugir dali, para Wildfell Hall, uma propriedade que lhe veio como herança da morte da mãe. Helen chega nessa comunidade com o nome falso de sra. Graham, uma viúva, mas lá conhece o fazendeiro local, Gilbert, e eles se apaixonam. E agora? Como contar a verdade e resolver esse impasse?
A BBC fez uma adaptação para a Tv, uma minisérie, em 1996.
Voltando à história: qual o problema do enredo? É claro que é a fuga: como uma mulher altamente religiosa e temente a Deus, romântica, fruto da era Vitoriana, vai se rebelar contra seu marido, a quem ela deveria amar e respeitar de olhos vendados? Divórcio não se cogitava naqueles tempos...Mas não é só isso: várias passagens do livro indicam um discurso feminista, que meu Deus, deve ter sido considerado uma afronta, claro. Segue abaixo a fala da irmã de Gilbert, Rose, que ao ter que fazer chá fresco para seu irmão ( pois ele chegou atrasado e o outro chá que estava no bule havia esfriado) desabafa:
" Bem, se fosse eu agora, não teria nada de chá pronto [...] mas você - não podemos fazer o suficiente para você. É sempre assim - se há algo particularmente requintado sobre a mesa, mamãe pisca e meneia para que eu me abstenha, e se não a atendo, ela sussurra, 'Não coma muito disso, Rose; Gilbert vai querer para sua ceia'. Eu não sou nada. Na sala é 'Venha, Rose, guarde suas coisas e vamos tornar a sala agradável e limpa antes que eles cheguem; e mantenha o fogo bem aceso; Gilbert gosta do fogo bem vivo.' [...] Você sabe Rose, em todos os assuntos domésticos, temos duas grandes coisas para considerar, primeiro, o que é apropriado fazer, segundo, o que mais favorecer os cavalheiros da casa - qualquer coisa está bem para as damas." (BRONTË, p.31, 2008)
E essa fala está no capítulo VI, logo no início do romance. E eu me choquei porque como já disse antes, para 1848, colocar essas palavras na boca de uma personagem feminina é bem arriscado. A crítica aqui é explícita: ao mostrar o papel subserviente da mulher, de que devemos deixar o melhor para os homens e nos contentar com o resto, como se fôssemos animais fiéis e devotadas, Brontë declara sua insatisfação; em pleno século XIX! Ilustro a situação com a charge abaixo:
A esposa pergunta: John, onde está o resto do seu salário? Como vou pagar o aluguel e comprar comida para as crianças? E o marido responde: Cale a boca! O que faço com meu dinheiro não lhe interessa.
Portanto, ler essa obra agora no fim do ano me trouxe uma grata surpresa: não apenas visitei e me encantei novamente com a Inglaterra oitocentista, mas descobri um novo romance feminista para o meu arsenal crítico. Recomendo a leitura, claro, mas aviso: leia com tempo, pois como um bom romance do século XIX, ele é longo e demanda uma certa paciência com a linguagem, que é mais rebuscada e clássica.
P.S: Esse post é dedicado aos meus alunos e ex-alunos da disciplina Literatura Inglesa :)
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